No catálogo dos homens
ilustres da Feira, destaca-se, em lugar de merecido relevo, o
nome do Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso, uma das mais
prestigiosas figuras da Feira, a quem se ajusta a conhecida
frase: «um grande homem em qualquer terra grande».
Nasceu em 14 de Abril de 1862,
na Casa do Montinho, desta Vila, sita no largo que hoje tem o
seu nome.
Era filho de Silvestre de
Aguiar Bizarro e de sua mulher, D. Maria Albertina de Sousa
Cardoso, por cuja cabeça aquela casa veio à posse da família,
neto paterno de Marçal Alves e de sua mulher Maria Máxima e
materno do tenente-coronel João Nunes Cardoso e de sua mulher
D. Maria Albertina da Gama e Sousa.
Seu pai foi o memorável Mestre
da Capela de S. Silvestre, por si fundada, na cidade do Porto,
da qual foi director-proprietário.
Seu avô materno veio para a
Vila da Feira com o batalhão de caçadores 11, que aqui esteve
aquartelado muitos anos: fez toda a guerra peninsular, onde
conquistou, pelos seus actos de bravura, a cruz n.º 3 da mesma
guerra e as cruzes de distinção pela Campanha da Andaluzia e
batalha de Vitória em 1813 e bloqueios de Pamplona e Baiona em
1814, o que lhe mereceu, também, honrosas distinções.
Foi um dos 7500 do
Mindelo: como capitão graduado de caçadores 12 alcançou o
grau de cavaleiro da Torre de Espada, depois de gravemente
ferido nas Antas, durante o cerco do Porto, aquando das
lutas liberais, merecendo o oficialato daquela mercê pelo
seu comportamento na batalha de Almoster.
Recebeu, ainda, as mercês
de cavaleiro da ordem militar de Avis e de Nossa Senhora
da Conceição de
/ 30 /
Vila Viçosa, a cruz de S. Fernando de 1.ª classe, de
Espanha e o título do Conselho de S. Majestade, pela Junta
do Porto em 1847. |
Dr. António Augusto de Aguiar
Cardoso |
HINO DO CAMINHO-DE-FERRO DO VALE DO VOUGA
I
Desde a beira-mar à Serra,
Galgando vales e montes
E rios por lindas pontes,
Correndo de terra em terra,
Sem descanso noite e dia,
Espalhas por toda a parte
Indústria, comércio, arte,
Vida, fortuna, alegria.
II
Gentil caminho-de-ferro
Do Vale do Vouga famoso
Caminho sempre frondoso
Onde canta o cuco e o melro,
Nós te cantamos também
Um hino de gratidão
Dos povos da região,
Reconhecendo seu bem.
III
Que uma aventura ideal
Doire a vida desta Empresa
Tão bela, tão portuguesa,
Por honra de Portugal!
E a família ferroviária
Do Vale do Vouga mantenha
A união como senha,
Com seus chefes solidária.
O Dr. Aguiar Cardoso cursou, com brilho, o seminário de
Santarém, completando os estudos secundários no Porto, findos os
quais se matriculou no Primeiro ano da faculdade de Matemática,
em Coimbra.
Falecendo seu pai, em 1882,
abandonou esta cidade para ocupar o lugar que aquele exercia de
director da referida Capela de S. Silvestre, acumulando com o de
empresário do teatro, de ópera lírica, de S. João, da mesma
cidade do Porto, revelando assim, desde muito novo, a sua
vocação para a música, arte que cultivou toda a sua vida,
evidenciando-se como compositor e grande músico.
Casa do Montinho, na Vila da Feira,
onde nasceu e morreu o Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso.
Entretanto frequentou o curso de
medicina, que completou em 1892 com altas distinções e
classificações, uma das maiores do seu curso, sendo aprovado com
louvor no acto final e distinguido com o prémio Macedo Pinto
pela sua dissertação inaugural «Contribuição para o estudo da
anatomia patológica das ovarites», tendo conseguido tudo sem
abandonar as suas actividades musicais.
Recusou a cátedra, facto que o
ilustre médico deste concelho Dr. Crispim Teixeira Borges de
Castro comentou, com espírito, em artigo de homenagem publicado
no «Correio da Feira», de 9 de Abril de 1932 – «S. Ex.ª deveria
há muitos anos ter sido coagido por utilidade Pública, já
que voluntariamente não cedeu, a reger uma cadeira d'ensino
superior, onde não seria apenas professor distinto, mas dos mais
ilustres, seguramente, em qualquer das Universidades
Portuguesas».
Tirou, ainda, o curso de
farmácia.
O Dr. Aguiar Cardoso nasceu sob
o signo da força, coragem e da arte, que recebeu do sangue dos
seus maiores.
/ 31 /
Possuidor de uma vigorosa
inteligência, ao serviço de uma sólida erudição, habituado à
dureza de um trabalho perseverante e portador de um temperamento
austero, conseguiu realizar uma obra notável, o que D. Fernando
Tavares de Távora consubstanciou, em justa apreciação – «Para
tudo lhe chega o tempo e tudo aquilo de que se encarrega executa
com perfeição».
Amável e carinhoso, sobretudo no
exercício da sua profissão e no convívio social, que cultivava
com elegância de atitudes e de maneiras, tanto se entregava nos
braços arrebatadores das suas devoções artísticas, como poeta
sonhador que era, como procurava a mais perfeita realização das
suas múltiplas actividades, o que conseguia com mestria e
notável disciplina mental.
O grande homem de letras –
aveirense nato – Dr. Jaime de Magalhães Lima focou este traço
fundamental da personalidade do Dr. Aguiar Cardoso, em termos
bem expressivos, no número de homenagem que «O Jornal de
Estarreja» lhe dedicou «...é assim que o poeta nos obriga
imediatamente e sem hesitação a atribuir-lhe aquela excepcional
categoria de – poeta prático – na qual Waldez Crane reuniu o
carácter fundamental do espírito e da arte de um dos grandes
génios artísticos do seu tempo».
Felizmente, há já alguma
literatura que auxilia o estudo deste ilustre feirense, entre o
qual se destaca o lúcido artigo que lhe ofereceu em homenagem, o
que foi distinto médico na cidade do Porto, Dr. António Caetano
Ferreira de Castro, publicado no «Jornal Médico», da mesma
cidade, n.º 56 de 15 de Maio de 1943, que foi distribuído em
separata, sendo um dos mais completos que conheço sobre a vida e
a obra do Dr. Aguiar Cardoso.
Também me foi possível colher
muitas informações, ainda inéditas, no seu arquivo, que me foi
gentilmente facultado.
Começo o estudo das actividades
deste ilustre feirense, embora sucintamente e com difícil
limitação pela síntese que a natureza deste artigo obriga, pela
referência à sua profissão de médico, eixo da sua vida pública,
à volta do qual se desdobraram todas as demais actividades,
profissão que constituiu, pela nobreza do seu carácter, a sua
constante preocupação, na qual confundia o cumprimento do seu
dever com a devoção.
Depois de concluído o seu
brilhante curso na Escola Médico-Cirúrgico do Porto e de
renunciar ao magistério superior, para o que, aliás, estava
talhado magnificamente, veio exercer a medicina para a Vila da
Feira onde, pela sua competência e muito zelo, conquistou um
grande nome.
Em 1893 foi nomeado subdelegado
de saúde e médico municipal, nesta vila, cargos que exerceu até
à sua aposentação por limite de idade: pertenceu à Associação
Médica Portuguesa de Lisboa e à Associação Médica Lusitana, do
Parto.
Iluminado por altas qualidades
profissionais, culto, trabalhador, racionalmente destemido,
solícito e muito humano, alcançou um lugar de destaque, em toda
esta região, quer entre os seus colegas, quer no meio da sua
numerosa clientela e a consideração e respeito de sumidades
médicas e de altas personalidades pelas suas situações sociais e
seus méritos.
Apesar das variadas e inúmeras
preocupações que o assediavam, sempre se manteve actualizado,
como bom mestre de medicina, em todas as novidades
médico-farmacêuticas, com as quais fácil e rapidamente se
familiarizava: as suas conversas sobre medicina eram lições.
Colaborou assiduamente em
diversos jornais e revistas da especialidade, como «Posto
Médico», «Medicina Moderna» e «União Médica» e interveio em
jornadas que se tornaram de perdurável memória, como seja o
Congresso dos Médicos Municipaes (Lisboa 1911), promovido pela
Associação dos Médicos Portugueses, no qual se destacou ao
relatar a tese sobre a situação dos partidos ou vencimentos dos
facultativos e honorários de pulso livre e pulso cativo, encargo
que desempenhou de forma a merecer, do Dr. Ricardo Jorge,
palavras de grande elogio, quando afirmou que ele revelara um
estendal de misérias, de vexames e de imoralidades, tendo feito
a «Anatomia Normal e Patológica dos partidos».
Do mesmo modo se evidenciou no
1.º Congresso Nacional de Deontologia Médica e Interesses
Profissionais, que se realizou no Porto, no ano seguinte, como
relator da tese «Medicina pública no meio rural», focando, com
invulgar vigor e desassombro, «o que era, em Portugal, a
assistência pública, a higiene pública, a medicina judiciária e
o funcionalismo médico, editando notas elucidativas às suas
conclusões» (citada abra do Dr. Ferreira de Castro).
Desta vez mereceu, do professor
Dr. Tiago de Almeida, grande louvor: «Notável relatório que é
mais uma afirmação da sua bela inteligência e do seu apurado
critério científico».
Notabilizou-se, de modo muito
particular, como médico legista, sobretudo no campo da
psiquiatria, pelo brilho dos seus exames, relatórios e de outros
trabalhos da especialidade que mereceram os maiores e mais
distinguidos elogios por parte dos seus superiores, de sumidades
deste ramo da medicina e dos tribunais (designadamente dos
superiores).
Era citado pelo sábio professar
Doutor Elísio de Moura, nas suas aulas, reputando-o um dos
melhores médicos de medicina rural.
Como subdelegado de saúde e
médico municipal, desenvolveu grande e proveitosa actividade e
intensas campanhas, como aconteceu no tocante ao cumprimento
/ 32
/ da lei reguladora do exercício das tabernas e à
extinção da mendicidade na vila, sendo notáveis os seus
pareceres para a Direcção Geral de Saúde.
Meticuloso no que dissesse
respeito às suas obrigações profissionais, olhava atentamente
para tudo que pudesse interessar à saúde e salubridade pública
em todo o concelho com solícita e oportuna intervenção.
No campo da assistência, além do
já referido, o Dr. Aguiar Cardoso evidenciou-se em valorosas e
justas campanhas, como adiante se anotará, interessando-se pela
construção de um Asilo da Infância, junto do edifício da Igreja
da Misericórdia, desta Vila, onde o Dr. Domingos Caetano de
Sousa, seu ilustre sucessor na provedoria, fundou o «Abrigo dos
Pequeninos», modelar instituição de assistência, que já funciona
desde 1940.
Merece também justa referência a
acção que ele desenvolveu – como director da comissão
administrativa do Hospital – Asilo de Nossa Senhora da Saúde, de
Oleiros e como provedor da Santa Casa da Misericórdia desta
vila, em defesa da qual se lançou numa grande e penosa luta para
acabar com injustiças que atingiram os que, no país, se
apresentavam mais pobres e sem recursos para alcançar os seus
fins.
Música do Dr. Augusto de Aguiar
Cardoso.
Enamorado, apaixonadamente, pela
sua terra natal, deu-lhe o melhor da sua vida em esforço e
dedicação, oferecendo-lhe os inesgotáveis recursos da sua
inteligência e trabalho para a nobilitar e engrandecer e o vigor
da sua pena e a persuasão da sua palavra para a defender,
esforço que foi sintetizado, em gosto requintado, pelo Dr.
António Ferreira Soares, grande escritor feirense, natural da
freguesia de Nogueira da Regedoura, no formoso artigo de brilho
literário inexcedível, com que homenageou o Dr. Aguiar Cardoso,
no referido «Correio da Feira» de 1932, aquando da sua
aposentação.
«...É mais que um homem de
paixão por uma causa: isto é um condenado a trabalhos forçados
por toda a vida, condenado pelo infinito amor à sua terra... e
ao reparar no desabalado amor que ele dá às causas da sua Terra,
a gente tem a impressão de que aquela alma descarregou sobre a
terra natal o doce e formidável amor que os pais aguentam por um
filho.»
Bateu-se na imprensa local pela
integridade do concelho e da comarca da Feira, a ponto de
repudiar amizades antigas, pelos problemas da administração
local e melhor aproveitamento dos seus réditos: como disse o já
mencionado Dr. Crispim Borges de Castro – no citado artigo de
homenagem «Dir-se-ia que o seu penacho altivo de cavaleiro
indomável percorre e vigia desafiante a orla sagrada do nosso
território».
Este seu amor bairrista foi a
mola propulsora, que o tornou uma figura destacada entre os
cultores da história regional.
Dedicando-se, especialmente, ao
estudo das Terras de Santa Maria e do Castelo da Feira,
espalhou, por jornais e revistas, trabalhos que, pela sua
erudição, elevado critério de investigação, com elegante forma
literária, o consagraram como notável investigador histórico.
Sabendo que a sua terra era bela
em história, quis na sua propensão catedrática, estudá-Ia para
bem a poder glorificar, ensinando com verdade.
Para enumerarmos alguns dos
seus principais trabalhos, lembramos: em jornais da vila –
Memórias do Concelho da Feira (79 artigos), Migalhas de
História do Concelho da Feira (54 artigos), A Nossa Terra da
Feira na literatura (10 artigos); no «Tripeiro» (três
artigos sobre a Terra de Santa Maria – Civitas Sanctae
Mariae – Civitas Virginis; no «Portucale»; e ainda, usando
uma sua habitual expressão, a «famosa» dissertação histórica
– «Terra de Santa Maria – Civitas Sanctae Mariae – Civitas
Virginis» (1929), publicada na revista «Instituto», de
Coimbra, do qual se fizeram separatas, onde o autor
estabeleceu bem a distinção entre a Civitas Virginis – como
cidade do Porto e Civitas Sanctae Mariae – designação que
reivindica para a Feira, como sede da vasta região que se
denominou Terra de Santa Maria. |
O Castelo da Feira antes das
obras de restauro. O Dr. Aguiar Cardoso junto à porta norte
da Torre de Menagem. O seu coração também estava em ruína. |
Outro trabalho, que ainda não
foi impresso, diz respeito ao «Brasão de armas do concelho da
Feira», que elaborou para satisfazer o pedido que lhe foi feito
pela Câmara Municipal, em 1916, para o estudo do novo brasão da
vila, que ele ordenou e foi adoptado até 1942, data em que foi
substituído pelo actual, já aprovado oficialmente.
Mais uma vez desenvolveu o seu
racional bairrismo, dando a merecida autonomia ao brasão da
Feira, aliviando-o da velha e injustificada subordinação ao da
cidade do Porto.
Os seus artigos e trabalhos
encontram-se dispersos pelas referidas revistas e ainda pelos
jornais do Porto – «Primeiro de Janeiro» e «Comércio do Porto» e
pelas locais – «Correio da Feira», «Democrata Feirense», «Vila
da Feira» e «Tradição».
O Dr. Aguiar Cardoso encontrou a
sua segunda natureza, já que dedicara a primeira exaustivamente
às suas obrigações profissionais, no culto e no exercício da
música, como manifestação do seu apurado temperamento artístico.
Atavicamente predisposto para
ela, desde jovem já acompanhava a órgão nas solenidades
religiosas em Santarém, quando aí frequentava o seminário e
teve, depois, como já dissemos, que substituir seu pai na
direcção da Capela de S. Silvestre, no Porto, tendo em
concorrência com os seus deveres estudantis, tomado o
/ 33
/ encargo de
empresário do teatro de ópera lírica, de S. João, naquela
cidade, distribuindo muito tempo, que talvez necessitasse para o
seu descanso, em organização de festividades religiosas e como
organista nos templos da mesma cidade, no que se revelou exímio.
Também o foi como compositor,
organista e pianista, sendo-lhe conhecidos: para órgão (canto
Sacro, um Madrigal e o Vento de Outono); em música sacra (cinco
ladainhas, quatro Ave Marias, três Tantum Ergo, uma Missa, uma
Salve Rainha, um Padre Nosso, dois Salutaris, um Te Deum e dois
Veni, Sancte Spiritus); para banda (hinos do Caminho de Ferro do
Vale do Vouga», com letra sua e de «Arrifana», em justa
homenagem a esta freguesia do concelho da Feira, que ele, como
bom feirense, tanto estimava, com letra de Saul Eduardo Rebelo
Valente).
Compôs ainda a «Canção da
Tristeza», com letra sua, sob o pseudónimo «Ermigio Monin».
Organizou, dirigiu e ensaiou a
Tuna Orfeão Feirense, fundada em 1912 pelo Dr. António Sampaio
Maia.
O Castelo da Feira em 25 de Maio
de 1910. O Dr. Aguiar Cardoso reúne-se comos seus
condiscípulos. |
Reorganizou-a em 1934, como
Orfeão Feirense, que se estreou, sob a regência de outro
músico feirense, António Martins.
Este grupo coral exibiu-se,
quer nesta vila, quer em muitas outras terras do país, com
grande êxito e agrado geral.
O abandono a que foi votado
o Castelo da Feira, durante muito tempo, levou-o a um estado
de ruína confrangedor, com as suas muralhas a desabar,
envolto num matagal selvagem, atestado de uma vergonhosa
incúria por parte de quem tinha a obrigação de o conservar e
zelar. |
Pela fotografia que se publica,
onde se vê o Dr. Aguiar Cardoso junto à porta de acesso à torre
de menagem, lado norte, pode fazer-se uma ideia do estado em que
ele estava.
Quase nada se fazia para o
livrar de tão angustioso situação.
No século passado, a Câmara
Municipal da Feira deu-lhe uma assistência esporádica, sempre
insuficiente e o Estado raras vezes se lembrava dele. Porém, no
princípio deste século, os feirenses começaram a tomar a
verdadeira consciência das suas responsabilidades e obrigações
para com o monumento, desiludidos das medidas que reclamavam e
esperavam, em vão, dos poderes públicos.
Em 1905, alguns bairristas,
entre os quais se destacou Afonso Couto, deram a arrancada,
iniciando uma intensa campanha de protecção, para o
ressurgimento do nosso Castelo.
Entre essa plêiade de homens,
surgiu a personalidade do Dr. Aguiar Cardoso, que pelo seu
prestígio, encabeçou, com o escol dos feirenses, um movimento
contínuo e acelerado de defesa daquela jóia arquitectónica, do
que resultou, pela sua acção arrojada e dinâmica, a criação, em
1909, da «Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do
Castelo da Feira»,
/ 34 / «verdadeira ala de
namorados que ali se organizou então e que, sem os
propósitos aguerridos daquela que tão celebrada foi na Batalha
de Aljubarrota, desempenhou deveras, como ela, a mais honrosa e
profícua missão» (Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais – o Castelo da Feira, págs. 19). Nela
reservou, para si, o lugar de secretário (que pelo que se viu,
nesse tempo já não era uma posição modesta), dando a presidência
ao benemérito feirense Fortunato da Fonseca Meneres; mas de
facto, ele foi, até ao seu falecimento, a cabeça pensante, o
mentor e o principal obreiro da comissão, sempre aberto a
receber todas as sugestões e pareceres que lhe eram feitos.
A partir daí, graças ao trabalho
do Dr. Aguiar Cardoso, o Castelo renasceu em toda a sua beleza,
graciosidade e valor, como belo monumento militar e preciosa
obra de arte que é: viu desvastada a vegetação que o danificava
e impedia a sua visita e acesso conveniente, consolidadas as
suas muralhas e detalhes, completada a sua vedação, restaurado o
edifício da sua capela, enfim cicatrizadas muitas das suas
feridas, que ele soube, generosamente, tratar e curar.
Salvo da ruína, pôde aguardar
que o Estado, em 1935, por intermédio da Direcção-Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais, iniciasse a sua reconstituição
e completasse o seu restauro.
Mas o certo é que, sem o seu
esforço, o Estado chegaria muito tarde e teria que levantar, em
grande parte, um novo Castelo com as pedras que aí se
encontrariam amontoadas e envolvidas na mais degradante flora.
Razão tinha, quando proclamava,
na circular dirigida aos feirenses, para a constituição da
comissão: «esperar do Estado providências eficazes é dum
platonismo escarninho e irrisório».
Foi esta uma das mais belas
jóias conquistadas pelo Dr. Aguiar Cardoso para a sua coroa de
glória.
Franqueado o Castelo aos
turistas, já em condições de ser visitado, publicou, em 1935, um
interessante e útil folheto – «Castelo da Feira – guia do
visitante» que, mais tarde, foi revisto pelo Dr. Vaz Ferreira e
ainda hoje se distribui.
O seu temperamento vibrante,
indomável e firme, servido por uma vasta cultura, com fácil
poder de expressão, quer por uma fluente e atraente dicção, quer
por uma escrita clara e de brilhante recorte literário, dava-lhe
uma supremacia que o tornava, ao mesmo tempo, temido e
respeitado nas polémicas. Esgrimia com dedução lógica, erudição
e poder de convicção, muitas
/ 35
/ vezes duramente, até atingir os limites da
intransigência e, por vezes, com perca da serenidade desejada.
Assim acontecia, geralmente,
quando se julgava atingido pela impertinência ou inconveniência
do seu contraditor, menospreza a sua personalidade e o seu
esforço de investigador, ou via contestadas princípios que
reputava basilares e a que, em seu entender de historiador
sério, se devia obediência.
Não era, porém, um obstinado,
reconhecendo, honestamente, os seus erros.
Independente como era, a sua
consciência não admitia, aos outros, natureza diversa,
contrariando-se muita quando estes não respeitavam a razão que
ele criava em largos e profundos estudos e prolongada reflexão –
«a sua razão» – e não a alheia, embora de facto, por vezes, não
fosse essa a perfeita e preferível.
A têmpera do grande polemista
inquebrantável não permitia que se entregasse a situações fáceis
ou duvidosas: não tinha duplicidade nem nos seus pensamentos,
nem nas suas acções.
Estava habituado a viver
certezas, firmando-se no ponto central do círculo das suas
razões, em vez de se colocar, como tantos, no vértice comum de
muitos ângulos, para poderem alcançar as melhores saídas de
conveniência.
As suas principais polémicas
originaram-se na defesa do prestígio e dos interesses
relacionados com a profissão e cargos que exerceu, com suas
implicações sociais, das instituições que representava e dos
interesses históricos, morais e materiais da sua terra natal.
Entre elas nomeamos: as que
sustentou, nas referidas revistas médicas e, no «Democrata
Feirense», com o padre Augusto de Oliveira Pinto que, no jornal
da Feira, «Tradição» e sob o pseudónimo «Políbio», contestava
ter sido a Feira a sede da Terra de Santa Maria; como membro da
comissão permanente da inspecção e fiscalização aos
estabelecimentos de venda de bebidas, para que se cumprisse a
lei que, no concelho da Feira, estava a ser desrespeitada pelo
administrador do concelho no tocante ao funcionamento das
tabernas; como director da comissão administrativa do já
referido Hospital-Asilo de Nossa Senhora da Saúde de Oleiros e
provedor da Santa Casa da Misericórdia da Feira, acusando a
Direcção-Geral de Saúde da prática de injustiças e
arbitrariedades na distribuição de subsídios às Misericórdias,
do que resultavam grandes prejuízos para as instituições mais
necessitadas, entre as quais se incluíam as que ele
representava, campanha que teve o seu epílogo no 3.º Congresso
das Misericórdias realizado em Setúbal, em Abril de 1922, onde
defendeu, ardorosamente, a sua tese.
Dela resultou a publicação de um
opúsculo, por ele feito, denominado – «A distribuição de
subsídios aos institutos de caridade no último triénio de 1928 a
1930, Porto 1931».
Como secretário da «Comissão de
Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo da Feira»,
comparticipou num movimento para impedir, o que conseguiu, a
construção de um palacete muita perto das muralhas do monumento,
campanha que muito apaixonou a opinião pública, quer dos
feirenses, quer de outros sectores do país.
O Dr. Aguiar Cardoso nunca teve
motivo para se arrepender da abnegada dedicação à terra natal e
ao Castelo: dado o seu Prestígio, era homenageado
quotidianamente pelos seus concidadãos que muito o acarinhavam
com provas inequívocas de consideração e de respeito, assim como
hoje veneram a sua memória, lembrando-a com muita saudade.
Recebeu muitas homenagens, entre
as quais podemos destacar a que lhe foi prestada, aquando da sua
aposentação, pelo jornal local – «Correio da Feira», «O Jornal
de Estarreja» e «Jornal de Cambra», em artigos firmados por
altas individualidades, por meio de festas artísticas como
aconteceu, nesta vila, em 1924, pela Câmara Municipal da Feira,
em 1929, dando o seu
/ 36
/ nome ao largo fronteiro à casa onde nasceu, pela
colocação da sua fotografia na Biblioteca – Museu Municipal, no
compartimento reservado àquela «Comissão de Vigilância pela
Guarda e Conservação do Castelo»; e, ainda, pela colocação de
uma lápide, na barbacã do Castelo da Feira, em Junho de 1940,
lembrando quanto esta Comissão ficou a dever, ao seu fundador,
durante os 27 anos da sua gerência.
Em 1921 foi nomeado vogal
correspondente do Conselho de Arte e Arqueologia da 2.ª
Circunscrição com sede em Coimbra e sócio correspondente da
Associação Arqueológica Portuguesa de Lisboa.
A sua vida, obra, memória e
a projecção do seu nome através dos tempos, exigem, à actual
geração, que amortize, na diminuta parte que lhe é possível,
a dívida de gratidão que para com ele contraiu, promovendo a
publicação, em volume, dos seus escritos históricos e demais
que se julgar conveniente (o que de resto se deve estender
aos trabalhos, ainda não reunidos em volume, doutros grandes
feirenses), perpetuando-o em bronze, em lugar público da
vila e conferindo-lhe, a título póstumo, a alta distinção
com que, à Câmara Municipal, é dado galardoar os altos
méritos municipais. |
Castelo da Feira - Barbacã.
Lápide de homenagem ao Dr. António
Augusto de Aguiar Cardoso. |
Lembramos que esta, na sessão
plenária de 22 de Novembro de 1921, aprovou a proposta de Saul
Eduardo Rebelo Valente para que fosse recomendado, à respectiva
Comissão Executiva, incluir no seu orçamento suplementar a verba
suficiente para fazer face à despesa com a publicação dos
trabalhos do Dr. Aguiar Cardoso – mas o certo é que nunca se fez
tal publicação.
A cabeça do Dr. Aguiar Cardoso
mantinha-se, sempre, em plena e saudável elaboração: mas, nem
assim, a sua alma se perturbava ou se confundia.
Descansava no sossego do seu
lar, assistido carinhosamente por sua mulher, a senhora D. Maria
do Carmo Mota de Aguiar Cardoso, protectora dos pobres, que
tanto conforto distribuía pelos que sofriam, completando, pela
caridade e piedade, a missão humanitária de seu marido.
Suavisava a sua alma e a
tormenta dos seus labores, com o encanto das flores do seu
jardim, que cultivava com esmero, jeito e perfeição de um bom
jardineiro.
A memória do Dr. Aguiar Cardoso
não precisa de ser amparada – para sobressair: floresce, sempre,
na alma de todos os que o conheceram e o vão conhecendo.
Cada ano que decorre depois da
sua morte imprime mais uma pincelada de cor e de luz sobre o
quadro da sua vida, que ele próprio pintou e legou à posteridade
como guia e para exemplo.
Faleceu na sua casa do Montinho
no dia 2 de Março de 1937, deixando à sua terra, em testamento
espiritual, uma seara madura, plena de fruto.
No dia seguinte, foi a enterrar
no cemitério local e a partir daí:
«Começou, então, o gigante do
concelho, a dormir no cemitério da Vila o sono eterno, à eterna
sombra desse outro gigante – o Castelo da Feira (Dr. Ferreira de
Castro – cit. obra»).
E ainda desta vez – não ficou
completamente dito quem foi o Dr. António Augusto de Aguiar
Cardoso.
Vila da Feira – Casa das Ribas
Abril de
1970. |