Os magos
seguem o caminho do templo.
b) A EXALTAÇÃO DOS MAGOS
GASPAR – A estrela, a estrela
além, a nossa estrela, Senhor, como são grandes os vossos
desígnios, pois nos tens provado que, por maior e poderoso que
seja o homem, por mais forte e majestoso que seja o rei, nenhum
será tão grande e tão forte como vós
(19), Senhor!
Herodes, grande rei, senhor das
doze tribos de Israel, poderoso rei de Judá, grande aliado de
César Augusto, Imperador de Roma, senhor do mundo, a quem quase
todos os povos e nações se têm curvado e pagam o seu tributo;
mas que vale ser grande se Deus nos confunde? Que vale a força,
sem o poder de Deus? Herodes, grande rei, Deus não quis que tu
soubesses ocultar a tua malícia aos caldeus
(20) do Oriente.
Ainda há pouco nos apontaste um caminho, com o fim de nos
enganares; foste-nos infiel, Herodes, mas Deus deixou-nos ver a
tua maldade; Deus quer que se cumpra a sua palavra; que a
passagem dos reis do Oriente: Arábia, Idaspe e Egipto
(21), pela
tua nação, seja uma vitória inconfundível, porque, muitas vezes,
não é com o poder de grandes legiões que se ganham batalhas. A
nossa passagem pelo teu país ficará gravada nas páginas da
história universal, através dos futuros séculos. Nós, os Magos
do Oriente, não vimos ao teu país buscar o teu ouro nem as tuas
grandezas; nós, os Magos, não queremos as tuas legiões para
nosso auxílio; nós não queremos a tua aliança para nossa defesa;
nos nossos países não costumamos usar do sangue das vítimas nem
de humilhar o fraco para distracção do verdugo. Vimos ao teu
país como peregrinos, não como guerreiros; não temos interesse
em derramar sangue inocente nem em alargar os nossos domínios; a
nossa vontade é a vontade de Deus todo poderoso. Em Deus existe
todo o poder; de Deus tudo quanto é grande e sublime; nós
respeitamos esta pátria imortal de David. Senhor,
(22) guia-nos
até Belém, que é lá onde devemos encontrar o berço do teu santo
filho, a que (23) beijaremos os seus pés e adoraremos o seu
corpo.
Companheiros meus, como irmãos,
eis a nossa ditosa companheira, eis o astro que novamente nos
aparece, o sol dourado, que, escaldando as altas montanhas das
/
36 / nossas pátrias, veio nascer sobre os altos minaretes dos
nossos castelos; e, penetrando as janelas dos nossos palácios,
veio dar-nos o sagrado aviso de que a devemos de seguir;
seguimo-la (24), pois. Avante, companheiros, por Deus, por Deus
e pela nossa fé.
DISCURSO DOS REIS MAGOS À FRENTE
DA IGREJA
GASPAR – Eis que o fulgurante
astro luminoso e divino parou e não ousa ir mais além.
Firmamo-nos (25) bem no centro da estrela e vejamos que o menino
que apareceu nas longínquas terras orientais é o mesmo que se
nos depara no meio desse astro luminoso e divino.
(26).
Senhor, nós vos damos graças,
por nos teres guiado até junto do berço do teu santo filho, e
porque nos fizeste chegar ao fim de tão penosa, mas santa
peregrinação. (26a)
Ó povo de Israel, venturosos
descendentes de Abraão e de Jacob, já sobre a venturosa terra de
Judá, desceu o Deus forte, o Deus poderoso que há-de levar o
glorioso estandarte por todo o Oriente. Olhai-o, é este o vaso
humano que contemplam os vossos felizes olhos e encerra o ser
imortal e poderoso de Jeová.
Semeai flores e palmas ante os
passos de sua santa Mãe; cantai cânticos
(27) de Hossana pela
glória do filho. Correi piedosas mulheres, justos acólitos
(28),
sábios sacerdotes, poderosos escribas, correi e espalhai tão
fausta nova pelos dilatados confins da Palestina. Filhos de
Jerusalém, vesti vossas galas, adornai-vos, como na festa de
Ázimos, cantai como na Festa dos Tabernáculos, derramai óleos e
essências, como nas bodas dos príncipes, porque tudo isto, e
quanto façais em honra à nossa anelada vinda, será pobre, será
mesquinho, para obsequiar o Messias que foi anunciado pelo
profeta Daniel, há sete séculos; do Messias, por quem, tão
ansiosos, esperavam nossos pais, que não tiveram a dita de ver
cumprida a palavra do Senhor. Mas nós, os Magos do Oriente
(29),
quis Deus que os nossos olhos vissem este dia tão belo que
ficará cinzelado para sempre nas sagradas páginas dos livros
santos. Por tudo isto, desçamos das nossas selas e vamos
oferecer-lhe o nosso ouro, o nosso incenso e a nossa mirra.
Um aspecto do
cortejo, que, com muita animação, se aproxima da igreja.
BALTAZAR – Israel, Israel, povo
escolhido do Sinhor, de entre vós acaba de nascer o tão
desejado Messias; acaba-se de cumprir a palavra de Jacob; lá na
minha real casa, existe um livro que eu e os meus vassalos
veneramos com todo o respeito, porque vem das tradições
hebraicas e diz, num dos seus capítulos, que, da árvore de
David, nascerá o redentor do mundo; que será dado à luz por uma
virgem, e eis que, dentro em pouco, virá aquele por quem vós
tanto suspirais; e nós vos rendemos graças, Sinhor, por
nos teres (30) dado vida, força e coragem, através de tão longos
caminhos e tão penosas viagens, para assim termos a dita de
chegarmos ao berço do teu santo filho; para lhe oferecermos as
nossas ofertas (31): ouro, incenso e mirra; por isso, os nossos
corações cheios de júbilo
e alegria não cessam de
exclamar: graças vos rendemos,
/ 37 / ó Deus todo poderoso, rei
do universo, que assim escolhestes estes três guias do teu povo,
para lhe (32) mostrares as grandezas do teu enviado que
resgatará os povos e as nações da escravidão dos Pagãos e dos
gentios.
O velho Simeão
fala junto ao presépio vivo, no adro da igreja.
BELCHIOR – Sinhor, Deus
de Isac, Abraão e de Jacob, vós quisestes, ó grande Jeová, que o
meu povo tivesse também lugar no vosso reino. Eis Helipolis
(33), capital da minha pátria, cidade do sol, com seus galhardos
minaretes, pérola do Egipto, cidade natal de Moisés, onde os
seus profetas vos ergueram um templo à semelhança da vossa casa
santa de Jerusalém. Vós sabeis, Sinhor, que tudo, no meu
país, é grande e majestoso; é lá que se criam os cavalos para
servir nas legiões de Roma; e é lá que vão buscar perfumes para
ungir os mortos; também lá foi visto o sinal do Sinhor e
essa estrela maravilhosa vós a fizeste
(34) aparecer no meu
país, com um brilho incomparável até hoje desconhecido pelos
meus sábios.
Como é grande o vosso poder,
Sinhor!
Companheiros meus, como irmãos,
reverentes e compenetrados, desçamos das nossas selas para
oferecer ao Deus-Menino o nosso incenso, a nossa mirra e o nosso
ouro, por Deus e pela nossa fé.
À porta da igreja está armado
um presépio grande, com duas crianças simbolizando Nossa Senhora
e S. José; antes de os reis desmontarem, o velho Simeão torna a
falar:
SIMEÃO (fala junto do
presépio, à porta da igreja) – Agora é que vós Sinhor,
podereis deixar morrer em paz este vosso humilde servo, pois que
os meus olhos viram o Salvador que vós nos destes e a quem
destinais para estar exposto à vista de todos os povos, como a
luz das nações e a glória de Israel.
Este é o Salvador do homem, o
facho divino que veio derramar os claros raios da sua luz, sobre
as espessas trevas que envolvem a humanidade.
Ó mãe feliz! Teu santo filho
será o sol resplandecente que dissipará as trevas de Israel;
objecto de glória para uns, motivo de perdição para outros; o
seu santo nome será alimento do fraco e o temor do forte; e tu,
ó Santa Mãe, que o trouxeste no teu seio bendito, verás
trespassada a tua alma maternal pela acerada ponta de uma
espada. Tu és a mãe do Messias, deixa que beije as tuas santas
mãos (vai beijar o Menino e, depois, diz:) Bendito seja
para sempre o nome do teu santo filho que se chamará Jesus.
/ 38 /
Presépio vivo
montado à porta da igreja, onde a estrela parou.
A VIDA DO CORTEJO
Depois do encontro dos Reis
Magos, um anjo sobe entre a verdura de um carro engalanado e
canta uns versos acompanhados a música. Cf. p. 4.
Nos intervalos em que não falam
os Reis, exibem-se ranchos de crianças, e outras danças, entre
as quais se destaca a dança do Rei David; esta dança com os seus
cortesãos, ao som da harpa, que ele próprio tange. A música
desta dança composta para esse fim, não tem letra e apresenta
duas variantes. (35)
Em conjunto, cantam todos, os
versos adaptados ao assunto, por vezes belíssimos; o cortejo,
cheio de cor e vida, desliza pelas ruas, lentamente, ao som de
cânticos festivos referentes ao Natal.
Pastores, englobando homens e
mulheres, cantam, muito compenetrados do seu papel. Aparecem
vestimentas de todos os géneros; desde o garrido e alegre
vestuário da minhota, até à antiga vestimenta austera da região,
composta por chapéu de aba larga, mantéu e saia de serguilha.
Aparecem raparigas vestidas de peixeiras, de galinheiras da
Murtosa; rapazes enfarinhados, fazendo de moleiros, ou levando a
serra grande dos serradores ambulantes, ou ainda, levando ao
ombro uma espingarda, um cinturão cheio de cartuchos à cinta, e,
pendurados deste, dois ou três coelhos vivos, caçados no
curral...
É um dia alegre, o dos Reis
Magos; mesmo aqueles que nada deram como oferta, não faltam à
arrematação para comprarem alguma, concorrendo assim; e isto não
se dá só com as pessoas da terra, mas com a gente de todas as
povoações vizinhas.
/ 40 /
POESIAS CANTADAS PELOS
PASTORES NO CORTEJO DOS REIS
(36)
I
Ultimamente é chegado
o tempo das profecias
anunciaram a vinda
do sacrossanto Messias.
II
Glória a Deus lá nas alturas,
diz o Anjo do Senhor.
Paz aos homens, sobre a terra,
Já nasceu o Redentor.
III
Na terra da Palestina.
nasceu o manso Cordeiro
a quem hoje, o povo crente
Chama Cristo Verdadeiro.
IV
Vêm nobres, ricos e plebeus
vêm também os povoléus
adorar o Deus-Menino
que nasceu entre os hebreus.
V
Foram a casa de Herodes,
por ser o maior reinado,
que lhes ensinasse o caminho,
onde foram enganados.
VI
Herodes, como malvado,
como preverso, maligno,
às avessas ensinou
aos santos Reis o caminho.
|
VII
Mas os Reis, que eram santos.
uma estrela os guiou;
só ao pé da cabaninha
a estrelinha parou.
VIII
Pelo Anjo S. Gabriel
mandou Deus anunciar
que do ventre duma Virgem
Viria o Verbo encarnar.
IX
Do mundo fujam as trevas
desta triste escravidão
já rompeu a aurora bela
que nos trouxe a redenção.
X
Mandou Deus anunciar
pelo profeta Isaías
que do ventre duma Virgem
viria o santo Messias.
XI
Que os nossos tronos deixámos
sem nisso sentir pesar.
pela grande fé que temos
de Jesus ir adorar. |
/ 42 /
O rei David
com a harpa e os componentes da sua dança. Este é um dos
grupos anacrónicos
da representação dos Magos.
O rei David e
o seu séquito dançando ao som da harpa.
Raparigas
vestidas com fatos garridos do tipo minhoto que tomaram
parte no cortejo, levando as suas ofertas.
Grupo de tomou
parte no cortejo; mulher vestida com traje antigo; chapéu
de aba larga, lenço, mantéu
ou capoteira e saia de serguilha
de oito varas. No cesto de vime de duas cores, tem a
roca e o fuso.
Nota-se a algibeira da rapariga
que é de várias cores.
JÁ NÃO HÁ QUE PERDER TEMPO
I
Já não há que perder tempo,
lá está o astro divino
que sempre nos tem guiado;
seguimos nosso caminho.
II
CORO
Vamos pastores e reis
não tenhamos mais
demora o Messias é chegado,
ditoso quem o adora.
Ill
Somos lá do Oriente
viemos, com toda a nossa fé,
em procura do rei dos reis,
queremos-lhe beijar os pés.
CORO...
IV
Já não há que perder tempo,
é chegado o Redentor;
vamos, alegres, exultá-lo,
que vem em nosso favor.
CORO...
|
V
Senhores não se admirem,
é verdade incontestável;
lá nas terras de Belém,
nasceu o Messias amável.
CORO...
VI
Adeus, ó Jerusalém,
Já é tempo de marchar
em procura do Messias
que tudo bem reformar.
CORO...
VII
Já sentimos suaves cheiros
do Messias desejado,
nossa jornada é feliz,
tempo tão bem empregado!
CORO...
|
VIII
Ó Mãe de Cristo, salvai-nos;
S. José, rogai por nós;
ó Deus do céu e da terra,
recebei-nos para vós.
CORO...
IX
Vamos, com todo o respeito,
adorar o Deus-Menino;
Já o vimos no presépio,
certo foi o nosso destino.
CORO...
X
Montes, vales e campos
atravessamos sem custar,
sem saber onde estava
O que vamos adorar.
CORO...
XI
Ó que alegria é a nossa
que sentimos no coração:
ir adorar Pai e Mãe
que há-de dar o perdão. |
Animados pelo amor
Visitai a Virgem Mãe
De que nasceu o Messias
No presépio de Belém.
|
Cantam anjos nas alturas,
Glória a Deus Redentor;
E na terra, as criaturas
Cantam hinos ao Senhor.
|
(Continuação
no n.º seguinte >>>)
_____________________________________
NOTAS:
(1) – O arranjo que vou apresentar
é do Sr. Manuel Simões da Silva, um proprietário da aldeia,
baseado nos papéis dos Reis de Ouca, de Nariz e na obra de Pérez
Escrich. O Mártir do Gólgota. A recolha das músicas devo-a à
dedicação incontestada do Sr. Professor Manuel Martins
Belinquete.
(2)
– Tibre por Tigre.
(3)
– Notar a incorrecção do
emprego da forma verbal fossem por fôsseis.
(4)
– Por Hidaspe.
(5)
– Susa, capital do antigo Elam
ou Susiana antigo estado vizinho da Caldeia. Os seus reis
sustentaram depois Babilónia contra a Assiria. Sob o governo
de Dario, este estado foi uma satrapia.
(6)
– Esta figura do Anjo, que no
manuscrito da Borralha corresponde ao Anjo da Aparição.
aparece-nos na Palhaça, no cimo de um carro todo enfeitado de
verduras, informando-nos sobre a sua proveniência e convidando
os pastores – tudo isto, é claro, por meio do canto, cuja música
se transcreve a seguir.
(7)
– A guarda de honra de Herodes
é formada por rapazes vestidos com as fardas modernas dos
soldados que empunham espingardas caçadeiras. À frente deles
está um oficial vestido com uma farda napoleónica e segurando
uma espada. Pode
/ 44 / comparar-se a fotografia inserta no
final da pág. 34 com a que Armando Coimbra inclui no seu
trabalho «Os Presépios ou Autos Pastoris da Figueira da Foz», p.
119.
(8)
– Entenda-se cada um a sua.
(9)
– Notar a discordância do
tratamento: Majestade... à tua.
(10)
– Período de construção
imperfeita, pois a primeira oração não tem predicado.
(11)
– Notar a discordância do
tratamento.
(12)
– Entenda-se: Baltazar, Gaspar
e Belchior.
(13)
–
lhe por lhes.
(14)
– Ver «Aveiro e o seu
Distrito», n.º 2, p. 64.
(15)
– O mesmo que Babilónios.
(16)
–
Cambra por câmara.
(17)
–
Comprir por cumprir.
(18)
– Estamos perante uma
composição nitidamente popular: estrofes de quatro versos de sete
sílabas; alguns destes são bastante irregulares, pois, no
conjunto, e para a contagem das sílabas, é necessário umas vezes
fazer elisões, outras não. O assunto é religioso e constitui um
tema bem vincado na tradição poética portuguesa. Pelo que na
composição existe de espectacular e teatral permito-me aproximá-la,
não sem vincar a pobreza de construção e de vocabulário, do
extraordinário poema ultra-romântico de Soares de Passos. «Anjo da
Humanidade». E, se ao ultra-romantismo também interessava o
tradicional e popular, não terá este autor conhecido alguma
composição do género? Ou terá o povo conhecido esse poema como
conheceu o «Noivado do Sepulcro»? Qualquer das hipóteses por mim
formuladas não deixa de ser aliciante.
(19)
– Ver a discordância do
tratamento: Senhor... vossos... (tu) tens... vós.
(20)
– O mesmo que Babilónios, isto
é, os Reis Magos; cf. nota 12 e nota 20.
(21)
– Quer dizer: da Arábia, da
Pérsia e do Egipto.
(22)
– Dirige-se ao céu.
(23)
–
Que, por quem.
(24)
–
Seguimo-la por sigamo-la.
(25)
–
Firmamo-nos por firmemo-nos.
(26)
– Cf. Gil Vicente, in «Auto dos
Reis Magos».
(26a)
– Notar a discordância do
tratamento: Senhor... vos... teu... fizeste.
(27)
– Notar a obliteração.
(28)
–
Acólita por acólito. O nome passou a ser comum-de-dois.
(29)
– Quer dizer: Mas a
nós, aos Magos do Oriente – é digno de se notar o anacoluto.
(30)
– Note-se a discordância de
tratamento.
(31)
– Presentes. Notar a
aliteração.
(32)
–
Lhe, se se referir a povo,
mas lhes, se a três guias; o emprego do lhe por lhes, aliás,
tem carácter popular e arcaico.
(33)
– Por Heliopolis.
(34)
– Fenómeno de ultra-correcção:
fizeste por fizestes.
(35)
– Veja-se a música seguinte,
uma das variantes.
(36)
– Algumas composições como esta
e a seguinte, são longas, isto é, formadas por muitas
estrofes, o que está de acordo com o andamento lento do cortejo
até à igreja.
|