Este artigo foi baseado quase na
íntegra numa palestra dirigida em Junho do ano corrente a lavradores
e técnicos num colóquio promovido pela Liga Agrária Católica em
Mira.
O tema que nos fora proposto
inicialmente «A orla marítima de areias de Cantanhede à Figueira da
Foz – Monocultura ou Policultura? Horticultura ou Fruticultura?» foi
posteriormente alargado.
O texto descreve sumariamente a
sub-região considerada, focando aspectos caracterizadores da
actividade agrícola, aflora problemas técnicos suscitados pelas
exigências de modernização da Agricultura, nomeadamente o da matéria
orgânica, de vital importância para a valorização dos solos de areia
e permanência deste sector económico e aborda, por fim, de um modo
genérico, aspectos relativos à Horto-Fruticultura numa perspectiva
de desenvolvimento.
O valor da produção agrícola da
sub-Região é considerável, se bem que de difícil estimativa. Se
apenas fixarmos, na zona agrícola da Gafanha, a produção da batata,
concluiremos, apesar da incerteza dos números globais, que o seu
valor, mesmo em anos de baixa cotação do mercado, se cifra em mais
de 30 000 contos!
A Agricultura depara amiúde com a
profunda ignorância que os seus problemas encontram noutros sectores
sócio-profissionais, geradora de indiferença e até de hostilidade;
no entanto, a civilização urbana tem nela um dos seus suportes mais
evidentes em homens, capitais e alimentos. Actividade dispersa no
espaço por milhares de empresas, a concentração das unidades
produtivas tão comum na Indústria esbarra nela com dificuldades
intrínsecas e extrínsecas consideráveis. Apesar de tudo, numa visão
realista da vida económica que subjaz às aparências enganadoras,
poderá continuar-se a minimizar este importante sector de
actividade?
A orla marítima de areias de Aveiro
à Figueira da Foz é uma extensa planície que liga a Bacia
Hidrográfica do Vouga à do Mondego, participando assim das zonas de
influência económica de Aveiro, ao Norte, e Coimbra, ao Sul.
No aspecto geomorfológico apresenta
uma grande unidade, sendo constituída na fachada marítima por dunas
do Moderno e em imediato contacto, pela parte interior, por uma
faixa alongada de areias do Pliocénico.
O clima desta sub-região marca a
transição do domínio atlântico ao Norte para o domínio mediterrânico
ao Sul; ou se se preferir, de uma zona em que as influências
marítimas sobrelevam as mediterrânicas, para outra em que ambas as
influências se equilibram (carta fitoclimática de Pina Manique e
Albuquerque.
A extensa superfície de dunas não
agricultadas tem sobretudo valor de uso florestal (conforme a Carta
de Capacidade de Uso do Solo do Serviço de Reconhecimento e
Ordenamento Agrário).
A proximidade do mar e da Ria de
Aveiro imprimem uma influência profunda sobre as condições da
actividade agrícola desta sub-Região, o primeiro actuando como
regulador do clima, a segunda
/ 12 /
principalmente fornecendo o moliço, fonte essencial de matéria
orgânica para a manutenção da fertilidade das areias. Definem-se
nela fundamentalmente duas zonas agrárias bem caracterizadas no
aspecto humano e agrícola, a saber:
1.º – a faixa litoral constituída
por areias do Moderno que bordeja a Ria de Aveiro nos concelhos de
Ílhavo, Vagos e Mira – a Gafanha (com cerca de 4000 ha.
***) e
2.º – a faixa alongada e estreita de
terrenos arenosos em imediato contacto com o Rio Boco pela parte
leste, com predomínio de areias do Pliocénico, nos concelhos de
Vagos e Mira, a Gelfa, zona de transição da Gafanha da
qual está separada pela Mata Nacional, para a zona a sul de
características semelhantes, que se alarga nos concelhos de Mira,
Cantanhede e Figueira da Foz e se estende até às imediações da Serra
da Boa Viagem a Gândara (à volta de 20000 ha.
***).
Embora a Gafanha tenha muitas
afinidades com a Gândara, dela se diferencia contudo na utilização
do solo, nas condições de clima e fertilização com moliço que se vai
esbatendo a pouco e pouco na Gândara com o agravamento do custo do
seu transporte, a partir dos locais em que é recolhido na laguna.
Como aspectos fundamentais da
estrutura agrária deve assinalar-se a proporção dominante de
explorações diminutas, parceladas, como resultante directa do «processus»
de pulverização, fragmentação e dispersão da propriedade rústica
durante várias gerações.
O tipo de empresa de importância
esmagadora é a familiar – o trabalho necessário à produção, na
totalidade ou em parte, é fornecido pela família, justapondo-se na
mesma unidade (a família) a actividade produtiva e a de consumo,
pelo menos parcialmente.
Por estas características e pelo
equipamento ainda utilizado largamente, têm também um cunho
marcadamente artesanal, que tende pouco a pouco a esbater-se.
Ressalve-se, neste contexto predominante, a Gafanha, que possui um
núcleo de explorações bem dimensionadas com carácter capitalista, em
que o empresário, capital e trabalho se encontram diferenciados.
Assinale-se portanto o carácter
predominante, pré-capitalista, e a rigidez estrutural da actividade
produtiva desta sub-Região a diluir-se progressivamente com o êxodo
rural e emigração, sofrendo não obstante em ressaca, as vagas
dominadoras do mundo do negócio na compra de alguns factores de
produção e na venda de bens produzidos.
Sendo a autonomia a regra nestas
pequenas empresas, o preço da decisão independente na compra e na
venda, real ou ilusória, é muito grande. Poderá David vencer Golias,
nesta nossa era em que a concentração económica dita sempre a
palavra, a lei do mais forte?
Pequenez não significa de nenhum
modo simplicidade e quem alguma vez se debruçou para dentro destas
empresas fica maravilhado com o mundo complexo que nos é descerrado.
O gafanhão e o garandês souberam
laboriosamente, com uma tenacidade sem limites, fazer prodígios num
solo ingrato, à custa de engenho e do maior bem que a natureza lhes
concedeu, uma toalha de água riquíssima que eles utilizam quase
gratuitamente em sub-irrigação nas terras húmidas, frescas ou
«baixas» ou elevada de pequena profundidade nas terras secas ou
«altas». A cultura é contínua e intensiva, por vezes com sucessões
anuais de 3 culturas, graças à manutenção do fundo de fertilidade à
custa de moliço, de estrume de curral, de tremocilha para siderar e
à natureza do solo que permite trabalhos aratórios fáceis e
oportunos em plena época de chuva. Só excepcionalmente existe o
afolhamento e a rotação de culturas. As rotações, quando ocorrem,
são curtas, quase sempre bi-anuais, fazendo alternar em dois anos
duas sucessões de culturas.
O milho e o feijão, (e a batata em
oásis de cultura) ocupam a maior parte da superfície agrícola útil
dedicada à cultura arvense no período primaveril-estival. Em
complemento as culturas forraginosas de leguminosas e cereais ocupam
a mesma área, não como culturas únicas, bem se vê (como acontece em
determinadas regiões de cultura extensiva entrando em «folhas» dos
sistemas de produção em que o afolhamento é a regra), mas
comprimidas no tempo, só subsistindo praticamente como culturas
intercalares ou furtivas outono-invernais.
Esquematicamente 3 tipos de
sucessões anuais de culturas ocorrem mais frequentemente nas duas
zonas:
Intercalar – sachada – sachada;
Intercalar – sachada;
Cereal – sachada.
SUCESSÕES CULTURAIS
GAFANHA
Areias secas
a) não regadas
– tremocilha para siderar – milho e
feijão com ferrã
– tremocilha para semente.
b) regadas
– erva (cevada, aveia, centeio) –
milho e feijão; – couve repolho – millho e feijão.
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Areias medianamente húmidas
– batata – couve lombarda (plantada)
ou feijão;
– cevada para grão – batata ou
feijão ou abóbora porqueira;
– ervilha para vagem – batata.
Areias húmidas
– erva (cevada, aveia, trevo
encarnado) por vezes nabo – batata – chicória para café (plantada)
ou couve lombarda (plantada).
GELFA E GÂNDARA
Areias secas ou medianamente
húmidas (sem rega)
– erva (ferrã de cereais e
tremocilha) – milho e feijão
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– tremocilha
– aveia
– centeio
–
trigo |
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para grão |
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Areias medianamente húmidas ou
regadas
– erva (centeio, cevada, aveia,
trevo encarnado e serradela e por vezes nabo ou
tremocilha) – milho
verdeal e feijão;
– erva (ferrã de cereais) – batata –
milho verdeal e feijão;
– cevada para grão – milho verdeal e
feijão.
Nota:
– Por vezes ao milho associa-se a cultura de abóbora porqueira; na
bordadura dos campos planta-se por vezes couve galega e beterraba
forraginosa.
Areias húmidas
(em oásis de cultura)
– ferrã de cereais e ou serradela –
feijão com milho – batata;
– batata – feijão – batata;
– cevada para grão – feijão ou
batata.
Os sistemas de produção na Gafanha
são mais variados que na Gândara e têm uma feição comercial mais
evidente, mobilizando os agricultores em áreas reduzidas avultados
capitais; assentam fundamentalmente na batata e subsidiariamente
noutras culturas de rendimento (ervilha para vagem, chicória para
café e couve lombarda) e no milho e feijão.
Na Gândara o sistema de produção
baseia-se praticamente na monocultura do milho (a que se associa o
feijão e a abóbora), monocultura mitigada no entanto pelas culturas
outono-invernais para forragem. Apenas a interessante cultura do
linho para fibra quebra de onde a onde esta uniformidade.
Dominadas as nortadas frescas com
sebes ou corta-ventos de manchas de pinhal, a água com valas de
enxugo bem localizadas e o espaço (pelo menos potencialmente para o
futuro) nesta vasta planura onde a introdução da máquina é muito
fácil, conseguirá o agricultor gandarês igual domínio no controle de
húmus das areias, base necessária da fertilidade e de agricultura
permanente?
Gafanha à parte, com a sua produção
hortícola de carácter comercial, caso «sui-generis» de profunda
originalidade no país, a agricultura gandaresa entronca, apesar das
suas características peculiares, no tipo de Agricultura do Noroeste.
Nesta parte do País o milho detém há séculos o primado como cultura
chave dos sistemas de produção, sendo de longe a cultura herbácea
social e economicamente mais importante. Pela regularidade das
produções, maior capacidade produtiva relativamente aos outros
cereais, fácil conservação, pelas suas múltiplas utilizações
(alimentação humana e pecuária, bovina e porcina) e a possibilidade
de se lhe associarem outras culturas (o feijão e abóbora) foi o
alicerce em que mergulhou suas raízes uma densa população acantonada
no Noroeste, que exigia para sobreviver a máxima intensificação
cultural com base no trabalho humano.
Quebrado este equilíbrio tradicional
pelo progresso técnico e económico, evolução dos géneros de vida,
êxodo rural e emigração, tudo parece indicar que passará ainda a
caber ao milho um papel dominante na profunda reconversão cultural
que vai nutrir as novas necessidades de consumo.
Neste novo contexto as variedades de
milho híbrido para alimentação de gado substituirão as tradicionais
menos produtivas e paralelamente o armentio bovino para leite e
carne irá render o gado bovino, motor de trabalho.
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Campo de
serradela associado a aveia (Mira)
Respigador de descarga lateral voltando e encordoando a erva
previamente cortada com ceifeira-gadanheira. |
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O porco suportará idêntica
revolução: desbordará os «chiqueiros» e dos limites das explorações
tradicionais para entrar em sistemas de criação bem dimensionados,
alimentado pelas empresas originárias renovadas, ou mais
radicalmente passará para pocilgas industriais, apenas vinculadas ao
fluxo de rações do mercado.
Nos últimos 15 anos, o efectivo
bovino de gado marinhão e mirandez de trabalho tem declinado
rapidamente na Gafanha e na Gândara, sendo substituído por vacas
turinas. A vaca de leite permite um aumento de receita notável, em
«crias» e leite, distribuída ao longo do ano, o que confere à sua
exploração um enorme valor social em empresas pequenas de débil
economia. Vem realizando também parte do trabalho de tracção outrora
dependente do bovino mirandez. Assim se explica a generalização
fulminante
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da vaca turina na Gândara, de Vagos à Figueira, como símbolo de uma
Agricultura mal estruturada. Não basta já que o bovino forneça o
trabalho, a carne, o estrume... Exige-se-lhe uma quarta virtude, a
da produção leiteira!
Paralelamente a este fenómeno de um
extremo dinamismo, os milhos tradicionais pouco produtivos mas
também pouco exigentes continuam incrustados na Agricultura
Gandaresa.
Haverá lugar para o cultivo
generalizado dos milhos híbridos?
A cultura de milhos híbridos para
pecuária nestas condições de meio apresenta evidentes limitações:
a) exigem avultadas reposições
anuais de matéria orgânica que atenuem as más condições ecológicas
das areias para a sua cultura, o que cria um artificialismo muito
caro para a finalidade que se visa; por outras palavras – o uso da
matéria orgânica, factor limitante e raro da cultura em areias, deve
ser o mais económico possível, reservando-se de preferência para
culturas de rendimento.
b) demandam sementeiras em linhas
abertas, e sachas e mobilizações na quadra mais quente do ano, o que
em solos muito permeáveis de areia conduz inevitavelmente à
delapidação rápida da matéria orgânica do solo pelo arejamento muito
intenso.
Deste modo, segundo nos parece, a
cultura de milhos híbridos exigentes deverá ser reduzida ao limite
do indispensável.
Se a reconversão da cultura
tradicional do milho oferece evidente dificuldade em solos de areia,
a posição do agricultor gandarês na produção forraginosa de
sementeira outonal é muito mais sólida com as ferrãs dos cereais, o
nabo, o trevo encarnado e uma leguminosa preciosa, a serradela,
muito rústica com aptidão notável nestes solos, de excelente
qualidade, que permite prolongar a produção de matéria verde até
fins de Maio e princípios de Junho. Alguns retoques são possíveis,
como, por exemplo, com a introdução de trevo da Pérsia em
determinadas situações.
Interessa particularmente em areias
pobres que a cultura de forragens assegure, se possível, a
manutenção
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do tear de matéria orgânica do solo ou favoreça o seu enriquecimento
em húmus – base da sua fertilidade.
Uma solução promissora nesta
perspectiva está na instalação de prados temporários com
duração à volta de 3, 4 anos com base na associação de uma
leguminosa com uma gramínea e mesmo na de prados multi-anuais.
A introdução de prados temporários
em rotação com ervagens de leguminosas e gramíneas anuais e culturas
de rendimento permitiria estabelecer um sistema de policultura
equilibrada que assegurasse um nível de fertilidade necessária à
cultura permanente.
Com a exploração destes prados
poderia resultar:
– a diminuição de consumo de estrume
numa área determinada da exploração e o seu consequente desvio para
as parcelas de cultura intensiva;
– o enriquecimento do teor de
matéria orgânica do solo com os resíduos e raizame deixados pelas
leguminosas e gramíneas;
– a regularização da produção de
forragem ao longo do ano (na Gândara o período mais crítico da
produção de matéria verde costuma ser no fim do Verão, princípio de
Outono);
– o abaixamento do custo da produção
pecuária;
– o aproveitamento de terras de
arrozal dispersas nesta zona de rentabilidade marginal.
A tremocilha para siderar, uma
descoberta de sécuIos valorizadora dos solos de areia, adaptada
sabiamente pelo agricultar gafanhão e gandarês, deverá merecer
renovado interesse no futuro.
A apanha de moliço na Ria de Aveiro
é uma actividade profissional em declínio o que pode ser comprovado
pela diminuição de barcos moliceiros inscritos nesta faina de ano
para ano. Mais do que a Gafanha são os clientes longínquos da
Gândara e de outras zonas limítrofes que animavam, ainda não há
muitos anos, singularmente, o comércio do moliço, que parecem ser
afectados.
Será a colheita tradicional do
moliço na Ria, penosamente feito a braço e à mercê da ocorrência de
vento favorável, susceptível de uma reconversão?
Um processo de recolha do precioso
produto orgânico, baseado em energia motriz, salvaguardará esta
riqueza, remetendo muita embora para museus etnográficos,
irremediável e tristemente, os belos moliceiros, como espécimes
arqueológicos?
O estrume de curral continuará a ter
um papel saliente como base da fertilidade dos solos do Noroeste e
das areias da Gândara. Perderá contudo o seu carácter de quase
exclusividade?
O estrume foi até há pouco
considerado como subproduto obrigatório da exploração pecuária.
Parece não ser este mais o caso.
Esta concepção deixou de ser aceite unanimamente – assim há
estábulos modernos sem camas nos quais os dejectos dos animais são
removidos por via hidráulica para fossas anexas em virtude da mata e
palha não serem abundantes, reservando-se o chorume das fossas para
rega dos campos em cultura ou para rega de pilhas de mata ou palha,
etc., que, após «curtimento», são utilizados na fertilização dos
solos. Por outro lado, um sucedâneo do estrume, o estrume
artificial, pode ser fabricado a partir do mato, palhas e outros
resíduos orgânicos, em completa independência da exploração
pecuária.
Como sub-produto o estrume subsistiu
durante séculos e jamais alguém se interrogou sobre o seu custo em
pequenas empresas familiares de trabalha não remunerado. Num
contexto de empresas modernas capitalistas a determinação do seu
custo impor-se-á – será por certo muito variável de exploração para
exploração na sua complexa teia de operações que incluem a roça e
transporte do mato, a sua manipulação no assento de lavoura e a sua
incorporação no solo. O seu custo, sendo muito variável, é elevado
por vezes, e com despesas praticamente incompreensíveis; noutras o
seu custo é susceptível de ser reduzido.
O problema da matéria orgânica é
nevrálgico e limitante em cultura de areias e o seu estudo
aprofundado impõe-se nesta época de mudanças.
Só a investigação e experimentação
agronómica conduzida em base realista poderá determinar a influência
relativa sobre a fertilidade e o custo de diversos meios disponíveis
de actuação sobre o tear de matéria orgânica do solo:
– prados temporários;
– culturas de sideração;
– ervagens intercalares e resíduos
de culturas;
– estrume de curral;
– moliço;
– outros produtos orgânicos.
A presença do gado turino nesta
vasta sub-Região deveria ser motivo de reflexão para todo o lavrador
gafanhão e gandarês consciente.
Em relação à bovinicultura e às duas
opções fundamentais – produção de leite, produção de carne –
escreveu Mario Scapaccino, Director da Produção Agrícola, sobre o
seu país, a Itália, mas que flagrantemente reflecte os nossos
próprios problemas:
«Quando se fala da criação de
bovinos, o primeiro dilema que se apresenta é o da escolha entre a
exploração bovina e a de vacas leiteiras. Em geral, nas zonas de
Itália do Norte (podíamos dizer nós, no Noroeste
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Português), onde o clima é fresco e as produções forraginosas
naturalmente abundam, desde há séculos que a produção leiteira
predominou sempre.»
E continua o mesmo autor:
«A escolha, dizia eu, estava em
relação com o clima, com as condições do meio e com a qualidade das
forragens disponíveis. Hoje as coisas tendem a mudar e em toda a
parte, apesar das advertências contínuas dos técnicos e as
indicações inequívocas dos mercados, nota-se uma orientação sempre
mais decidida para a produção leiteira. Nós conhecemos todas as
condições dos mercados internacionais em face dos dois produtos e
todos nós sabemos que na Europa, pelo menos, salvo algumas
oscilações estacionais da oferta, há uma diferença negativa,
constante, entre as disponibilidades e a procura de carne, diferença
que aumenta de par com a melhoria do nível de vida das populações; o
consumo de carne vem aumentando entre os povos mediterrânicos e
mesmo que se não possa nunca pensar em atingir os níveis de consumo
dos povos do norte por motivos evidentes de condições climáticas, há
ainda um longo caminho a percorrer antes de se satisfazerem, pelo
menos, as exigências mínimas da ração quotidiana em proteínas
animais. Pelo contrário as disponibilidades de leite, de gorduras e
de outros lacticínios excedem as necessidades e, se mesmo para estes
últimos, sobretudo para o leite e queijos, se pode prever um aumento
futuro para os povos do Mediterrâneo do consumo total e "per
capita», este consumo, por mais considerável, não chegará nunca a
absorver os excedentes sempre em aumento.
Em todo o caso será necessário
sempre resolver o problema dos excedentes de manteiga, resultante da
concorrência formidável dos sucedâneos (margarinas).
«Conhecem-se os embaraços das
organizações agrícolas dos países europeus por causa dos excedentes
de manteiga, leite em pó e queijo.»
Campo de serradela associado a aveia
(Mira)
Enfardadeira de baixa pressão enfardando feno..
A generalização recente da vaca
turina no Sul do País, nomeadamente no Alentejo, é um facto de
grande alcance. Se parece fora de dúvida oferecer ao Noroeste
melhores condições de meio para a exploração de bovinos de leite e
como é certo ser um dos seus distritos, o de Aveiro, que detém a
primazia económica na indústria de lacticínios no Continente, então
estes factos deveriam provocar uma tomada de consciência na Lavoura
do Noroeste, em que se integra a Gândara, para, perante os poderes
públicos, se discutirem as opções fundamentais neste sector, a fim
de serem objecto de regionalização adequada.
A bovinicultura é um sector
económico importante, na Agricultura da Gafanha e Gândara e sê-lo-á
porventura no futuro, constituindo uma actividade imposta antes de
mais pela própria estrutura da produção agrícola nas explorações,
para valorização e aproveitamento:
– de ervagens outono-invernais de
difícil substituição neste período, que como culturas de cobertura
são muito eficazes na protecção do solo de areia sem as quais
ficaria sujeito a intensa lavagem no período de chuvas intensas;
– de prados temporários, alicerce da
fertilidade dos solos;
– de sub-produtos da exploração (no
caso da Gafanha, batata porqueira, chicória e couves).
Em resumo, pode assinalar-se, em
síntese:
NO PRESENTE
NA GAFANHA
Policultura intensiva
com base em culturas hortícolas e de rendimento e secundariamente no
milho, associada a ervagens forraginosas de outono e à tremocilha
(recursos de matéria orgânica – moliço e estrume); pequenos retalhos
de searas.
Poliprodução
– culturas de rendimento:
hortícolas (batata e outras)
industriais (chicória
para café)
– carne (bovinos e porcos) e leite
(bovinos).
NA GÂNDARA
Quase-monocultura do milho,
mitigada pelas ervagens forraginosas outonais, com produção mais
variada que na Gafanha, e na tremocilha; pequenos retalhos de searas
(recursos de matéria orgânica – estrume, por vezes, moliço).
Milho, feijão, leite, carne
(raramente linho).
NO FUTURO
EM AMBAS AS ZONAS:
Policultura intensiva
de culturas hortícolas e outras (nomeadamente industriais)
associadas a ervagens forraginosas de outono, à tremocilha e a
prados temporários e secundariamente o milho.
Produção especializada
– culturas hortícolas e outras;
– bovinicultura, etc.
/
17 / A expansão do consumo de
produtos hortícolas e de frutas, bem como de carne, vai-se
acentuando em detrimento de produtos alimentares muito importantes
na dieta tradicional – pão, legumes secos e outros produtos de
massa, à medida que o poder de compra da população aumenta (esta lei
económica tem sido verificada nos países ricos do Norte da Europa e
nos da América do Norte).
Deste modo os produtos
horto-frutícolas devem ser encarados numa reconversão cultural de
acordo com as potencialidades naturais quer para satisfazer
necessidades do mercado interno quer com vista à exportação.
Os solos arenosos desta sub-região
(com a possível excepção dos citrinos) não são favoráveis à produção
frutícola.
Escreveu o grande mestre, Prof.
Vieira Natividade:
«A fruticultura só pode ser
lucrativa desde que se cultivem as árvores nas condições de ambiente
que lhes são mais propícias. Logo que o ambiente não é por completo
favorável ao desenvolvimento do arvoredo, há declínio de vigor,
menor resistência às pragas, menor produtividade, menor crescimento,
menor longevidade. As colheitas mais fracas e menos valiosas
requerem mais dispendioso cultivo, daí a impossibilidade dos
produtos concorrerem vantajosamente com as que provêm de regiões
mais favorecidas.»
A tradição da cultura da laranjeira
e a existência de pomares ou de núcleos de laranjeiras junto dos
assentos de lavoura constitui uma produção digna de apreço económico
e uma fonte de receitas para o agricultor gandarês.
Com efeito desde que não falte a
água e a fertilização seja adequada e o clima permita, os solos
arenosos prestam-se perfeitamente à cultura dos citrinos que são
muito favorecidos pelo intenso arejamento do seu sistema radicular.
Como podemos considerar o clima da
Gândara para a cultura de laranjeiras?
Um especialista português em
citricultura estabeleceu há anos (1964, Eng.º Parreira da Gama) uma
carta de aptidão climática da laranjeira, dividindo o Continente em
regiões classificadas provisoriamente (na aspecto cultural) como
muito boas, boas, regulares, sofríveis e
más. A zona da Gândara foi
classificada apenas como sofrível.
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O mesmo autor considerava, contudo,
honestamente, numa análise ao seu próprio trabalho e em palavras
textuais que aqui transcrevemos:
«Assim nasceram estas cartas de
aptidão macroclimática em que tudo é discutível desde o rigor dos
dados da partida, até ao método de trabalho e aos critérios de
classificação.»
Com estas dúvidas tão claramente
expressas importa esclarecer em profundidade este problema de tão
grande interesse para esta sub-Região.
As espécies hortícolas com carácter
comercial têm presentemente importância na Gafanha. A cultura recai
em espécies de maior poder de conservação (a batata, a couve
lombarda) ou perecíveis (a ervilha) em que há a alternativa de venda
em vagem ou em grão seco, o que se por um lado dá melhor defesa ao
agricultar na sua comercialização, explica, pela sua limitação, as
dificuldades em que este comércio se processa. O seu carácter
especulativo sem estruturas de conservação (apenas existem armazéns
de batata) caracteriza um circuito comercial de tipo tradicional e
arcaico pois não permite quaisquer progressos na diversificação
cultural ao produtor isolado nem qualquer melhoria de abastecimento
ao consumidor, inserindo-se entre ambos o negociante, que salvo
raras excepções infelizmente é muitas vezes apenas um especialista
na especulação e outras mero transportador de ofício.
A diversificação e generalização de
uma horticultura comercial eficiente e moderna depara, a curto
prazo, com as limitações em que se exerce a actividade agrícola,
particularmente no que diz respeito à Gândara, em que a proporção de
pequenas unidades de produção é esmagadora. Dentro do tipo de
exploração minifundiária os progressos imediatos para a modernização
da Agricultura e introdução de culturas hortícolas são difíceis e as
opções culturais não podem ser muito flexíveis.
Micro-proprietários gerem estas
pequenas unidades de produção, como repúblicas independentes, mau
grado o sopro de progresso que vai arruinando esta concepção,
aumentando a solidariedade económica entre os agricultares e criando
o ambiente favorável à renovação das estruturas de produção e
comercialização.
A escolha de culturas hortícolas a
introduzir para a valorização deste importante e promissor sector da
actividade agrícola deveria considerar simultaneamente:
1.º – A sua maior ou menor aptidão
para os solos arenosos;
2.º – as que com crescente interesse
no mercado interno possam também vir a interessar à exportação pela
sua qualidade e preço;
3.º – aquelas que ofereçam boas
perspectivas em cultura de primor na zona favorecida neste aspecto,
a Gafanha, aferindo-se a precocidade pelos padrões dos grandes
mercados importadores (a batata semi-temporã em Abril e Maio e o
espargo, de meados de Fevereiro/ Março, etc.);
4.º – as que ofereçam interesse para
a produção de estação, quer na Gafanha, quer na Gândara (o espargo,
a cenoura, o feijão verde, a ervilha para fresco, e ainda a salsa, a
cebolinha, etc.).
Para dinamizar todo este sector será
contudo necessário criar as estruturas agora inexistentes que
modernizem o circuito comercial, promovam uma política de qualidade,
permitam levar ao consumidor nas melhores condições de apresentação,
valor nutritivo e preço os produtos hortícolas, incluindo os
perecíveis.
O estabelecimento de um centro de
recepção, transformação e comercialização necessita, antes de
mais, de homens bem preparados com capacidade para esta
transcendente tarefa, no plano comercial, no plano da produção
agrícola e da transformação tecnológica.
O progresso nas técnicas de produção
e de transformação tecnológica é hoje muito rápido e no sector
comercial, à ampla informação das características dos mercados,
requere-se um espírito realista e exacto, impregnado de bom senso e
perseverança e sentido do progresso que possa vencer as barreiras da
competição acesa nos mercados externos e conquiste a confiança dos
compradores estrangeiros.
Daí que a associação da Lavoura com
industrial competente e com provas dadas pudesse ser talvez uma
fórmula desejável.
O segundo ponto seria a instalação
das estruturas materiais necessárias em fases sucessivas de acordo
com um plano de prioridades enraizado bem fundo nas perspectivas
comerciais e na experiência ganha progressivamente.
O centro comportaria um ou vários
dos seguintes elementos, de acordo com os estudos e opções de
produção tomadas:
– equipamento de transformação
permitindo realizar, segundo a qualidade dos produtos e as condições
dos mercados uma ou as duas operações seguintes:
– conservação «por appertização», ou
seja, conserva por esterilização em latas;
– desidratação;
– estrutura para escolha, calibragem
e acondicionamento susceptível de garantir, segundo as exigências
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internacionais, a normalização, a selecção e embalagem de produtos
frescos destinados à exportação;
– equipamento frigorífico apto a
assegurar a pré-refrigeração, a «stockagem», a congelação
ultra-rápida (quick-freezing) em ligação com uma cadeia de frio.
É notória a crise que avassala a
Agricultura desta Sub-Região, paralela à que afecta todo o Noroeste.
A deterioração do nível de vida dos agricultores em relação às
outras classes bem a evidencia.
A relativa rigidez das suas unidades
de produção de dimensões liliputianas num contexto sócio-económico,
em que a propriedade e a exploração estão demasiado identificadas,
não tem facilitado a mobilização do factor terra em novos arranjos
de produção mais conformes com as exigências de modernização da
Agricultura.
Existem actualmente os diplomas
legais pelos quais o Estado concede empréstimos, subsídios e
comparticipações, por meio de fundos administrados pela Junta de
Colonização Interna, que permitem corrigir e renovar as estruturas
de produção e comercialização (Decretos-Lei sobre Emparcelamento,
Agricultura de Grupo, Fundo de Melhoramentos Agrícolas, Fundo de
Fomento de Cooperação, Fundo Especial de Reestruturação Fundiária).
Virá o suporte financeiro do Estado,
agora dotado de tão poderosos meios, na hora justa das aspirações da
Grei Rural, mal definidas ontem e por isso frustradas, hoje
alicerçadas no conhecimento lúcido, na consciência exacta do que
importa renovar e construir urgentemente?
Encontrará porventura uma massa de
agricultores receptivos aptos a vencer o desgaste das situações sem
mudança e a derrubar o isolamento no tempo e no espaço que sustenta
um acabrunhante e ultrapassado individualismo?
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(***) – Números que representam apenas
ordens de grandeza aproximadas. |