PRIMEIRA VIAGEM
Há já muitos e
muitos anos, que, na época própria, airosos veleiros portugueses
atravessavam o Atlântico, a fim de, nos bancos da Terra Nova,
praticarem a pesca à linha.
Mas o peixe
começou a escassear naquelas paragens e era necessário procurar
outros bancos, onde houvesse abundância de bacalhau, para que os
carregamentos dos lugres pudessem compensar as enormes despesas
feitas pelos armadores.
Quase todas as
empresas se encontravam arruinadas e esta indústria, com mais dois
ou três anos, maus, terminaria toda a sua actividade.
Nestes apuros,
em 1930, um homem de Ílhavo, Capitão do lugre Santa Mafalda,
tentou demandar os mares da Gronelândia, onde se dizia haver muito
bacalhau.
Mas, por que se
não tinha munido de todas as cartas daquela região, regressou à
Terra Nova, depois de haver sofrido as inclemências do frio, nos
mares gelados do estreito de Davies.
Estava, no
entanto, lançada a ideia.
No ano
seguinte, quatro navios «Santa Joana», «Santa Mafalda», «Santa
Isabel» e Santa Luzia», comandados respectivamente pelos Capitães
João Ventura da Cruz, João Pereira Cajeira, Manuel dos Santos
Labrincha e Aquiles Gonçalves Bilelo, todos de Ílhavo, depois de
permanecerem nos bancos da Terra Nova, durante cerca de um mês,
rumaram aos mares da Gronelândia, onde encontraram grande fartura
de bacalhau.
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– Alta
madrugada, estrelas ainda no céu, os da «companha» são acordados
por uma voz rouca e forte que, da boca do rancho, exclama, seja
Louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Cristo; são quatro horas,
vamos arriar.
Ainda
estremunhados, os pescadores saltam dos beliches e enfiam a roupa
de oleado e as botas de água.
Engolido à
pressa o café, sobem, a correr, para o convés.
Então os dóris,
munidos do estrafego, da agulha de marear e da isca, são
imediatamente arriados pelos teques e afastam-se do navio.
A remos ou à
vela, lá vão eles para o lejo, a procura dum bom espalco, onde a
trabalhosa e enervante faina da pesca possa ser compensadora.
Mas, como nos
dias anteriores, o bacalhau não aparece.
À tardinha,
depois de muita procura, todos regressam ao lugre, uns quase
vazios e outros com peixe à sarreta.
A bordo é uma
tristeza! Já passou um mês e ainda não se pescaram trezentos
quintais.
De noite,
aquela longa noite, em que nada se ouvia a não ser os gemidos
monótonos produzidos pela oscilação lenta do navio e o tic-tac do
relógio de cobre, pendurado na antepala, por baixo do alboi, o
Capitão não dormia.
Primeiramente,
sentado na loca da Câmara, que um candeeiro de suspensão
iluminava, com a sua luz amarelada e vacilante, falara com o
piloto e com o contramestre; mas agora, no seu camarote, muito
sozinho, não conciliava o sono. Pensava, pensava sempre.
Aos louvados,
já ele estava no convés, sem ter pregado olho.
Reuniu então
toda a companha:
– Rapazes: aqui
não fazemos nada. É uma desgraça para nós e para os patrões! Dizem
que lá ao Norte, na Gronelândia, há muita fartura de peixe.
Quereis ir até lá?
Os pescadores,
receosos, entreolharam-se e nada disseram.
Mas, passado
aquele momento de indecisão, um dos mais velhos quebrou o
silêncio: o senhor Capitão tem mulher e filhos, como nós.
Leve-nos, portanto, para onde quiser, pois temos a certeza de que
vamos para bem. Leve-nos para qualquer sítio, onde haja bacalhau,
porque foi para o pescar que deixámos, lá longe e com tantas
saudades, as nossas terras e as nossas famílias.
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Surgiu então no
Diário de bordo, que tenho na minha frente, a seguinte passagem:
«Aos dois dias
do mês de Julho de 1931, estando o lugre «Santa Joana» ancorado na
Virgin Rocks, a E do Main Ledg, como não houvesse peixe suficiente
para o carregamento do navio, resolveu o Capitão suspender a
amarra e seguir viagem para os bancos da Gronelândia.
Pelas 18,30
horas, começou-se a virar a amarra e, pelas 19 horas, fizemo-nos
de vela ao rumo NE 4N, com vento W e todo o pano largo.
Juntos na
Virgin Rocks, estavam os seguintes lugres portugueses: Santa
Isabel, Hostense e Cruz de Malta. Navegámos com vento W regular e
nevoeiro cerrado, não se vendo os navios, quando partimos».
A viagem, que
demorou treze dias, foi toda feita com tempo irregular. Algumas
vezes havia vento muito fresco, com aguaceiros de neve e mar
bastante agitado; noutras ocasiões, apenas se fazia sentir uma
leve
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aragem, que mal fazia deslocar o navio, ficando este quase
desgovernado, quando, pela tardinha, o vento acalmava por
completo.
Assim se foi
singrando, pouco a pouco, por águas desconhecidas e muito frias,
que eram olhadas com desconfiança e um certo temor.
No dia 15,
porém, pelas sete horas da manhã, passou à fala um vapor inglês,
cujo comandante, depois de haver mandado parar as máquinas,
forneceu algumas informações, muito úteis, a respeito dos mares da
Gronelândia e sobre as condições de pesca nos seus bancos,
chegando mesmo a oferecer algumas cartas daquela região.
Os tripulantes
do «Santa Joana», até aí tão receosos e cépticos, sentem que uma
grande alegria lhes invade os corações.
Mas, pela tarde
desse mesmo dia, são avistadas quatro enormes ilhas de gelo, que,
novamente, a todos causam grandes preocupações.
No entanto, a
viagem prossegue, com a máxima cautela, sempre com vigias atentos,
a perscrutar o horizonte, para que o navio se possa desviar de
qualquer icebergue ou se não enfie para dentro de alguma zona
gelada e, no dia seguinte, pelas 10 horas, segundo reza o «Diário»
avista-se terra – a ilha da Gronelândia – toda coberta de gelo.
«Pelas 18
horas, sondámos em trinta braças, continuando a navegar, com tempo
muito bom e claro. Navegámos com tempo bonançoso e terra à vista,
ao rumo NE 4N, até que, pelas três horas, como houvesse calma e
muito bacalhau à borda, ancorámos na posição Lat. 63.40 N e Long.
53.00 W – Banco Fillas – com 50 braças de arame e 30 de corrente».
O «Santa Joana»
manteve-se neste «BANCO» cerca de 21 dias, sempre com bom tempo e
fazendo pescas abundantes.
Durante este
período, a tripulação admirou-se bastante, não apenas com o facto
de ser sempre de dia, chegando mesmo a ver-se Sol à meia noite,
nos fins de Julho, mas também com os lindíssimos e variados
aspectos que lhe oferecia a enorme quantidade de gelo, que, em
grandes blocos, se estendia junto à costa e ainda com a
extraordinária porção de aves marinhas – cagarras, painhos e
pombaletes – cujos enormes bandos, ora pareciam nuvens do céu, ora
cobriam o mar, onde se deixavam apanhar com facilidade.
Também lhe
causou certo espanto o extraordinário número de barcos a motor –
palhabotes de dois e três mastros – pertencentes a países nórdicos
e ainda os muitos e grandes veleiros franceses – Iugres e patachos
pescando ao troley, que sulcavam aqueles mares, tão calmos, frios
e brilhantes.
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O Capitão dum
desses «Trolers» deu a informação de que não havia ventos contra a
praia, pois que os rumos predominantes eram o sudoeste e o
nordeste.
Nestas
circunstâncias, pôde o «Santa Joana» aproximar-se da costa, que
era muito feia, alta e escarpada, e pescar aí grandes quantidades
de bacalhau.
Foi nesta
altura que muitos esquimós, ainda jovens, e vestidos com os seus
trajes característicos, visitaram o navio, trocando peles de foca,
de arminho, de urso e de raposa branca por café, chá e aguardente.
Estes jovens –
rapazes e raparigas – que, com muita arte e ligeireza, se
dedicavam também à faina da pesca, eram tripulantes dumas pequenas
lanchas que, todos os dias, saíam dos estreitos e perigosos portos
da Gronelândia.
Apesar de tudo,
no dia 5 de Agosto, como o peixe começasse a escassear, resolveu o
Capitão procurar outro pesqueiro, mais ao norte, onde, em menos
tempo, pudesse completar o carregamento.
«Aos seis dias
do mês de Agosto de mil novecentos e trinta e um, pelas seis
horas, começámos a suspender a amarra e, pelas sete horas,
fizemo-nos à vela, com todo o pano largo, ao rumo NNE com vento SW
e tempo de chuva e nevoeiro.
No dia 7 pelas
três horas, ancorou o navio no baeco «Lille Helefisk» na seguinte
posição: lat. 65.00 N e long. 53.00 W».
Arriados os
dóris, em pouco tempo estes regressaram ao lugre, completamente
carregados e, num abrir e fechar de olhos, todo o convés ficou
inundado de peixe.
Sob o vigilante
e atento olhar do capitão, começa, imediatamente, o árduo e
exaustivo trabalho da escala e da salga, que se prolonga por
muitas horas.
O esforço que
os homens despendem não tem limites, mas a disposição é boa,
porque compreendem que uma nova era de prosperidade se vai abrir
para a arrojada e, até ali, tão desprotegida classe dos pescadores
bacalhoeiros.
E a campanha
prolonga-se até ao dia seis de Setembro, sempre com os mesmos
perigos, os mesmos trabalhos, as mesmas saudades.
Todavia, no dia
seguinte, quando todas as panas estão atolhadas e no porão não
cabe mais nada; quando já não há outro sítio onde salgar bacalhau;
quando o convés está debaixo de água e o navio não tem posse para
mais carga, o Capitão, depois de tudo bem acautelado – as
escotilhas devidamente cobertas e pregadas
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e os botes piados com segurança – manda içar, bem a tope, no
mastro da mesena, a bandeira nacional e escreve no «Diário de
Bordo»:
«Aos sete dias
do mês de Setembro de mil novecentos e trinta e um, estando o
lugre português «Santa Joana» ancorado no banco Lille Hellefisk,
por ter completado o seu carregamento de bacalhau, foi dada por
finda a campanha de pesca».
Pelas seis
horas o Capitão mandou virar a amarra, para seguir viagem para
Portugal, com destino a Aveiro.
Pelas sete
horas fizemo-nos de vela, com todo o pano largo, ao rumo SE4 1/2
S.
«Deus nos leve
a salvamento.»
Quando, nos
princípios de Outubro, os quatro lugres, que pescaram nos bancos
da Gronelândia, chegaram a Portugal e demandaram os seus portos de
armamento, houve grande alvoroço e muito regozijo entre as classes
ligadas às actividades piscatórias.
É que, de todos
os veleiros que, nesse ano de 1931, foram à pesca do bacalhau,
apenas aqueles quatro – três deles pertencentes à Empresa de Pesca
de Aveiro e o outro à empresa de Pesca de Viana do Castelo,
conseguiram carregamentos completos.
Em face destes
resultados tão auspiciosos, imediatamente os restantes armadores
resolveram mandar preparar os seus navios, para que a próxima
campanha fosse exercida nos mares frios de Gronelândia.
Daí em diante,
os carregamentos foram sempre mais ou menos compensadores, o que
fez com que esta indústria – agora também orientada e grandemente
auxiliada pelo Grémio dos Armadores – se tornasse maior, mais rica
e mais progressiva.
É bom pois, que
não sejam esquecidos aqueles quatro arrojados capitães e suas
destemidas tripulações, bem como os armadores dos referidos
navios, particularmente o Gerente da Empresa de Pesca de Aveiro,
senhor Egas da Silva Salgueiro que, com a sua grande visão e
iniciativa, muito contribuiu para o incremento e prosperidade da
Indústria Bacalhoeira.