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N.º 3

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1967 

 

Sal de Aveiro ─ Epopeia dos marnotos

Pelo Dr. Victor Manuel Machado Gomes

Licenciado em Direito,
Presidente do Grémio da lavoura de Aveiro e Ílhavo

 

Quem estende a vista pela imensa planície líquida da Ria de Aveiro e a fixa no caprichoso mosaico composto pelas marinhas de sal, está longe de se aperceber do esforço heróico do marnoto aveirense.

O que ele luta, Santo Deus, para arrancar das águas lagunares os cristais de sal...

A região de Aveiro não goza de condições climatéricas propícias a uma fácil e regular evaporação. Por isso o marnoto tem de multiplicar os seus esforços para suprir as deficiências climáticas.

Numa passagem desse admirável monumento da nossa Literatura - A Holanda, de Ramalho Ortigão, lê-se esta impressionante verdade:

– «Deus fez o Mundo, e o holandês fez a Holanda».

Ora, parafraseando aquela legenda de Ramalho pode dizer-se:

– A Natureza cria o sal, mas o marnoto aveirense faz o seu...

Se é certo que o Sol e o Vento são os grandes geradores do Sal, provocando a evaporação da água salgada enclausurada em recipientes expostos à sua acção no Salgado de Aveiro é o marnoto o sublime escultor dos seus finos cristais.

A Natureza, essa, limita-se, avaramente, a ajudá-lo, mais parecendo, todavia, contrariar-lhe as suas propensões artísticas do que prodigalizar-lhe as bênçãos necessárias ao seu trabalho árduo.

É que o sol de Aveiro não aquece... como lá para as bandas do Sul, e fraqueja no seu despique com as investidas eólicas e brumas espessas que o escondem...

Dest'arte o nosso marnoto tem de vencer o fatalismo geográfico da região, suprindo a escassez das carícias solares, fecundantes, com uma técnica produtora de sal estruturada em moldes próprios.

O factor humano que actua na exploração salineira de Aveiro é o seu elemento primordial.

É com arte e beleza, tragédia e glória, que o marnoto esculpe os cristais de sal.

O Sol não o acarinha.

E sem este o Vento baila ineficazmente, não lhe emprestando o sopro anímico indispensável ao seu nascimento.

O clima de Aveiro é fresco, ventoso e particularmente húmido, pairando sobre uma vastíssima planície líquida retalhada de braços da Ria e de imensos canais.

A região é muito fria, mesmo quando os raios solares a fusilam no pino do Verão.

Até parece que as marinhas se acham arrimadas umas às outras, como que entreajudando-se em busca do abrigo acolhedor.

E o Vouga, coleante, avoluma a tragédia fazendo desabar abundante mistura de água doce nas águas vindas do Mar.

Custa muito a Vida do marnoto de Aveiro!

Manhã cedo, mal o dia rompe, ele aí vai na sua bateira, indispensável companheira para deslizar na Ria, rumo à marinha. Sabe-se lá que dolorosos monólogos terá ouvido ao marnoto, no seu vaivém diário, quando vencido pelo desalento e tocado de cansaço.

/ 6 / – Que raio de vida esta!...

É duro, muito rijo, o trabalho do marnoto!

Parece, no entanto, que é na singular movimentação da sua faina e no contacto com os caprichos da Natureza que ele adquire uma idiossincrasia própria para a luta.

E para a arte.

Encafuado na sua marinha, e acicatado pela ideia de que terá de arrancar em quatro ou cinco meses de labuta quotidiana e permanente o pão que há-de comer durante um ano inteiro, o marnoto fecha-se no seu pequeno mundo e escreve, aí, o grande poema da sua vida de trabalho e de sofrimento.

É um trabalhador singular, misto de lavrador que arregala os olhos para o Céu, numa sôfrega ansiedade de receber as suas graças, e do artista ensimesmado quando plasma e dá vida às concepções do seu génio.

E, curioso:

Não obstante o vendaval interior que atormenta o marnoto, nascido da incerteza de receber os favores da Natureza, é com ternura que prepara o berço onde o sal há-de nascer e acarinha este quando o suavemente.

E precisamente na aptidão com que o trata e o acolhe no seu leito, é que se encontra a razão de ser das virtualidades e particularidades do sal de Aveiro.

Desde o momento em que se inicia a preparação da marinha para a gestação do sal, passando pela recolha da água nos canais vizinhos, sua engorda salineira, e toda aquela teia delicada de que o marnoto se vale na luta heróica pela sua subsistência, até ao limiar da morte do sal em pleno Outono, sempre o marnoto é tocado de carinho, engenho e arte.

O sal de Aveiro não nasce, como nascem e medram os frutos silvestres.

É feito pelo marnoto, com o seu talento, sofrimento e dedicação.

Sem estes, / 7 / que sintetizam toda a valorização desta figura regional tão típica, o sal de Aveiro não mostraria aquele seu reluzir inebriante quando o Sol lhe cai em cima e o afaga.

O sal de Aveiro tem os seus pergaminhos, e ostenta uma linhagem que o distingue e o torna preferido, – quer, ainda pela delicadeza dos seus cristais, provinda da delicadeza com que o acariciam as mãos do nosso marnoto! Dele colhe, ao nascer, os carinhos indispensáveis à sua fina estirpe, não vão as suas mãos feri-lo e conspurcá-lo quando é retirado do seu leito natalício que um ténue lençol de água cobre docemente...

...É então que o seu progenitor revela toda a sua arte, rendo-o mansamente na terna preocupação de o trazer para a luz do dia são e escorreito. Este pormenor da natalidade e da vivência do sal de Aveiro, – com os seus épicos ressaibos de drama e de glória – põe em evidência toda a grandiosa epopeia do trabalho do marnoto de Aveiro e o singular merecimento do nosso sal.

Daí a produção ser dispendiosa.

E, também, o sal de Aveiro ter de custar mais caro, – tal como as delicadas porcelanas ou as filigranas douradas que transpiram beleza e gosto...

É este sal, nado e criado na laguna aveirense, que depois vai guarnecer as circunvizinhanças da Cidade, proporcionando-lhe uma panorâmica de sonho. É o marnoto, ainda, que ao erguer os luminosos montes de sal, pacientemente, afanosamente, ergue também eloquentes monumentos ao Trabalho,

– símbolos de sacrifício ou artísticas capelas viradas para o Céu, onde se afogam tantas lágrimas e soluços, inquietações, ilusões, e uma ânsia incontida de garantir o pão nosso de cada dia.

E, então, quando os cristais de sal começam a aflorar na fímbria do horizonte, desde o poente ao nordeste, acumulando-se e crescendo, e ganhando forma plástica que o génio do marnoto modelou, o riqueza paisagística da Rio de Aveiro encanta o olhar e seduz os espíritos ávidos de Beleza!

É um aspecto muito enternecedor e importante da actividade salineira aveirense e do seu marnoto.

/ 8 / Desta imensa feira-exposição dessa actividade, e de um tão salutar amplexo de brancura panorâmica, advém, ainda, para a Cidade uma pureza ambiencial que lhe tonifica o ar atmosférico.


Confrontar com a imagem do espólio FMS.

É esse sal assim gerado na laguna da Ria de Aveiro que, depois, vai espalhar-se pelo centro e norte do País, numa afirmação de potencialidade económica incontestável e que terá de merecer a justa atenção dos Poderes públicos.

Aqui se produziram nas últimas cinco safras 372 722 toneladas de sal.

Pois apesar de terem sido pagas por um preço desactualizado e que já não permite a rentabilidade desejável, tiveram o mérito de lançar na Economia regional o total de 106 225 000$00, – numa média anual de 21 200 000$00!

Todavia quem se esforçou e sofreu para dar à Economia nacional um contributo tão valioso, não obteve a remuneração adequada à sua condição humana e ao extenuante trabalho que despendeu.

O marnoto vive horas aflitivas, e suporta os maiores sacrifícios para acudir ao seu agregado familiar de tão característica e sentida feição cristã.

O sal que produziu, arrancando-o, com amargura, das águas glaucas da Ria, e que dizem ser o símbolo de Sabedoria utilizado nos ritos baptismais, não tem inspirado às entidades respectivas a merecida recompensa da epopeia vivida pelo marnoto de Aveiro.

Terá que ser revista a grave situação em que caiu a actividade do marnoto aveirense, incompreendido na sua arreigada fidelidade a uma ancestralidade milenária que os seus avós lhe transmitiram e inferiorizado quando em comparação com os demais trabalhadores.

A faina salineira de Aveiro corre o risco de se perder, se não for compreendida, nem amparada a sua índole muito característica e que outra não pode ser no caprichoso enquadramento climático desta região.

Perdendo-se, a Economia aveirense ver-se-ia privada de um dos seus mais importantes baluartes:

a Cidade e a sua laguna seriam amputadas da nota característica de uma panorâmica encantadora.

O marnoto, esse, com todo o simbolismo da sua expressão económica e artística, passaria à história de Aveiro...

Maio de 1967

 

páginas 5 a 8

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