Ao aproximar-se o Outono de cada
ano, surge para o viticultor a época de todas a mais alegre,
principalmente quando a colheita de uvas se mostra regular ou
abundante e o preço do vinho se mantém em nível compensador do
esforço dispendido durante um ano. Por outro lado, o ambiente
tornou-se mais ameno, após a queda das primeiras chuvas, que desde o
Verão escasseavam, e que tornam os ares mais frescos e puros.
Já se colheu a batata de sequeiro,
assim como o feijão e algum milho temporão. Aguarda-se agora a
vindima, temporada sempre alegre para patrões e operários, pois o
vinho desde os tempos mais remotos é, por excelência, um transmissor
de alegria à alma dos homens. |
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Mas, mesmo nos preparativos do
precioso néctar que a videira nos oferece, há sempre uma alegria
esfusiante por esta Bairrada pouco acidentada e cheia de Sol, do Sol
que doira as uvas e as torna apetecíveis ao mais rude paladar. Uvas
que desintoxicam o organismo humano, pela directa assimilação dos
seus açúcares e pelo equilíbrio dos seus ácidos orgânicos, revelado
por um pH médio compreendido entre 3,2 e 3,8, conforme os anos e os
locais onde elas se produzem.
A alegria é-nos revelada por tudo
quanto nos rodeia: pelo alegre cantar das raparigas nos vinhedos,
pelo barulho das dornas sobre os carros de bois no transporte das
uvas às adegas e, à noite, pelos descantes das vindimadeiras no
regresso das vinhas.
A transformação da cor das uvas,
operada a partir do mês de Julho, começa como que a enfeitar a
região, não só pelo aparecimento da cor tinta cada vez mais intensa,
nas uvas pretas, e da cor ambarina, translúcida, dos bagos das uvas
brancas, como também pelo aparecimento de um perfume especial,
agradável, nos vinhedos, que inebria os sentidos.
É nesta quadra final do ciclo
vegetativo da videira que os viticultores mais amiudadas vezes
visitam as suas vinhas, para se inteirarem do modo como a maturação
das uvas se está a processar, e também para calcular aproximadamente
o volume da colheita que se avizinha, para disporem do vasilhame
necessário para armazenarem o vinho novo.
Apesar do ambiente ser, em média,
mais fresco de que no mês de Agosto, por vezes em Setembro surgem
ainda alguns dias de temperaturas muito altas que, dada a secura do
meio, «queimam» as uvas mais expostas ao sol, dizendo-se então que
«o sol já bebeu bastante vinho». De facto, as uvas secas, queimadas
pelo sol, ficam perdidas para a produção, não só por si próprias,
como ainda porque nos recipientes de fermentação absorvem líquido
que, mesmo na prensagem dos bagaços, não cedem totalmente. Daí os
técnicos aconselharem a plantação das vinhas com a orientação das
carreiras de videiras norte-sul, para que a incidência meridiana dos
raios solares se dê na altura em que as parras melhor podem cobrir
os cachos de uvas, portanto protegê-Ias dos grandes calores.
Por isso, alguns pequenos
viticultores, que dispõem de mais mão-de-obra, principalmente
familiar, cobrem as videiras de cachos mais expostos, com palha,
fetos, etc., para que o sol os não queime.
Por outro lado, quando os terrenos
são frescos e férteis, em que as videiras adquirem bastante pujança
e, portanto, os cachos ficam muito escondidos da luz do Sol, os
viticultores praticam uma ligeira desparra, para exporem as uvas ao
Sol, a fim de, embora mais tardiamente, melhor amaducerem, melhor
produto darem.
Entrados assim nos preparativos da
vindima, os viticultores (principalmente os mais esclarecidos)
começam a fazer cadenciadamente análises dos mostos das uvas, para
ver como se vai processando o seu amadurecimento, relacionando o
aumento do teor de açúcares com a diminuição do teor de ácidos, e
para ver quando se deve iniciar a vindima.
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Os viticultores, baseando-se nas
análises dos mostos, marcam o início das suas vindimas, tendo
previamente convidado um número conveniente de vindimadeiras para a
colheita das uvas, que deverá realizar-se em média entre 10 e 25
dias, conforme a produção de cada um, os meios de transporte e o
número de vasilhas de fermentação de que dispõe.
Como já se deve ter observado, é a
época da vindima uma quadra em que o ar anda impregnado do cheiro a
mosto em fermentação, em que nas adegas os homens «pisam» as uvas
nos lagares ou nos balseiros, por vezes ao som de «acordeões» e,
depois de terem feito o «pé», espremem o bagaço, fazendo cantarolar
as cunhas das prensas, enquanto pelas estradas e caminhos se ouvem
as moças no regresso a suas casas, ou a casa dos viticultores,
entoar as suas cantigas, que por vezes se ouvem a grandes
distâncias.
O trabalho inicia-se nuns sítios ao
romper do Sol no horizonte ou pouco depois, e noutros já mais tarde.
Numas zonas o pessoal trabalha «a de comer», noutras «a seco»,
conforme os usos e costumes tradicionais.
Numas zonas usam-se poceiros,
noutras usam-se canastras; aqueles redondos e mais fundos, estas
oblongas e de fundo mais baixo; estas de capacidade um pouco maior
que aqueles.
De um modo geral, cada vindimadeira
vai para as vinhas munida de um cesto de arco, para onde colhe os
cachos e, depois de cheio, vai despejá-Io nos poceiros ou canastras,
e de uma tesoura ou navalha com que corta os pedúnculos dos cachos.
Leva também um certo número de poceiros ou canastras à cabeça (2 a 5
geralmente), conforme as disponibilidades do viticultor e a demora
da dorna, para ir trabalhando enquanto esta não chega à vinha. Uma
vez na vinha, as vindimadeiras preparam-se para o trabalho, pondo um
avental geralmente de sarapilheira e um chapéu velho na cabeça, e
arregaçando as mangas das blusas. Por vezes, antes do início do
corte, benzem-se e dizem: «Deus nos ajude». A vindima começou. Os
cachos são cortados e, cestos de arcos cheios, levados aos poceiros
ou canastras.
Quando as vinhas são plantadas em
carreiras (filas) direitas e se consegiu manter esse alinhamento
mais ou menos perfeito, cada vindimadeira toma conta de uma carreira
e vai cortando as uvas que nela existem. Procuram sob as parras as
uvas para as colherem e não ficarem nenhuns cachos perdidos.
Procuram também trabalhar de modo que haja pouco esbagoamento das
uvas.
Cheios todos (ou quase todos) os
poceiros ou canastras, as vindimadeiras que o podem fazer, começam a
transportá-los para as dornas que, uma vez cheias, são levadas por
meios mecânicos ou por tracção animal, às respectivas adegas.
Geralmente as mais idosas não transportam cestos cheios à cabeça.
Logo que nas adegas entram, as
dornas são descarregadas e voltam de novo para a vinha onde as uvas
vindimadas as esperam e, depois de cheias, são transportadas
novamente às adegas. Simultaneamente são contados os poceiros ou as
canastras que cada vinha produziu, para por comparação se saber se
produzem mais ou menos uvas do que nos anos anteriores.
Durante o dia há o descanso normal
(uma hora) para o jantar, apesar das vindimadeiras andarem
assiduamente a provar as uvas que vão cortando.
À noite, no regresso a casa, as
vindimadeiras dão largas à sua alegria, cantando as diversas
cantigas do seu reportório pois, conforme se ouve amiúde dizer,
«tristezas não pagam dívidas».
A vindima vai decorrendo,
trabalhando-se por vezes mesmo aos domingos, até que, como todas as
coisas, chega ao fim. Ora, este último dia é de todos o mais alegre,
principalmente para a gente moça.
No penúltimo dia da vindima, as
vindimadeiras distribuem entre si diversas tarefas – como conseguir
flores, indumentárias diversas, típicas por vezes, recados a este ou
àquele, etc.
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Quando acabaram de cortar as últimas
uvas, transportam-nas às dornas que, concluído o transporte,
enfeitam assim como o carro, camioneta ou atrelado de tractor, os
bois e por vezes até o carreiro. Geralmente, o enfeite consiste
numas canas espetadas nas uvas ou presas aos fueiros ou aos taipais
das camionetas ou dos atrelados, com diversas flores presas com
cordéis; atam as canas à frente e atrás duas a duas e, sob as ogivas
assim formadas, prendem duas coroas de flores: uma à frente e outra
atrás.
Quando o transporte se faz por
carros de bois, também a chavelha é enfeitada com um grande ramo
de flores, bem como os chifres dos
bois – cada um com algumas flores – que se torna difícil de segurar,
como se compreende.
Simultaneamente com a preparação de
tudo isto, veste-se uma rapariga – de ordinário a mais forte e a
mais bonita – com um traje mais senhoril, ou mais antigo, a qual
assim ataviada segue sobre o estrado do meio de transporte, à frente
da dorna e no meio do enfeite das canas e flores, de pé, sorrindo-se
para os seus admiradores, durante o percurso.
Ao lado e atrás seguem as restantes
vindimadeiras que, gargantas afinadas, dão largas aos seus cantares,
o mais afinadas possível. Quando passam pelos povoados, quase toda a
gente vem às portas de suas casas para ver quem é e como vai em
aparato, para poderem criticar – elogiando ou deprimindo. Mas toda a
gente se ri, bem disposto e alegre. É festa!
O carreiro que, por vezes, também
leva a sua flor na orelha, tem de ter bastante cuidado na condução
do carro enfeitado, para não deixar que as canas e flores toquem nas
árvores que ladeiam os caminhos ou servidões por onde passa, para se
não estragar tudo. Os motoristas têm de ter os mesmos cuidados.
Cantando e rindo, o carro chega por
fim à adega, onde há que desmanchar tudo para retirar as uvas da
dorna para o lagar. Aproveitam-se então as coroas de flores que se
colocam: uma na porta da adega e outra numa das suas janelas. E aí
se conservam até que o tempo as destrua.
Ora, neste último dia de vindima é
costume – mesmo para as vindimadeiras que trabalham «a seco» – dar
uma ceia a todo o pessoal, incluindo portanto o da adega, o da
vinificação.
A ceia é normalmente melhorada e um
pouco diferente do trivial e um dos pratos obrigatórios, geralmente
o último, em algumas zonas da Bairrada pelo menos, consiste em papas
de abóbora, muito doces (com açúcar ou com mel, ou com as duas
coisas), com que se finaliza a refeição.
O primeiro prato consiste numa boa
bacalhoada com batatas, cebola e legumes, bem temperada de azeite e
um pouco de vinagre.
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O segundo prato é um prato de carne,
confeccionado de diversas maneiras, conforme se trata de carne de
vaca, de porco, de galinha ou de coelho.
A «empurrar» estas iguarias vinho à
descrição, começando-se pelo tinto e terminando pelo branco, quando
se não vai mais além e se entra pelos licorosos.
No fim, à alegria da festa soma-se a
devida ao álcool.
Por vezes, as vindimadeiras
«namoram» os patrões e pedem-lhes que lhes faça um bailarico que,
autorizado, se realiza ou na eira ou em qualquer dependência livre
da casa. A estes bailaricos têm acesso os namoros e os convidados
das vindimadeiras solteiras. Hoje, como meio musical servem-se de um
gira-discos ou de um acordeão.
No dia seguinte, se o pessoal não é
do próprio lugar, retira-se para a sua terra natal, cantando e por
vezes levando um farnel de uvas escolhidas para consumo.
E adeus até à próxima época. |