O bispo de Coimbra, D. João
Soares, por provisão dada na sua quinta de S. Martinho a 10 de
Julho de 1572, criou na vila de Aveiro três novas freguesias:
uma na Igreja da Vera Cruz, outra na do Espírito Santo, e outra
na de Nossa Senhora das Candeias, todas desmembradas da
freguesia de São Miguel, a única que havia nesta vila. A igreja
paroquial de São Miguel pertencia à Ordem e Mestrado de Avis de
que o rei era governador e perpétuo administrador.
O rei D. Sebastião tinha dado
prévio assentimento ao bispo para a erecção das novas freguesias
e as três novas igrejas matrizes ficaram pertencendo também à
Ordem de Avis.
A apresentação dos vigários das
quatro freguesias pertencia ao rei por ser o grão-mestre da
Ordem.
A igreja de Nossa Senhora das
Candeias era uma ermida que também tinha a invocação de São
Gonçalo e estava situada numa pequena elevação junto às salinas
do Rossio, as quais já não existem desde os meados do século XIX.
Esta ermida, que tinha sido
feita pelo povo nos princípios do século XVI, ficou sendo a
matriz da nova freguesia de Nossa Senhora das Candeias, também
denominada de São Gonçalo, e mais tarde, de Nossa Senhora da
Apresentação.
Serviu este pequeno templo de
igreja matriz durante cerca de quarenta anos, após os quais uma
nova e espaçosa igreja construída noutro local nos princípios do
século XVII passou a ser a matriz da freguesia. Esta foi extinta
em 1835 e incorporada na da Vera Cruz. Mais tarde, em 26 de
Dezembro de 1876, a igreja de São Gonçalo ou de Nossa Senhora da
Apresentação passou a ser a matriz da ampliada freguesia da Vera
Cruz, por ter sido demolida a igreja paroquial desta.
A NOVA IGREJA DE SÃO GONÇALO
OU DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO COMEÇOU A EDIFICAR-SE NO ANO
DE 1606
O Sr. Coronel Diamantino Antunes
do Amaral publicou no n.º 1 de «Aveiro e o seu Distrito»
um artigo subordinado ao título Coisas do passado que
desenterrei da poeira dos arquivos, no qual, entre outros
assuntos, estuda a data da construção da actual igreja de Nossa
Senhora da Apresentação, assim denominada por ser esta Senhora a
padroeira da igreja, discordando da afirmação de Marques Gomes,
nas suas Memórias de Aveiro, de que foi edificada em
1606.
Pretende o Sr. Coronel Amaral
que esta nova igreja foi concluída em 1627 e começada muito
depois de 1606, baseando-se no registo que o vigário da
freguesia fez do falecimento de Maria Pinheiro em 12 de Setembro
de 1627, com a declaração de que foi sepultada na Igreja nova. E
diz o Sr. Coronel Amaral: «Foi esta a primeira vez que se aludiu
a enterramentos na Igreja Nova».
E conclui que, tendo-se começado
a utilizar esta igreja no serviço paroquial em 1627, é de
parecer que as obras de «Igreja Nova» só neste ano tinham sido
completadas; e que não sendo admissível um gasto de vinte e um
anos na construção desta igreja, ela devia ter sido começada
muito depois de 1606.
Não são exactas as conclusões do
Sr. Coronel Diamantino do Amaral nem as afirmações de Marques
Gomes.
Demonstraremos que a igreja de
Nossa Senhora da Apresentação não foi concluída em 1627 nem
construída em 1606.
Comecemos então por transcrever
o que diz Marques Gomes nas suas Memórias de Aveiro,
publicadas em 1875:
«Esta igreja que é uma das
melhores que Aveiro possui, foi edificada em 1606 no local de
uma capela denominada de S. Gonçalo, erecta em freguesia do ano
de 1512 (aliás 1572) pelo bispo Conde D. João Soares (pág.
109);
e na sua obra O Distrito de Aveiro, publicada em
1877:
«Foi edificada em 1606 sobre as ruínas duma capela
denominada S. Gonçalo, que o Bispo
/ 19 / conde, D.
João Soares, havia erigido em freguesia em 1512 (aliás 1572) sob
a invocação de Nosso Senhora da Apresentação» (pág. 132).
Nisto há duas inexactidões:
a) A actual igreja de Nossa
Senhora da Apresentação não foi edificada em 1606, mas sim
foi começada a edificar no ano de 1606;
b) Não foi construída sobre as
ruínas da capela ou ermida de S. Gonçalo, mas em local afastado
desta, a qual existiu até aos princípios do século XVIII, e
serviu de igreja matriz enquanto não foi edificada a actual
igreja de Nossa Senhora da Apresentação, nos princípios do
século XVII.
A dita ermida foi substituída
por outra de planta hexagonal, acabada de construir em 1732, a
qual ficou também com a invocação de São Gonçalo e ainda existe
actualmente com a denominação popular de Capela de São
Gonçalinho.
Para a demonstração que temos em
vista, utilizaremos a informação paroquial de 1721 relativa à
freguesia de São Gonçalo ou de Nossa Senhora da Apresentação,
datada de 23 de Maio deste ano e dirigido ao Provisor do bispado
de Coimbra pelo padre cura Manuel Simões Manso.
(1)
Desta informação transcrevemos
em ortografia actual o seguinte passo referente às capelas que
então havia na freguesia de São Gonçalo:
«Houve outra capela que se
arruinou, com o título de S. Gonçalo Velho, que se supõe erecta
pelo povo haverá duzentos anos, em cujo sítio se edificou uma
capela autorizada com o dito título de S. Gonçalo Velho pelo
povo que ainda não está acabada.
E há a igreja paroquial de S.
Gonçalo Novo que se começou a edificar na era de mil seiscentos
e seis anos como consta de uma pedra que está na porta travessa
da dita igreja, tem
mais a dita igreja quatro capelas, exceptuando a capela-mor,
erectas pelo povo com os títulos seguintes: uma do rei Salvador
do mundo, outra de Nossa Senhora da Apresentação que é a
padroeira, outra das Almas, outra de São Nicolou.»
Por isto se vê que:
A actual igreja paroquial de S.
Gonçalo ou de Nossa Senhora da Apresentação começou a
edificar-se no ano de 1606, mas não se indica quando foi
concluída; e que esta igreja não foi construída no local nem
sobre as ruínas da ermida de S. Gonçalo.
As designações de São Gonçalo
Velho e São Gonçalo Novo foram inventadas pelo povo para se
distinguir facilmente a velha ermida da nova igreja matriz.
É interessante notar que o
padre-cura no final da sua referida informação de 1721, faz a
seguinte observação:
«Suposto que eu diga nesta
igreja de Nossa Senhora da Apresentação no primeiro
interrogatório, o título dela e invocação é de São Gonçalo».
Vamos agora determinar a época
em que a nova igreja entrou ao serviço paroquial, posto que o
Sr. Coronel Amaral diga que tal facto se deu em 1627 e que neste
ano ela deve ter sido concluída, mas, na realidade, a igreja foi
concluída muitos anos antes de 1627.
Para demonstrarmos isto, vamos
utilizar documentos coevos, que neste caso são o Livro
das visitações da igreja de São Gonçalo ou de Nossa Senhora
da Apresentação, que começa na carta de visitação de 19 de Junho
de 1613 e finda na de 2 de Novembro de 1675.
Lamentamos não podermos dispor
do primeiro livro que grandes esclarecimentos nos daria acerca
deste assunto.
/ 20 /
A NOVA IGREJA
ESTAVA QUASE CONCLUÍDA EM 1613
Começou a igreja a ser edificada
em 1606, e atendendo à grande necessidade que dela havia, e à sua
simplicidade, pois era de uma só nave e não tinha transepto, em
poucos anos ela poderia ser construída. E assim sucedeu, como
vamos ver.
|
Fachada da Igreja da Vera Cruz |
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|
A Igreja de S. Gonçalo foi
visitada em 19 de Junho de 1613 por António de Soveral Osório,
Comissário da Santa Inquisição, sendo bispo de Coimbra, D. Afonso
de Castelo Branco, mas esta igreja devia ser a velha ermida que
estaria a servir ainda de matriz.
O relatório da visita registado no
referido Livro é muito pequeno e nele diz em especial o visítador:
«Faço saber que visitando eu esta
igreja de São Gonçalo da Vila de Aveiro em presença do vigário e
alguns fregueses por serviço de Nosso Senhor, ordenei o seguinte:
... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ... ... ...
... ...
«E agora os vereadores mandarão
acabar de todo a igreja e os fregueses irão tirar as esmolas
que o senhor bispo mandou por uma provisão sob pena de o pagarem
de suas casas.»
Não há, pois, dúvida de que a nova
igreja de S. Gonçalo que havia sido começada no ano de 1606, já
estava quase concluída em 1613.
A obra não foi, porém, feita e por
isso o visitador seguinte, em 14 de Abril de 1614, manteve a mesma
ordem do seu antecessor, agora com a pena de quinze cruzados, ou
seis mil réis pagos pelos vereadores do seu bolso.
Assim, determinou:
«Os vereadores que hoje são
mandem acabar de todo a igreja nova sob pena de quinze cruzados
pagos de suas casas para a Santa Cruzada e meirinho.»
O que é certo, porém, é que os
vereadores ainda não mandaram fazer desta vez as obras que
faltavam.
Não sabemos de que natureza eram,
mas por certo eram obras de pouca monta.
No ano seguinte, 1615, o visitador
verificou que a ordem dos seus antecessores não havia sido
cumprida, e insiste nela, tendo feito registar no livro das
visitações o seguinte capítulo:
«Os vereadores do ano atrás não
mandaram acabar de todo a igreja nova, incorreram em pena de seis
mil réis mas somente os condeno em dois. Mando correr com a obra,
e acabá-la perfeitamente os vereadores que hoje são sob pena de
cinquenta cruzados pagos de suas casas, assim o cumpram até à
visitação seguinte.»
O visitador, para coagir os
vereadores a mandarem fazer as obras, aumentou-lhes a pena de
quinze para cinquenta cruzados, mas nem assim as mandaram fazer,
ou por não gostarem de ser ameaçados com castigo, ou por não terem
recursos para o fazerem, ou por a ordem não ser legítima.
A IGREJA FOI
CONCLUÍDA EM 1616
No dia 18 de Junho de 1616 houve
nova visitação à igreja. Foi visitador «o arcediago Bento
de Almeida cónego prebendado na sé catedral da cidade de Coimbra,
visitador deste seu arcediagado de Vouga pelos senhores Deão,
dignidades, e cónegos cabido sé vagante da dita cidade».
Ele verificou que as obras, apesar
de serem insignificantes, não tinham sido realizadas, não obstante
as ameaças de penas pecuniárias aos vereadores. Compreendeu que
estas eram improfícuas, se não contraproducentes e então resolveu
mudar de táctica: apelou para o coração e inteligência dos
vereadores. E assim determinou na sua carta de visitação:
«Os vereadores que hoje são
cumpram com mandar acabar a igreja nova até ao dia de São Miguel,
e porque fio deles lho não mando com penas.»
Vê-se que pouco faltava para
acabar de todo a igreja, pois que o visitador marcou um prazo
de pouco mais de três meses para realizarem a obra.
Parece que esta foi efectivamente
executada, pois que nas cartas de visitação de 1617 e dos anos
seguintes não apareceram mais referências a ela.
|
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Nossa Senhora da
Apresentação – Padroeira da Igreja. |
|
Podemos admitir, portanto, que a
igreja de Nossa Senhora da Apresentação foi concluída no ano de
1616 e que entrou em serviço paroquial em 1617, tendo então
deixado de ser matriz a velha ermida de São Gonçalo.
Estas afirmações são comprovadas
com a questão dos sinos para a nova igreja, como vamos ver.
DILIGÊNCIAS PARA AQUISIÇÃO DOS
SINOS
Dissemos que a igreja tinha
entrado ao serviço paroquial no ano de 1617 e assim deve ser,
porque em 1618 já se tomaram providências para a compra de sinos
para a igreja nova.
Com efeito, o visitador em 19 de
Dezembro de 1618 deu a seguinte ordem:
«Tratem de finta ou imposição
como é costume nesta vila para as igrejas novas de porem sinos
nesta igreja porque não é bem que esteja uma paróquia em uma vila
tão nobre sem eles.»
/ 21 /
Chegou-se à visitação de 23 de Setembro de 1620 e a igreja ainda
estava sem sinos. O visitador determinou então o seguinte: os
fregueses «procurarão com toda a brevidade de haver sinos por
ser indecente estar esta freguesia sem eles e sem cruz de prata».
Mas os sinos não foram feitos por falta de dinheiro, pelo que, na
visitação de 26 de Outubro de 1621, o visitador Doutor Sebastião
Vahia, insistiu no assunto, como consta do seguinte capítulo do
Livro:
«A grande necessidade que esta
igreja tem de sinos, e o bom termo em que está posto para se
prover deles, pois há provisão de Sua Majestade na qual manda se
dê dinheiro para eles da imposição que tem esta vila, me força a
fazer lembrança assim ao padre Vigário desta igreja, como aos
mordomos e fregueses dela, tratem de dar execução à dita provisão
pedindo ao senhor provedor e vereadores acudam a remediar cousa
tão importante.»
Estas providências foram
absolutamente ineficazes, pois decorreram oito anos sem ninguém
dar remédio a tal falta, até que em 12 de Junho de 1629 faz
pessoalmente a visitação da igreja o próprio bispo de Coimbra, D.
João Manuel, o qual, reconhecendo a
/ 22 / grande
necessidade dos sinos e a falta de recursos para os fazer,
habilmente resolveu o problema, determinando o seguinte na sua
carta de visitação:
«Os fregueses desta igreja
mandarão pôr nela um sino pequeno.»
É de crer que a freguesia tenha
adquirido um sino pequeno para o serviço da igreja, e neste
serviço ficou até o dia 2 de Outubro de 1647, dia em que, segundo
nos informa o Sr. Coronel Diamantino do Amaral, nela foram postos
dois sinos grandes novos.
A torre da igreja teve sempre
apenas dois sinos e só há poucos anos é que passou a ter quatro.
Em 1898 ainda tinha só dois sinos.
O investigador aveirense José
Reinaldo Rangel de Quadros publicou em Novembro de 1898, num
jornal de Aveiro, algumas curiosas informações acerca da igreja de
Nossa Senhora da Apresentação, que vamos reproduzir:
«Na festa de 2 de Fevereiro de
1848, quando eram tangidos os sinos, rachou o menor. Assim esteve
até 23 de Julho de 1855, em que, depois de novamente fundido, foi
colocado no seu lugar. Na mesma ocasião foi colocada no cimo da
torre uma nova grimpa. É à imitação de um galo.»
O mesmo sino e o sino maior
sofrera, por diversas vezes, desastres e novas fundições.
Quando esta igreja tornou a ser
sede de freguesia (26 de Dezembro de 1876) estavam na torre dois
sinos, que ainda hoje lá estão e que têm maiores dimensões, que os
antigos.
O maior tem estes letreiros:
SEBASTIÃO DE
CAMPOS ME FÉS
X
ECCE CRVCEM
DOMINI
1864
No outro sino lê-se:
IN SIMBALlS
BENE SONANTIBVS
LAVDATE DOMINI
1869
JOAQUIM DIAS DE
CAMPOS
ME FES
CANTANHEDE
Aqui deixamos estes breves
subsídios para a história da extinta freguesia de São Gonçalo e da
antiga e actual freguesia da Vera Cruz, de Aveiro, esperando que
outros possam corrigi-los e até mesmo acrescentá-los.
Aveiro, Novembro de 1966.
____________________________
(1) –
Publicado por A. G. da Rocha Madahil no "Arquivo do Distrito de
Aveiro", voI. I, pág. 41.