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N.º 7

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1969 

 

As Vindimas na Bairrada

Pelo Engenheiro Agrónomo Manuel de Oliveira Silvestre

 

Ao aproximar-se o Outono de cada ano, surge para o viticultor a época de todas a mais alegre, principalmente quando a colheita de uvas se mostra regular ou abundante e o preço do vinho se mantém em nível compensador do esforço dispendido durante um ano. Por outro lado, o ambiente tornou-se mais ameno, após a queda das primeiras chuvas, que desde o Verão escasseavam, e que tornam os ares mais frescos e puros.

Já se colheu a batata de sequeiro, assim como o feijão e algum milho temporão. Aguarda-se agora a vindima, temporada sempre alegre para patrões e operários, pois o vinho desde os tempos mais remotos é, por excelência, um transmissor de alegria à alma dos homens.

Mas, mesmo nos preparativos do precioso néctar que a videira nos oferece, há sempre uma alegria esfusiante por esta Bairrada pouco acidentada e cheia de Sol, do Sol que doira as uvas e as torna apetecíveis ao mais rude paladar. Uvas que desintoxicam o organismo humano, pela directa assimilação dos seus açúcares e pelo equilíbrio dos seus ácidos orgânicos, revelado por um pH médio compreendido entre 3,2 e 3,8, conforme os anos e os locais onde elas se produzem.

A alegria é-nos revelada por tudo quanto nos rodeia: pelo alegre cantar das raparigas nos vinhedos, pelo barulho das dornas sobre os carros de bois no transporte das uvas às adegas e, à noite, pelos descantes das vindimadeiras no regresso das vinhas.

A transformação da cor das uvas, operada a partir do mês de Julho, começa como que a enfeitar a região, não só pelo aparecimento da cor tinta cada vez mais intensa, nas uvas pretas, e da cor ambarina, translúcida, dos bagos das uvas brancas, como também pelo aparecimento de um perfume especial, agradável, nos vinhedos, que inebria os sentidos.

É nesta quadra final do ciclo vegetativo da videira que os viticultores mais amiudadas vezes visitam as suas vinhas, para se inteirarem do modo como a maturação das uvas se está a processar, e também para calcular aproximadamente o volume da colheita que se avizinha, para disporem do vasilhame necessário para armazenarem o vinho novo.

Apesar do ambiente ser, em média, mais fresco de que no mês de Agosto, por vezes em Setembro surgem ainda alguns dias de temperaturas muito altas que, dada a secura do meio, «queimam» as uvas mais expostas ao sol, dizendo-se então que «o sol já bebeu bastante vinho». De facto, as uvas secas, queimadas pelo sol, ficam perdidas para a produção, não só por si próprias, como ainda porque nos recipientes de fermentação absorvem líquido que, mesmo na prensagem dos bagaços, não cedem totalmente. Daí os técnicos aconselharem a plantação das vinhas com a orientação das carreiras de videiras norte-sul, para que a incidência meridiana dos raios solares se dê na altura em que as parras melhor podem cobrir os cachos de uvas, portanto protegê-Ias dos grandes calores.

Por isso, alguns pequenos viticultores, que dispõem de mais mão-de-obra, principalmente familiar, cobrem as videiras de cachos mais expostos, com palha, fetos, etc., para que o sol os não queime.

Por outro lado, quando os terrenos são frescos e férteis, em que as videiras adquirem bastante pujança e, portanto, os cachos ficam muito escondidos da luz do Sol, os viticultores praticam uma ligeira desparra, para exporem as uvas ao Sol, a fim de, embora mais tardiamente, melhor amaducerem, melhor produto darem.

Entrados assim nos preparativos da vindima, os viticultores (principalmente os mais esclarecidos) começam a fazer cadenciadamente análises dos mostos das uvas, para ver como se vai processando o seu amadurecimento, relacionando o aumento do teor de açúcares com a diminuição do teor de ácidos, e para ver quando se deve iniciar a vindima. / 45 /

Os viticultores, baseando-se nas análises dos mostos, marcam o início das suas vindimas, tendo previamente convidado um número conveniente de vindimadeiras para a colheita das uvas, que deverá realizar-se em média entre 10 e 25 dias, conforme a produção de cada um, os meios de transporte e o número de vasilhas de fermentação de que dispõe.

Como já se deve ter observado, é a época da vindima uma quadra em que o ar anda impregnado do cheiro a mosto em fermentação, em que nas adegas os homens «pisam» as uvas nos lagares ou nos balseiros, por vezes ao som de «acordeões» e, depois de terem feito o «pé», espremem o bagaço, fazendo cantarolar as cunhas das prensas, enquanto pelas estradas e caminhos se ouvem as moças no regresso a suas casas, ou a casa dos viticultores, entoar as suas cantigas, que por vezes se ouvem a grandes distâncias.

O trabalho inicia-se nuns sítios ao romper do Sol no horizonte ou pouco depois, e noutros já mais tarde. Numas zonas o pessoal trabalha «a de comer», noutras «a seco», conforme os usos e costumes tradicionais.

Numas zonas usam-se poceiros, noutras usam-se canastras; aqueles redondos e mais fundos, estas oblongas e de fundo mais baixo; estas de capacidade um pouco maior que aqueles.

De um modo geral, cada vindimadeira vai para as vinhas munida de um cesto de arco, para onde colhe os cachos e, depois de cheio, vai despejá-Io nos poceiros ou canastras, e de uma tesoura ou navalha com que corta os pedúnculos dos cachos. Leva também um certo número de poceiros ou canastras à cabeça (2 a 5 geralmente), conforme as disponibilidades do viticultor e a demora da dorna, para ir trabalhando enquanto esta não chega à vinha. Uma vez na vinha, as vindimadeiras preparam-se para o trabalho, pondo um avental geralmente de sarapilheira e um chapéu velho na cabeça, e arregaçando as mangas das blusas. Por vezes, antes do início do corte, benzem-se e dizem: «Deus nos ajude». A vindima começou. Os cachos são cortados e, cestos de arcos cheios, levados aos poceiros ou canastras.

Quando as vinhas são plantadas em carreiras (filas) direitas e se consegiu manter esse alinhamento mais ou menos perfeito, cada vindimadeira toma conta de uma carreira e vai cortando as uvas que nela existem. Procuram sob as parras as uvas para as colherem e não ficarem nenhuns cachos perdidos. Procuram também trabalhar de modo que haja pouco esbagoamento das uvas.

Cheios todos (ou quase todos) os poceiros ou canastras, as vindimadeiras que o podem fazer, começam a transportá-los para as dornas que, uma vez cheias, são levadas por meios mecânicos ou por tracção animal, às respectivas adegas. Geralmente as mais idosas não transportam cestos cheios à cabeça.

Logo que nas adegas entram, as dornas são descarregadas e voltam de novo para a vinha onde as uvas vindimadas as esperam e, depois de cheias, são transportadas novamente às adegas. Simultaneamente são contados os poceiros ou as canastras que cada vinha produziu, para por comparação se saber se produzem mais ou menos uvas do que nos anos anteriores.

Durante o dia há o descanso normal (uma hora) para o jantar, apesar das vindimadeiras andarem assiduamente a provar as uvas que vão cortando.

À noite, no regresso a casa, as vindimadeiras dão largas à sua alegria, cantando as diversas cantigas do seu reportório pois, conforme se ouve amiúde dizer, «tristezas não pagam dívidas».

A vindima vai decorrendo, trabalhando-se por vezes mesmo aos domingos, até que, como todas as coisas, chega ao fim. Ora, este último dia é de todos o mais alegre, principalmente para a gente moça.

No penúltimo dia da vindima, as vindimadeiras distribuem entre si diversas tarefas – como conseguir flores, indumentárias diversas, típicas por vezes, recados a este ou àquele, etc. / 46 /

Quando acabaram de cortar as últimas uvas, transportam-nas às dornas que, concluído o transporte, enfeitam assim como o carro, camioneta ou atrelado de tractor, os bois e por vezes até o carreiro. Geralmente, o enfeite consiste numas canas espetadas nas uvas ou presas aos fueiros ou aos taipais das camionetas ou dos atrelados, com diversas flores presas com cordéis; atam as canas à frente e atrás duas a duas e, sob as ogivas assim formadas, prendem duas coroas de flores: uma à frente e outra atrás.

Quando o transporte se faz por carros de bois, também a chavelha é enfeitada com um grande ramo

de flores, bem como os chifres dos bois – cada um com algumas flores – que se torna difícil de segurar, como se compreende.

Simultaneamente com a preparação de tudo isto, veste-se uma rapariga – de ordinário a mais forte e a mais bonita – com um traje mais senhoril, ou mais antigo, a qual assim ataviada segue sobre o estrado do meio de transporte, à frente da dorna e no meio do enfeite das canas e flores, de pé, sorrindo-se para os seus admiradores, durante o percurso.

Ao lado e atrás seguem as restantes vindimadeiras que, gargantas afinadas, dão largas aos seus cantares, o mais afinadas possível. Quando passam pelos povoados, quase toda a gente vem às portas de suas casas para ver quem é e como vai em aparato, para poderem criticar – elogiando ou deprimindo. Mas toda a gente se ri, bem disposto e alegre. É festa!

O carreiro que, por vezes, também leva a sua flor na orelha, tem de ter bastante cuidado na condução do carro enfeitado, para não deixar que as canas e flores toquem nas árvores que ladeiam os caminhos ou servidões por onde passa, para se não estragar tudo. Os motoristas têm de ter os mesmos cuidados.

Cantando e rindo, o carro chega por fim à adega, onde há que desmanchar tudo para retirar as uvas da dorna para o lagar. Aproveitam-se então as coroas de flores que se colocam: uma na porta da adega e outra numa das suas janelas. E aí se conservam até que o tempo as destrua.

Ora, neste último dia de vindima é costume – mesmo para as vindimadeiras que trabalham «a seco» – dar uma ceia a todo o pessoal, incluindo portanto o da adega, o da vinificação.

A ceia é normalmente melhorada e um pouco diferente do trivial e um dos pratos obrigatórios, geralmente o último, em algumas zonas da Bairrada pelo menos, consiste em papas de abóbora, muito doces (com açúcar ou com mel, ou com as duas coisas), com que se finaliza a refeição.

O primeiro prato consiste numa boa bacalhoada com batatas, cebola e legumes, bem temperada de azeite e um pouco de vinagre. / 47 /

O segundo prato é um prato de carne, confeccionado de diversas maneiras, conforme se trata de carne de vaca, de porco, de galinha ou de coelho.

A «empurrar» estas iguarias vinho à descrição, começando-se pelo tinto e terminando pelo branco, quando se não vai mais além e se entra pelos licorosos.

No fim, à alegria da festa soma-se a devida ao álcool.

Por vezes, as vindimadeiras «namoram» os patrões e pedem-lhes que lhes faça um bailarico que, autorizado, se realiza ou na eira ou em qualquer dependência livre da casa. A estes bailaricos têm acesso os namoros e os convidados das vindimadeiras solteiras. Hoje, como meio musical servem-se de um gira-discos ou de um acordeão.

No dia seguinte, se o pessoal não é do próprio lugar, retira-se para a sua terra natal, cantando e por vezes levando um farnel de uvas escolhidas para consumo.

E adeus até à próxima época.

 

páginas 44 a 47

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