Hoje, quase poderíamos dizer
continuarem em laboração, na Ria de Aveiro, as mesmas carreiras
navais donde saíram, há mais de seis séculos, os navios bacaIhoeiros
construídos no reinado de D. Pedro, o Cruel, ou os que, na era de
quinhentos, foram integrados na Invencível Armada e com ela não
pereceram para se tornarem presa fácil de pirataria inglesa e
holandesa, ou ainda, menos remotamente, aqueles veleiros latinos do
último quartel do século passado e alvores do nosso século, que
restabeleceram entre nós a pesca do bacalhau, há centenas de anos
caída no esquecimento.
O pano todo largo. |
Aqui e ali, ainda se vê o
machado que cortou o carvalho e a enchó de ribeira que talhou o
cavername dos navios de arte redonda e dos lugres e dos
palhabotes, como a perenizar um artesanato que serviu o génio
irrequieto da raça que desbravou os mares, ligando povos e
civilizações. |
Aqui foram construídos e daqui
saíram muitos dos barineis que, navegando para norte ao longo da
costa, arrostaram com as tormentas da Biscaia para atingir o litoral
da Grã-Bretanha, aonde abundava o «gadus» que, esventrado,
espalmado, salgado e seco, se tornou responsável pela nossa
inclinação e preferência gastronómica.
Com os irmãos Gaspar e João Corte
Real e a plêiade de exploradores do Atlântico noroeste que os
seguiu, iniciou-se uma segunda era que teve nesta ria de Aveiro um
dos maiores centros, não só de armamento como de construção.
Daqui largavam anualmente
dezenas de navios apetrechados e munidos, com destino à ilha da
Terra Nova, aonde tinham bases e feitorias que lhes permitiam a
exploração das pescas nos bancos ribeirinhos, tão fartos em
bacalhau, até que Drake, o hábil marinheiro inglês, numa manobra
feliz e de mestria, os destruiu, ao atirar sobre os baixios da
Mancha a Armada de Filipe II, que a tormenta destroçou. |
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Groenlândia, 1943. Largada para a
pesca. |
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O pouco que nos ficou e teimava
afanosamente continuar a pescar nas águas frias da corrente do
Labrador foi também pilhado, como fazendas do Demónio do Meio
Dia.
Só três séculos mais tarde, em
pleno reinado de D. Luís – 1875 –, num surto de desenvolvimento
económico, é constituída em Lisboa uma empresa armadora de
navios destinados à pesca do bacalhau, para o que foram
adquiridas em Inglaterra seis escunas apetrechadas e com
monitores para orientar e instruir as equipagens portuguesas.
Esta iniciativa, que redundou
num fracasso, serviu no entanto de ponto de partida para novos
empreendimentos, tentados por outros armadores do Tejo. |
Nevoeiro!... O
sino badala ecoando
na salgada planície. |
Mas é às gentes desta nossa região
que se apoiam. É aos ílhavos, povo daqui da nossa Ria, mas a ela
quase estranho e alheado, que são entregues os principais postos dos
novos navios.
Gente vinda não se sabe donde nem
quando, mas que aqui não pode ter tido origem, por tão dissemeIhante
e díspar com os outros povos desta encantadora ria, de paisagem
suave e nada propícia à formação de aventureiros ou de heróis; gente
audaz, de espírito retemperado e endurecido por séculos e séculos de
solidão e sofrimento passados na imensidão oceânica, capaz
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de arrostar com as privações e intempéries, sem vacilar, e de
suportar as doenças e as saudades, por meses e meses sem conta, sem
fraquejar; gente altiva, para impor em seu redor a disciplina e o
ânimo que levaram Portugal de antanho através dos mares
desconhecidos e que jamais perde o sentido do dever e da missão a
cumprir, nem quando vivendo à mercê de Deus; gente que, mesmo
fugindo às ondas e à maresia, vivendo a fragrância dos campos ou o
requinte dos salões, traz na fronte o desassombro dos horizontes
claros do mar e na alma um misto que denota raízes de convívio com a
grandeza oceânica; foi entre tal gente que foram escolhidos os
capitães, pilotos, contramestres e cozinheiros para chefiar e
conduzir os pescadores, recrutados na orla marítima a sul do Tejo,
hábeis e extraordinários no manejo das artes de pesca, mas gentinha
que era apenas da borda d'água e do marzinho, só endurecida pela
labuta nas rudes lidas da arrebentação na praia.
No mar alto, esse colosso imenso
e terrível, tudo é diferente. E quando olhado do convés dum
veleiro sob a tempestade, com o sibilar do vento na mastreação e
cordame e o gargalhar das campas, ao dobrarem e correrem sobre
si mesmo, rebentando como na praia, só não amedronta e paralisa
os loucos ou os gigantes.
Com tal garantia, e adaptadas as
novas companhas aos rigores da modalidade esquecida há séculos,
Inicia-se uma corrida ao armamento de navios bacalhoeiros,
cabendo de novo à nossa Ria o primado na compita.
Aveiro volta a ser o empório do
bacalhau e tudo quando, desde então e até hoje, foi feito nesta
modalidade de pesca, sua evolução e fomento, aqui teve princípio
e aqui lhe foi dado corpo. |
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Grande sacada! Cerca de 45 toneladas
de bacalhau e red-fish estão à borda do arrastão clássico Santo
André (1961). |
Os anos trinta trouxeram consigo a
derrocada económica e até os peixes, nas profundezas abissais do
oceano, parecem ter-se mancomunado para tornar negros os dias de
quem tinha capitais investidos na indústria de que eles são a
matéria-prima.
Desde o banco George, ribeirinho de
Boston, aos «lejos» do Virgem Rocos e Nainefadas das Pedras do
Leste, estendendo-se pelo Platier e «espalcos» do Grande Banco, no
Sapato, no Pé ou no Camandro, seguindo pelo Banco Verde, S. Pierre,
Ilha das Burras, Miligrão e Esmeralda, só arraias e algum «sanapaio».
No Manolejo, colados no visgo, os ferros criavam carepa, as amarras
tingiam-se de limos e as boias juntavam pampos, enquanto as luas íam
passando na esperança de alguma trazer águas menos luzas e mais
piscarentas.
O gusano e o taredo, extra,
extravasando maldade e destruição, apoderam-se dos donairosos lugres
e iates, envelhecendo-os, não tanto pela idade como pelas
vicissitudes e faltas resultantes da depressão económica que tudo
submergia. E conservados quase só com a boa intenção e muito
trabalho da marinhagem, esfregados, raspados e ligeiramente
pintados, que o dinheiro era pouco e a tinta cara, fazendo água como
canastras, que algumas costuras já nem a estopa aguentavam, eles aí
iam, dia e noite a manivela da bomba de esgoto nas unhas e sem nunca
desferrar, velas desfraldadas, mas só as baixas e de entre mastros,
mais a polaca e a do estai, que a bujarrona era pesada e o aumento
de água no
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estrutura não aguentava grandes puxões. Nas «estensulas» e na mesena,
nem pensar nisso, que o navio, por artes ou malas-artes, tinha que
voltar a porto de salvamento.
Arrastão de popa Santa Isabel,
construído em S. Jacinto (1965).
Assim ia definhando a pesca do
bacalhau, quando um armador da nossa praça, ao tomar conhecimento
que, nos confins da Groenlândia, alguns pescadores nórdicos faziam
boas safras, concebeu a ideia de se tentar o empreendimento, solução
única e capaz de resolver o seu problema financeiro.
Mas quase poderíamos garantir que no
projecto e cálculo de probabilidades do intemerato e visionário
armador deve ter surgido, como pedra angular, a confiança que os
vizinhos ílhavos lhe ofereciam de que – ele tinha a certeza – seriam
capazes de levar a bom termo o seu intento, sem nada mais exigirem
do que os magros e usuais proventos dum trabalho rotineiro.
Lá foram, com Deus, os quatro que
isoladamente isso intentaram, sem nada saberem uns dos outros, nem
ninguém deles saber.
Na Vila, sempre tão nua de vegetação
como a paisagem do mar, aonde o ar é salino e de cheiro a maresia,
aí rente ao meio dia, por costumeira, o mulherio assoma vezes sem
conta à porta da rua, a saber do carteiro sempre tardio. Mas mal vai
quando passa lesto e antes da hora.
Naquele tempo, a impaciência mais
aumentava se no ar corria o sussurro longínquo da vozearia que
anunciava : – Vieram cartas do Banco! Cartas do Banco!...
Levadas a algum porto das costas do
fim do mundo por «trola» francesa ou iate canadiano que passou à
fala, sempre contavam – era da norma – quando e quais os navios que
tinham sido avistados, sinal certo e seguro de que a essa data ainda
havia vida nesses pequenos mundos do oceano. Mas dos quatro nada
diziam nem ninguém sabia.
Era tão comum partirem e nem rasto
deixarem que até na farmácia, com o andar dos tempos, os seus nomes
deixaram de vir à baila, como que já envoltos num silêncio
respeitoso, quase fúnebre.
Mau tempo. Um arrastão clássico aguarda
de capa.
A campanha foi avançando para o seu
termo e Setembro ia já quase todo fora, quando da Costa, mas mais
cedo do que o habitual, voa o rebate alvissareiro que lança um
frémito em toda a vila: Navio à barra!... Navio à barra!...
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Em alvoroço, o proviléu salta p'rá
rua e os mais lestos, em corrida desenfreada, pedalam para a praia
na ânsia do reconhecimento.
Quem seria o felizardo, se as cartas
só relatavam miséria?!
Naquela tarde, o sol já encarniçava
o poente em cariz de bom tempo e o vento, que durante todo o dia
tinha soprado em remandiolas, crescia do norte bonançoso a limpar de
todo a sarria que empoalhava levemente o horizonte.
Ao longe, o lugre, com o pano todo
largo e a bandeira a tope, em sinal de regozijo, vem amurado por
bombordo, na bordada de terra.
Na Meia Laranja a discussão é acesa.
É!... Não é!... Teimam uns e outros, mas todos aguardam quase em
suspenso.
Lento, o veleiro vem avançando até
que, ao sondar as dez braças, mete à orça, enfia no vento e camba a
bombordo... Era mesmo um dos quatro que se receava perdido.
Pairava ainda este «chape-xuga»
frente à barra, perdidas já duas luas em mortificante espera de água
para entrar, quando viu surgir na linha do horizonte a silhueta
elegante dum outro veleiro, mas emarado, que o vento fora soprava
baixo e já fresco, convés corrido, limpo e desempachado, sem botes,
sem gaiuta e sem albóis, sem borda, apenas destacada pelos cabeços
esgalhados, que a bordo pensaram ser navio de viagem seguindo ao seu
destino.
Navio Santa Mafalda, de regresso das
provas de navegabilidade.
Mas aqueles olhos de marinheiros
habituados a perscrutar o horizonte, quer sob a reverberação solar
ou nas sombras e negrumes da noite e da cerração, notaram naquela
mestreação e aparelho um ar familiar.
Era o Isabel!... Metido, ajoujado em
sobrecarga brutal, na ânsia de trazer riquezas – para outros, nanja
para os que o tripulavam, felizes e ufanos da missão cumprida –,
vergado ao peso e aos maus tratos, ferido, mostrando no seu convés a
marca do algoz, mas digno e firme como uma rocha, sob a mão vigorosa
e hábil do Labrincha, incontestavelmente o maior marinheiro do seu
tempo.
Quatro navios e quatro capitães,
nomes que já ninguém lembra e quase que ninguém fixou. Gente modesta
e simples nas maneiras, bondosos e afáveis no trato. No seu porte
nada havia de brutal nem de heróico, e o que em terra tinham de
tímidos e contrafeitos, no mar eram gigantes que tratavam a Deus por
Tu, que no Céu manda como eles mandavam a bordo dos seus navios.
Durante quase quarenta anos, os
bancos da costa oeste da Groenlândia desentranharam-se em riquezas e
tragédias. No surto desta abundância, tudo aumentou e cresceu; o
armamento criou vulto e a bordo... Mais perigos, mais sustos e
mais canseiras.
Aos olhos do mundo tudo parecia
riqueza, quando havia muito mais de fortuna.
Imolados à terrível faina, dezenas
de portugueses dormem o sono eterno da cripta monumental do mar de
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Baffin e muitos deles disseram adeus à vida ao som do ribombo dos
foguetões, do badalar dos sinos e do silvar das sirenes que os
chamavam, não já para bordo, mas à presença de Deus.
Com a evolução e a supremacia da
propulsão mecânica sobre o velame, são os estaleiros da Ria de
Aveiro que, tomando quase o exclusivo da construção de navios
bacalhoeiros, muito embora continuando a manusear a enchó e o
machado, adaptam um novo tipo de navio, mais económico, mais seguro
e mais cómodo, perfeitamente ajustado às enrascadas na abordagem dos
doris debaixo de mau tempo. E apesar de se ter gorado uma tentativa
feita pelo armamento do Tejo, com o vapor Elite, para lançar o
arrasto na pesca do bacalhau, é ainda na nossa praça que se manda
construir um arrastão, especialmente destinado a trabalhar no norte
Atlântico, na intenção de superar o anacrónico e desacreditado
artesanato do pescador do dori.
Assim começa, em 1936, o quarto
período bacaIhoeiro – a era do arrasto.
Mas seria injustiça de bradar aos
quatro ventos se não relevássemos que, sem a colaboração das gentes
da terra de ílhavo – solo ubérrimo no cultivo da lealdade, do
espírito de sacrifício e brio profissional –, sempre pronta a
defender antes e acima de tudo o que lhe é confiado, por muita
atenção e cuidado que tivesse sido posto no plano e sua urdidura, a
tentativa não iria além dum fracasso mais a registar.
Depressa se reconhece a enorme
rentabilidade do novo sistema e rapidamente se alastra grande
entusiasmo entre os armadores, solicitando autorização para
construir mais arrastões. Mas uma estranha e incompreensível reacção
conservadora pôs cobro à euforia, condicionando a construção destes
navios.
Em 1964, dez anos depois do
aparecimento em Inglaterra do primeiro arrastão de popa, o Fairtry
I, são ainda os armadores de Aveiro que se lançam na armação de
navios deste tipo e, dos sete primeiros encomendados, todos para a
nossa praça, quatro foram construídos aqui, em S. Jacinto.
Modernos e complexos navios,
transformaram a arte de pesca numa indústria aonde já não cabe o
«quanto mais burro mais peixe», nem comporta amadorismos
administrativos, pelo condicionalismo a que está sujeita.
Hoje, tudo evoluiu, impondo ao
pessoal da produção um nível superior de conhecimentos, para poder
competir, no «Mare Liberum», com a concorrência mundial.
O mar, que muitos julgaram
inexgotável, está cada vez mais empobrecido e, como é óbvio, a sua
exploração cada vez mais necessitada de gente hábil e instruída.
Todos sabemos, mas devia ainda ser
mais ampla essa noção, que o oceano não oferece aos que nele labutam
senão incomodidades e desconforto, tornando-se cada vez mais difícil
encontrar gente que aceite e queira viver a monotonia dos dias de
mar. /
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Nada de válido foi tentado ou feito
no sentido de obstar ao desinteresse e fuga do pessoal marítimo,
antes pelo contrário, tem-se acentuado o alheamento e até, por
vezes, desmandos que afugentam.
Quer nos sectores do Fomento ou da
Administração pública ou privada, quer nas actividades associadas à
exploração marítima e que dela dependem, o pessoal da nossa Marinha
Mercante, apesar do estofo da sua experiência e do cunho tecnicista
que tem sido dado à governação, não tem encontrado privilégios de
acesso a lugares em terra, que o imponha à influência dos
paraninfados.
Resta-lhe viver uma vida inteira
permanencendo as vinte e quatro horas do dia a dia no local de
trabalho, sempre ausente de tudo quanto é a razão da vida, numa
corrida veloz para a saciedade e saturação profissionais.
Impávidos, vamos assistindo ao êxodo
e aceitando-o como facto consumado, limitando-nos a ajustar o
remanescente às mínimas e instantes necessidades de bordo, por meio
da automatização dos equipamentos e da montagem de comandos remotos.
Porém, era dever nosso não esquecer
que o mar não só continua a ser o manancial aonde nasceu a própria
vida, mas também é o único elo de ligação entre as parcelas deste
Portugal que no passado foi glorioso Navegador. |