Desde longa data que a indústria da
apanha de moliço na Ria de Aveiro constitui uma das mais
características e importantes actividades desta região, ligada como
sempre esteve à agricultura local.
É já muitíssimo vasta a matéria
divulgada sobre o assunto e, além disso, tem sido objecto de
particular atenção das várias Entidades que, através dos tempos, têm
tido jurisdição na Ria de Aveiro.
Não pretendemos, por conseguinte,
apresentar nada de novo, embora haja muitas ideias divulgados que
nem sempre correspondem à realidade e verdade dos factos e que têm
necessidade de ser esclarecidos. Infelizmente temos constatado que
muito do que se tem dito ultimamente, quer como argumento para
justificar o estado de crise actual desta indústria, quer como
explicação para a excessiva abundância de moliço na Ria, raramente
contém afirmações exactas. Antes pelo contrário, o que se diz é
quase sempre influenciado por um ou outro interesse de carácter
particular ou regional, que nada adianta e em nada contribui para
qualquer esclarecimento.
Nos últimos tempos pouco se tem
escrito sobre moliço, salvo um ou outro artigo em jornais diários ou
na imprensa regional.
Uma das principais razões, e até
mesmo talvez a única razão de ainda se falar neste assunto, reside
na perturbação que a abundância de moliço provoca, sob o aspecto
recreativo, nomeadamente na prática de desportos náuticos com
embarcações a motor e pesca desportiva.
A apanha de moliço não pode ser
tratada isoladamente, tendo em vista apenas o interesse para a
própria actividade ou para a agricultura. Assim aconteceu, na
realidade, durante largos períodos, com manifesto prejuízo de outras
actividades marítimas.
A apanha de algas efectuada
desordenadamente e durante todo o ano como se fez durante esses
períodos trouxe resultados catastróficos para outra indústria,
talvez não menos importante – a da pesca – visto que ambas estão
intimamente relacionadas, como vamos ver.
ANCINHOS - Instrumentos necessários para
a apanha do moliço.
Há uma época, entre Março e Junho,
em que as criações entram pela barra e se conservam mais
melindrosas. Coincide, também, esta época com a desova de muitas
espécies que constituem a fauna da Ria.
Essas pequenas espécies procuram o
abrigo dos moliços, nas zonas em que as correntes são mais fracas,
como meio de defesa contra as espécies mais vorazes e ainda porque é
no seio do moliço que encontram, também, pequenos animais de que são
muito ávidos.
Uma das espécies mais abundantes na
Ria, o robalo, é muito voraz e, sem aquele abrigo do moliço, a
pequena fauna aquática seria, certamente, aniquilada.
Em face do que acabámos de expor se
compreende, facilmente, o cuidado que às entidades oficiais mereceu
a regulamentação da apanha de moliço, cuidado esse que resulta de
dois factores principais:
a) – protecção do moliço, para que
se não extinguisse, em virtude da sua enorme utilização como
fertilizante das terras de cultura;
/ 24 /
b) – garantia da existência
permanente de zonas com moliço, para protecção das espécies
piscícolas.
E, foi, precisamente, nestas duas
actividades, agricultura e pesca, conjugadas, que assentou durante
largo período a organização da vida económica da Nação.
Nos séculos XVII e XVIII, a
agricultura regional atravessou um longo período de decadência que
arrastou, também, à decadência a indústria do moliço.
Como é sabido, estes e outros
períodos de decadência estiveram sempre relacionados, e mesmo
dependentes, da localização e do estado da barra.
Foi por este facto que, a partir de
1808, data em que ficou para sempre aberta e estabilizada a Barra de
Aveiro, a agricultura teve novo e definitivo desenvolvimento.
Paralelamente, e em consequência
desse desenvolvimento agrícola, passou a existir uma maior
necessidade de moliço para adubar as terras e, novamente também, a
respectiva indústria entrou em fase de grande desenvolvimento.
Com a crescente e desordenada
colheita do moliço, a que já atrás fizemos referência, sem
regulamento que a pudesse disciplinar, originou-se uma enorme crise
na própria indústria moliceira e na pesca lagunar.
Na indústria moliceira, isto é, na
decadência da produção de algas em virtude, principalmente, do
levantamento geral dos fundos e da exploração imoderada.
No Relatório Oficial do Regulamento
da Ria, de 28 de Dezembro de 1912, por Augusto Nobre, Jaime Aleixo e
José de Macedo pode ler-se:
«O moliço propriamente dito, a
seba, a folhada e outras plantas de valor secundário, que constituem
a flora dos sapais, requerem naturalmente terreno quase
permanentemente alagado, e hoje grande parte dos leitos que
antigamente se mantinham inferiores ao nível das maiores
baixa-mares, emergem já a pouco menos de meia maré, havendo muitos
que se elevaram de modo a só serem banhados pelas preia-mares de
águas vivas e alguns pelas dos equinócios. Os álveos, de certa
altura para cima passam a dar outras plantas – bajunça, junco,
caniço – realizando-se a diminuição progressiva da área produtora de
algas.
A exploração extremamente intensa
que se tem exercido, já pela extracção continuada, sem dar tempo a
que as algas cresçam e se reproduzam, já por apanharem, com as
gadanhas, gadanhões e enxadas, a própria vasa, levando com ela
raízes e sementes, representa, se não o aniquilamento da vegetação,
que é muito potente, pelo menos o depauperamento da produção».
Por outro lado, e como se disse
atrás, durante a desova e frequência de criação, a apanha de moliço
é altamente prejudicial para a fauna da Ria.
No século XIX, a apanha de moliço
era de tal maneira intensa, que a Ria de Aveiro se viu, praticamente
desprovida da sua fauna.
Para obstar a tão grande
inconveniente, foram então, publicadas as primeiras disposições
legais que, no entanto, não trouxeram os resultados previstos.
É que os interesses agrícolas eram
tais que se sobrepunham a todos os outros e, tanto os agricultores
como os moliceiros, com a sua resistência, foram impedindo a
execução de quaisquer disposições publicadas.
Da constante luta de interesses
entre a pesca e a apanha de moliço e, como a primeira quase que
desaparecera da Ria perante a exagerada actividade da segunda,
resultou finalmente a publicação de um Edital do Governo Civil de
Aveiro, em 1868.
Pelo seu interesse no que revela de
cuidado, estudo atento e até como elemento revelador do estado das
pescas na Ria de Aveiro, merece ser transcrita a sua introdução:
1868 SETEMBRO 9
EDITAL
«AUGUSTO CORREIA GODINHO FERREIRA DA
COSTA, bacharel formado em direito, fidalgo cavaleiro da casa real e
secretário-geral, servindo de governador civil do distrito de
Aveiro.
Mando que seja posto em execução o
seguinte regulamento:
Considerando que, entre as
necessidades da sociedade, a de prover à sua alimentação é das
primeiras e mais indispensáveis, e que a exploração da pesca
marítima e fluvial é o recurso que, em maiores proporções pela
própria barateza dos seus produtos, pode satisfazer esta necessidade
principalmente às classes menos abastadas;
Considerando que, assim como na
cultura da terra
/ 25 / a natureza
retira a imensidade dos seus benefícios quando o homem por
ignorância ou desleixo não procura auferir deles proveito, também,
por igual desleixo, ou ignorância, os nega na produção das águas,
como desgraçadamente o está demonstrando a esterilidade quase
completa da ria de Aveiro, outrora tão rica de peixe, e hoje
destinada quase exclusivamente à navegação e à extracção do adubo da
terra com privação do alimento do povo, e perda de uma indústria
que, favorecido por boas e fáceis comunicações, poderia só por si
tornar rico quem a ela se dedicasse convenientemente;
Considerando que não é conveniente
nem lícito que para cómodo dos agricultores se arruíne a indústria
da pesca, mormente na Ria de Aveiro, onde pode ser tão lucrativa;
Considerando quão lastimoso seria
que este distrito, dotado de um manancial de riqueza oferecido por
sua ampla bacia de águas, extensa costa marítima e pelo Rio Vouga,
permanecesse mais tempo no abandono da piscicultura, quando esta
está hoje recebendo em países estrangeiros, com felizes e
surpreendentes resultados, aperfeiçoamento que recebem outras muitas
artes e indústrias humanas, estado este ainda mais digno de lástima
quanto são geralmente conhecidas as causas do mal e fácil remédio;
Barcos moliceiros
Considerando as evidentíssimas
vantagens que resultarão de se proteger a fecundação e criação dos
peixes, já removendo os obstáculos que a ignorância, ou mal
entendida ambição, opõe aos trabalhos da natureza, já promovendo o
conhecimento da fecundação artificial, isto é, a prática da
piscicultura entre a classe piscatória, para que melhor conheça o
que convém a seus legítimos interesses, e de acordo com eles observe
e cumpra as leis e regulamentos da pesca;
Considerando que todas as câmaras
municipais, às quais a ordenação do reino delegou a faculdade de
bitolar a menor capacidade da malha das redes de pesca, apenas a do
concelho de Castelo de Paiva estabeleceu esta bitola, mas de um modo
irregular e contrário à lei, porque, permitindo a malha por onde
passe uma moeda de prata de 240 réis, o que corresponde a 15
milímetros por lado, ou menos, se a moeda for cerceada, permitiu o
que se pretendia proibir;
Considerando que a costa, a ria e os
rios navegáveis são propriedade nacional, e que por isso compete à
administração pública regular o exercício da pesca e polícia
respectiva;
Considerando que, a tolerar-se a
continuação dos abusos existentes, todos os esforços seriam baldados
para melhorar a indústria da pesca, e que a sucessiva
/ 26 / diminuição das
espécies seria a sua consequência inevitável;
Considerando que as primeiras
providências, entre outras, a adoptar desde já consistem a facilitar
a livre entrada e saída dos peixes, quando tenham de passar da água
doce para a salgada, e desta para aquela, durante o período de
desovamento, e na observância da lei proibitiva do emprego de certas
redes toleradas por abuso e ignorância de uns, e incúria de outros,
e sempre com prejuízo do cultivo das águas e da alimentação do povo:
etc....».
* * *
Como se pode verificar, logo de
início se nota a pretensão de colocar ao mesmo nível de interesse a
pesca e a cultura da terra. Verifica-se também que o exagero em que
se caíra, no que diz respeito à apanha de moliço, não permitia o
desenvolvimento da fauna «como desgraçadamente o está demonstrando a
esterilidade quase completa da Ria de Aveiro, outrora tão rica em
peixe, e hoje destinada quase exclusivamente à navegação e à
extracção do adubo da terra...».
Barcos moliceiros na faina.
Com a mesma finalidade do Edital
publicado pelo Governo Civil, foram tomadas medidas restritivas,
quanto à apanha do moliço, pelas respectivas Câmaras Municipais, das
quais também julgamos de muito interesse transcrever as seguintes
posturas:
CÂMARA MUNICIPAL DE VAGOS
Artigo 1.º – É proibido aos povos
deste concelho a apanha de moliço, por qualquer forma que seja, nos
lagos municipais, desde 15 de Junho até 31 de Julho; todo aquele que
for encontrado em contravenção desta postura pagará de multa por
cada vez, sendo barco 3$000 réis, sendo carro 100 réis.
§ único – São considerados como do
concelho os moradores da Gafanha que têm uso e posse de apanhar os
mesmos moliços nos ditos lagos.
Artigo 2.º – Fica proibida a todos
os povos de fora do concelho a apanha dos moliços nos lugares do
concelho, seja em que tempo for; o que for encontrado em
contravenção desta postura pagará de multa por cada vez o duplo do
declarado no art.º 1.º e seu parágrafo.
Quando o contraventor de fora do
concelho não pague a multa à Câmara, seu zelador, arrematante ou
outra qualquer pessoa por ele autorizada, ser-lhe-á apreendido o
barco, ou carro com todos os seus aparelhos, para à vista deles ser
julgada a transgressão; nos objectos apreendidos se fará a penhora
para pagamento da multa e custas, caso o contraventor não queira
pagar depois do seu julgamento.
Artigo 3.º – A Câmara poderá
conceder as licenças, que julgar convenientes, ou avençar-se com as
pessoas de fora do concelho para poderem apanhar moliço nos mesmos
lagos no tempo não defeso.
CÂMARA MUNICIPAL DE ÍLHAVO
Artigo 1.º – É proibida a apanha de
moliço de qualquer natureza nos baldios do concelho desde 15 de
Abril inclusive até 25 de Julho inclusive, sob pena de serem os
transgressores multados na quantia de 2$500 réis pela primeira vez e
em 5$000 réis no caso de reincidência.
Artigo 2.º – Na mesma multa do
artigo antecedente incorre o que empregar gadanho na apanha dos
referidos moliços.
§ único – No caso dos transgressores
de que tratam os artigos 1.º e 2.º serem de concelho estranho se
lhes apreenderão os barcos e quaisquer utensílios, ou instrumentos,
que empregarem na apanha dos moliços e que se julgar suficiente para
pagamento da respectiva multa, custas e mais despesas no caso de
procedimento, o que poderá ser suprido por fiança idónea.
CÂMARA MUNICIPAL DE ESTARREJA
Artigo 112.º – É proibido:
1.º – Apanhar moliço na Ria desde 24
de Junho até 31 de Julho, inclusive, excepto os arrolados, sob pena
de 3$000 a 6$000 réis;
2.º – Usar na apanha de moliço de
outros instrumentos que não sejam os ancinhos na forma do antigo
costume, sob a mesma pena do artigo antecedente.
§ único – Às pessoas que não são do
concelho é sempre proibido apanhar moliço na área dele sem a
competente licença da Câmara, pela qual pagarão 6$000 réis por ano e
por cada barco, sob pena de 12$000 réis, e a licença será concedida
com as restrições dos n.ºs 1.º e 2.º deste artigo.
/ 27 /
Artigo 122.º – É proibida a pesca
nas águas do concelho desde 1 de Março até 31 de Maio, sob pena de
500 e 1$000 réis.
§ único – Exceptuam-se:
1.º – A do sável e lampreia e a
pesca ao anzol;
2.º – Com rede estreita inferior a
0.02 m ou de arrastar, sob pena de 1$000 a 2$000 réis, e serem
inutilizadas as mesmas redes;
3.º – Lançar qualquer elemento
destinado a matar o peixe sob pena de 1$000 a 2$000 réis, pois que
somente é permitida a pesca à rede, fisga, anzol ou à mão.
CÂMARA MUNICIPAL DE OVAR
Capítulo XLII
Artigo 42.º – É proibida a pesca nos
rios deste concelho nos meses de Março, Abril e Maio e em todo o ano
com redes de malha estreita, ou varredora, por contrária à
necessária criação, sob pena de 600 réis e de serem inutilizadas as
mesmas redes.
§ único – É igualmente proibido
lançar nos mesmos rios troviscos e outras matérias venenosas, sob
pena de 1$200 réis.
Capítulo XLIX
Artigo 49.º – É proibida a colheita
de moliços desde 29 de Junho até 31 de Julho de cada ano. O que
durante esse tempo for achado a colhê-los, ou se souber que os
colhe, sofrerá a pena de 5$000 réis e mais três dias de prisão ao
que for de fora do concelho.
§ único – No distrito daqueles
concelhos, que designarem outra época, não se poderá colher moliço
se não no dia em que se permite, mas também antes desse dia não
poderão os moradores desse concelho colhê-los neste, debaixo da pena
sobredita de 5$000 réis e três dias de prisão.
* * *
Porém, como anteriormente, ainda
nenhuma destas medidas teve qualquer influência, por falta de
execução devido ao enorme predomínio dos interesses agrícolas e por
falta de uma autoridade que fiscalizasse e impusesse o cumprimento
de tais disposições.
Barco moliceiro
A situação, entretanto, agravava-se
e exigia essas ou outras medidas adequadas de modo a estabelecer um
equilíbrio entre as duas actividades – pesca e apanha de moliço.
Por esse efeito pareceu pela
primeira vez um Regulamento da pesca e apanha de moliço na Ria de
Aveiro, aprovado por Decreto de 28 de Dezembro de 1912.
Foram, de seguida, introduzidas
algumas disposições transitórias, que vigoraram até 4 de Janeiro de
1916, até que, finalmente, foi publicado um Regulamento definitivo,
que ainda hoje está em vigor com alterações muito ligeiras, pelo
Decreto n.º 3003, de 27 de Fevereiro de 1917.
Pelo actual Regulamento passou a ser
livre na zona pública da Ria, entre outras actividades, o exercício
da apanha de moliço desde que sejam observadas as respectivas
disposições regulamentares.
Estabeleceu ainda este Regulamento
um período de defeso desde 24 de Marco a 24 de Junho, pelas razões
expostas em relação à fauna marítima. Esta limitação refere-se, não
só à apanha de moliço, como também ao transporte e comércio de
moliços verdes.
Repare-se que este defeso diz
respeito, apenas, a moliços verdes, os quais são arrancados do fundo
pelo moliceiro com instrumentos que também estão regulamentados,
como veremos a seguir.
Porém, a limpeza das salinas, «desde
que estejam em completa vedação com as águas públicas, pede ser
feita na época estabelecida para o defeso, precedendo autorização do
capitão do porto».
A experiência de muitos anos veio a
demonstrar que este período de defeso, com a rigidez estabelecida,
não tinha já razão de existir uma vez que a finalidade a atingir
estava conseguida. Por este motivo foi o assunto revisto novamente
e, em consequência disso, aquele condicionamento foi alterado por
diploma legal (Decreto n.º 36822, de 7 de Abril de 1948).
Deste modo, a apanha de moliço e o
transporte e comércio de moliços verdes passaram a estar vedados
«durante um período de defeso não superior a três nem inferior a
dois meses em cada ano, compreendido entre 24 de Março e 24 de
Junho, período que será anualmente fixado por despacho do Ministro
da Marinha em
/ 28 /
processo iniciado por proposta do capitão do porto de Aveiro...».
Julgamos oportuno informar que, a
seguir à publicação deste Decreto, jamais deixou de ser autorizada a
redução do período de defeso para aquele mínimo de dois meses,
durante o período conveniente e legalmente estabelecido.
Ficou, deste modo, muito atenuado o
inconveniente para a agricultura e a actividade dos moliceiros, sem
afectar a protecção da Ria.
É frequente ouvirem-se ou lerem-se
em qualquer jornal afirmações, sem qualquer fundamento e quantas
vezes maldosamente, pretendendo demonstrar o prejuízo resultante da
paragem dos moliceiros durante o período do defeso. Chega-se, por
vezes, ao exagero de afirmar que aqueles e seus familiares passam
fome durante este período por se manterem inactivos. No entanto,
nada disto corresponde à realidade. Com efeito, nunca é surpresa
para ninguém, e muito menos para aqueles que se encontram ligados a
esta actividade, que todos os anos haverá o defeso. Por conseguinte,
quem trabalha no moliço já conta com isso no rendimento do seu
trabalho de modo a obter uma compensação anual que cubra aquela
inactividade.
Não se dá, e ainda em maior escala,
um caso análogo com os navios da linha da pesca do bacalhau?
Ninguém ignora que estes navios
exercem a sua actividade durante cerca de meio ano, ficando o
restante tempo no porto de armamento, parado, em preparação para a
safra seguinte.
Os moliceiros também aproveitam a
sua pequena paragem para algumas reparações, pinturas, etc. No
entanto, têm ainda a possibilidade de continuar a exercer a
actividade da apanha do moliço arrolado, como se verá mais adiante.
Ao mesmo tempo que foram
estabelecidos aqueles condicionamentos, o mesmo diploma regulamentou
também as ferramentas permitidas no exercício daquela actividade.
Na apanha de moliço são apenas
permitidos ancinhos de madeira com as seguintes características:
de arrastar
– deve ter, pelo menos, 64 dentes com a altura máxima de 0,12 m.
o rapão
– deve ter, pelo menos. 32 dentes com a mesma altura máxima, mas o
comprimento do pente é limitado a 0.75 m.
o de manejo
– comprimento máximo de 2 metros no cabo; 0,66 m no pente e 0.15 em
cada dente, não podendo nunca o número destes ser superior a 14.
/ 29 / Na
carga e descarga é permitida a utilização de ancinho de ferro, o
engaço, de 3 dentes.
Por serem estas as alfaias
normalmente utilizadas na actividade da apanha de moliço, durante o
defeso só é permitida a existência, a bordo, do ancinho de manejo
e do engaço, mas nos barcos devidamente autorizados a
efectuarem o transporte de algas.
Além da apanha do moliço no fundo
pelo processo do arrasto – moliços verdes – pratica-se,
paralelamente, a apanha do moliço que, naturalmente, se deposita nas
margens – moliço arrolado.
Esta modalidade foi, também,
regulamentada ficando permitido «ser feita a pé e da linha da
preia-mar de cada maré para fora do leito das águas...»
Além disso, o moliço que se
depositar nas margens, naturalmente, em lugar de domínio público, e
em qualquer época, pertence a quem primeiro dele se
apropriar, e o que se depositar, naturalmente, nas propriedades
particulares pertence aos respectivos proprietários.
Esta disposição também foi sendo
atenuada, gradualmente, em face da quantidade de moliço arrolado ser
cada vez maior.
Na realidade, à medida que a apanha
de moliço verde vai sendo mais reduzida, aparece o moliço arrolado
em maior abundância.
Não é de admirar que isto aconteça
pois que o moliço arrolado não é mais do que o moliço que amadureceu
e se desprendeu do fundo, ficando a flutuar e sendo transportado
pela corrente até se depositar na margem ou sair pela barra.
Por este facto passou imediatamente
a ser autorizada a apanha de moliço flutuante, na própria corrente
da Ria, desde que fosse na vazante e a uma distância superior a 10
metros da linha da baixa-mar.
Este condicionamento foi
estabelecido em virtude de se pretender evitar quaisquer prejuízos
para os proprietários dos terrenos marginais, onde o moliço se
depositaria se não fosse apanhado a flutuar.
Recolha de moliço
Actualmente, a quantidade de moliço
flutuante é já tão grande, e sem haver quem o apanhe, que este
condicionamento também já foi abolido.
Estamos, por conseguinte, perante
uma situação crítica cuja solução, não muito distante, será a Junta
Autónoma do Porto de Aveiro ver-se compelida a efectuar a limpeza do
moliço nos canais de navegação por não haver moliceiros que a
executem.
Não podemos afirmar que se virá a
verificar o total desaparecimento da actividade moliceira, porque
haverá sempre quem pretenda o moliço para adubo das suas terras.
Está neste caso, evidentemente, aquela actividade modesta do
lavrador que vai apanhar o moliço de que precisa para a sua
utilização pessoal e que o faz em pequenas embarcações que hoje
também existem em grande quantidade.
Mas, aquele belo e elegante barco
que só existe na Ria de Aveiro e que foi, durante muitas gerações, o
«ex-libris» da região, esse sim, desaparecerá para sempre e apenas
passará a constituir peça de museu.
Temos razões para admitir, o que é
da maior naturalidade, que em breve se iniciará uma actividade
moliceira «motorizada», em substituição da clássica propulsão à vela
com o pano de forma tão característica.
À primeira vista poderão parecer
exageradas estas afirmações. Porém, a redução no número de barcos
moliceiros e no número de homens que se dedicam a esta actividade é
tão grande, como veremos em seguida, que outra coisa, infelizmente,
não se poderá concluir.
Vejamos, em primeiro lugar, alguns
números elucidativos, respeitantes à variação do número de barcos
moliceiros existentes.
Segundo Fonseca Regalia, em «A Ria
de Aveiro e as suas Indústrias», existiam em 1889, no total, 1342
barcos moliceiros. Este número tem vindo a diminuir gradualmente e
hoje está reduzido a menos de metade. O quadro seguinte mostra
concretamente a evolução destes elementos:
|
Ano |
Barcos existentes |
1889
1925
1938
1955
1958
1961
1964
1966
1967 |
1 342
1 356
830
823
702
666
613
609
602 |
|
|
/ 30 /
Esclarece-se que neste número estão incluídas todas as embarcações
registadas na Capitania para apanha de moliço. Por conseguinte,
incluem os barcos moliceiros, propriamente ditos, e ainda todas as
embarcações mais pequenas, tipo bateira, que são utilizadas
directamente pelos lavradores para seu serviço pessoal.
Estes elementos dão-nos uma ideia
clara e concreta da diminuição permanente do número de barcos
moliceiros. Verifica-se, também, que esta redução não é de agora,
nem depende, apenas da falta de mão-de-obra actual, visto que o
desaparecimento dos barcos moliceiros teve o seu início há já cerca
de 40 anos.
Repare-se que os elementos relativos
a 1889 e a 1925 não mostram, praticamente, diferença no número de
barcos.
No entanto, ao longo desses 36 anos,
houve um período de dez, entre 1902 e 1912, em que se deu um
decréscimo na exploração das algas, segundo informações da época.
Esse curto período de crise foi
consequência de grande emigração e, principalmente, pela continuada
e desregrada apanha sem dar tempo ao crescimento das algas.
Como se viu, porém, essa crise
passou e a indústria recompôs-se, o que nunca mais sucedeu a partir
de 1925.
Com efeito, entre 1925 e 1938, um
período de 13 anos apenas, deu-se uma fantástica redução de 526
barcos, a que corresponde uma percentagem de 39 %.
Nos últimos anos voltou a
verificar-se uma acentuada emigração.
Há muitas dezenas de barcos
moliceiros parados, porque os seus proprietários emigraram e não
cancelaram os seus registos, muitos deles chegando até a
abandoná-los nas margens.
Por conseguinte, o número indicado
atrás é muito maior ainda do que os que andam actualmente em
actividade.
Qual a razão porque em 1925 se
iniciou tão brusca e enorme redução, se nessa altura não havia crise
de mão-de-obra e nem sequer havia falta de moliço na Ria?
Não teria coincidido esta mudança
com o desenvolvimento e divulgação do adubo químico?
Entre 1938 e 1955 deu-se novamente,
uma estabilização para, a partir deste ano, se entrar numa constante
redução.
Entre 1955 e 1967, correspondente
aos últimos doze anos, o número de barcos diminuiu de mais 221, ou
seja de 27 %, o que representa uma redução quase da mesma ordem de
grandeza da do período entre 1925 e 1938.
A que atribuir também esta tão
grande redução, não se vislumbrando agora vestígios de outra
suspensão?
Constatamos, por conseguinte, que
nos últimos 42 anos desapareceram da Ria nada menos de 747 barcos
moliceiros, segundo a estatística, mas na realidade o número é maior
pela razão atrás apontada.
Mas será só a emigração a causa
desta tão grande baixa nos barcos moliceiros?
Antes de expormos as conclusões a
que chegámos para explicar o abandono actual desta actividade,
vejamos o que se passa, paralelamente, com o número de homens que
trabalham no moliço.
Segundo a mesma publicação de
Fonseca Regalla, o número de homens em 1889 era de 2542, o que
representa uma média aproximada de 2 homens por cada barco.
Podemos afirmar que, actualmente, a
média é inferior àquele número. Muitos moliceiros empregam a bordo
as suas mulheres, algumas com inscrição marítima mas a maior parte
com uma simples autorização da autoridade marítima para exercerem
aquela actividade.
Além disso, como se disse atrás, o
número de barcos engloba as bateiras dos lavradores que não têm
actividade permanente nem necessitam de mais do que um homem, e o
seu número pouco tem diminuído, ao contrário do que acontece com os
autênticos barcos moliceiros, pois é em relação a estes que se tem
dado a grande maioria das baixas.
Por último, muitos indivíduos com a
categoria de moliceiro, ou deixaram a vida marítima ou têm
enveredado por outro ramo de actividade marítima de carácter local,
havendo muitos a trabalharem, por exemplo, na navegação fluvial do
Tejo, quer em barcos a motor quer a bordo das características
fragatas à vela.
Por conseguinte, em face das
considerações atrás efectuadas, não é possível apresentar
actualmente um número exacto de homens exercendo a actividade
moliceira na Ria de Aveiro.
No entanto, apresentamos a seguir os
números correspondentes às novas inscrições marítimas nesta
categoria, entre os anos de 1950 e 1966, que dão bem
/ 31 / ideia do
reduzidíssimo interesse que hoje existe por esta actividade.
|
Ano |
Inscrições
Marítimas para moliceiros |
1950
1953
1956
1959
1962
1965
1966
1967 |
50
49
71
26
37
8
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Acresce, ainda, que a quase
totalidade destas inscrições nos últimos anos tem sido de indivíduos
que não possuem as habilitações mínimas legais para se inscreverem
em qualquer das categorias da inscrição marítima, e só por
condescendência do capitão do porto isso se tem verificado com a
restrição de que só poderá exercer a sua actividade na Ria de
Aveiro.
Se assim não fosse, talvez não se
tivesse registado uma única inscrição para moliceiro nos últimos
tempos...
Quais serão, também aqui, os
principais motivos deste desinteresse?
Em nossa opinião há vários, que se
conjugam e que indicaremos a seguir.
Ao enunciarmos essas razões,
fazemo-lo sem a preocupação de as indicarmos por ordem de
importância, até porque seria impossível distinguir quais são as que
têm maior ou menor influência no assunto que estamos a considerar.
Barcos moliceiros na faina.
a) – Decadência da agricultura
É um problema actual, cuja
apreciação está fora do âmbito destas considerações, mas por demais
conhecido para necessitar qualquer esclarecimento.
Vimos atrás que o desenvolvimento da
actividade moliceira esteve sempre ligado ao desenvolvimento da
agricultura da região. Quando esta entrava em decadência, arrastava
também a outra.
Não admira, por conseguinte, que os
reflexos actuais se façam sentir como sempre aconteceu.
Este estado de decadência da
agricultura reflecte-se na actividade moliceira, já por não haver
tanta necessidade de moliço, como pelas limitadas possibilidades de
pagamento que não compensa a exploração.
Se analisarmos e compararmos os
preços da barcada de moliço através dos tempos, concluímos que hoje
o seu preço, apesar de elevado, não é compensador.
Com efeito, o preço médio da barcada
em 1883 era de 4$00 e o actual é de 400$00.
Há quem atribua, como uma das razões
do desaparecimento cada vez maior de moliceiros, as elevadas taxas
que estes têm que pagar à Capitania. Nada mais falso e, só por total
ignorância do assunto ou má vontade, é que se poderão fazer estas
afirmações.
Com efeito, o exercício da apanha de
moliço está sujeito ao pagamento de uma licença para cada barco,
cuja importância é de 70$00 por ano e foi estabelecida pelo Decreto
n.º 10 105, de 19 de Setembro de 1924.
Há mais de 43 anos e, até hoje, não
sofreu qualquer agravamento...
Além disso, os barcos que não
exerçam a actividade durante toda a época de exploração podem obter
uma licença por período, pagando 40$00 em relação ao primeiro
período e 30$00 em relação ao segundo.
O preço actual do moliço não é
compensador devido, principalmente, ao elevado custo de vida e ao
preço de mão-de-obra, também cada vez mais elevado e mais difícil de
conseguir.
As reparações e a conservação dos
barcos são extraordinariamente caras, tanto em consequência dos
elevados preços do material, como dos salários para pagamento ao
pessoal especializado.
b) – Adubos químicos
Já atrás nos referimos a este caso
quando indicámos os dados estatísticos referentes ao número de
barcos moliceiros.
Ninguém desconhece, certamente, o
incremento que tomou a utilização dos adubos químicos nos terrenos
de cultura, substituindo na maioria dos casos o adubo orgânico. Daí,
a menor procura de moliço, se bem que ainda hoje há agricultores que
o não dispensam nas suas propriedades, sobretudo quando pretendem
cultivar produtos de melhor qualidade.
Quase todos os agricultores
continuam a utilizar o adubo orgânico nas terras que cultivam para
seu consumo particular, utilizando o adubo químico nos terrenos cuja
produção se destina ao comércio.
c) – Emigração
Outro problema actual à escala
nacional, cujos reflexos não poderiam deixar de se sentir na
actividade moliceira, ou melhor, em todos os ramos da actividade
marítima.
Julgamos, também neste caso, não
serem necessários quaisquer esclarecimentos ou comentários sobre o
assunto.
d) – Natureza do trabalho
É de todos bem conhecido o trabalho
do moliceiro, e sobre a sua rudeza e violência não será necessário
alargarmo-nos em considerações.
É um trabalho pesado, que exige
esforço físico enorme, tanto na apanha do moliço verde arrastado,
como, simultaneamente, no próprio governo da embarcação,
/ 32 / particularmente
quando não há vento e se torna necessário o emprego da vara como
meio de propulsão.
Apenas existem hoje, praticamente,
dois centros de moliceiros – Murtosa e Torreira – dos quais só o
primeiro continua e dedicar-se à apanha de moliços verdes pelo
processo do arrasto. Na Torreira, já de alguns anos a esta parte que
a actividade está reduzida ao moliço arrolado, de apanha muito mais
fácil e de muito menos esforço físico.
e) – Falta de assistência
O moliceiro não usufrui qualquer
modalidade de assistência. O patrão não tem qualquer agremiação e o
trabalhador não tem sindicato ou qualquer outro organismo análogo e,
tanto um como o outro não estão abrangidos pelos organismos oficiais
de assistência, actualmente existentes.
Compare-se, por exemplo, o que se
passa com estes trabalhadores e os pescadores. Estes, com as suas
Casas dos Pescadores onde lhes é facultada assistência médica
gratuita na doença e subsídio para medicamentos, etc., para si e
para todo o agregado familiar. Aqueles, sem nenhuma instituição a
que possam recorrer naquela emergência.
Além desta assistência na doença,
todos os pescadores têm as respectivas Mútuas onde recorrem em caso
de acidente e os moliceiros continuam a nada possuírem.
f) – Habilitações literárias
Em face da natureza do seu trabalho,
é o moliceiro que se encontra na mais baixa categoria da escala
marítima e o que tem mais baixo nível profissional.
É uma categoria que, apesar de
prevista no próprio Regulamento da Inscrição Marítima, só existe na
Ria de Aveiro.
Pela actual legislação o moliceiro
também pode matricular-se, eventualmente, em qualquer actividade de
pesca costeira ou tráfego e pesca local. No entanto, à excepção do
que se referiu em relação à navegação fluvial do Tejo, são raros
estes casos visto que o moliceiro não poderá usufruir qualquer das
regalias assistenciais das Casas dos Pescadores, por nunca poderem
inscrever-se como seus sócios beneficiários.
Se bem que a legislação não preveja
qualquer excepção em relação às habilitações literárias – para a
inscrição marítima é necessário pelo menos o ensino primário
elementar – para o moliceiro não há qualquer outro condicionamento
quer em relação à idade, quer a outras habilitações.
Como consequência da actual
legislação escolar, raro é o indivíduo que não possui hoje o exame
do ensino primário elementar e, por conseguinte, ao pretender
inscrever-se como marítimo inicia já a sua vida profissional como
pescador, pelo menos.
/ 33 / Por
esta razão, a quase totalidade das inscrições marítimas indicadas
atrás para moliceiros é de indivíduos que não satisfazem àquelas
condições mínimas quanto às habilitações literárias, mas que vão
sendo autorizados em virtude da ausência quase total de candidatos
para o efeito.
* * *
Julgamos ter dado, embora
sucintamente, uma ideia do que se passa com o moliço na Ria de
Aveiro.
Pelo que foi exposto, fácil é
concluir que não se prevê qualquer hipótese para resolver a
situação.
Além da apanha do moliço ter vindo a
decrescer, verifica-se que há zonas da Ria onde não se exerce aquela
actividade; ou porque a quantidade do moliço tem menos interesse, ou
porque ficam bastante afastados dos locais de venda.
Com o fim de eliminar, ou pelos
menos atenuar, os inconvenientes apontados, já desde Janeiro de 1966
que foi eliminado o defeso para apanha de moliços verdes nos
seguintes locais públicos:
Canal de Ovar – para norte da
Torreira;
Canal de Mira – para sul da ponte da
Vagueira;
Canal de Ílhavo – para Sul da ponte
de Vagos.
Para demonstrar o desinteresse,
quase total, pela apanha de moliço indicamos o reduzido número dos
que pretenderam continuar a trabalhar durante o defeso:
Em 1966 ——————
61 barcos
Em 1967
——————
49 »
Com estes números e sem mais
comentários concluímos o nosso despretensioso trabalho.
* * *
BIBLIOGRAFIA
Estado actual das pescas em
Portugal – A. A. Baldaque
da Silva, 1891.
A Ria de Aveiro e suas indústrias
– F. A. da Fonseca Regalla, oficial da marinha, 1889.
Regulamento da pesca e da apanha
do moliço na Ria de Aveiro
– publicação do Ministério da Marinha, 1917.
Notícia sobre as indústrias
marítimas na área da jurisdição da Capitania do porto de Aveiro
– Cap. mar e guerra Rocha e Cunha, 1939. |