Quem estende a vista pela imensa
planície líquida da Ria de Aveiro e a fixa no caprichoso mosaico
composto pelas marinhas de sal, está longe de se aperceber do
esforço heróico do marnoto aveirense.
O que ele luta, Santo Deus, para
arrancar das águas lagunares os cristais de sal...
A região de Aveiro não goza de
condições climatéricas propícias a uma fácil e regular
evaporação. Por isso o marnoto tem de multiplicar os seus
esforços para suprir as deficiências climáticas.
Numa passagem desse admirável
monumento da nossa Literatura - A Holanda, de Ramalho Ortigão,
lê-se esta impressionante verdade:
– «Deus fez o Mundo, e o
holandês fez a Holanda».
Ora, parafraseando aquela
legenda de Ramalho pode dizer-se:
– A Natureza cria o sal, mas o
marnoto aveirense faz o seu...
Se é certo que o Sol e o Vento
são os grandes geradores do Sal, provocando a evaporação da água
salgada enclausurada em recipientes expostos à sua acção no
Salgado de Aveiro é o marnoto o sublime escultor dos seus finos
cristais.
A Natureza, essa, limita-se,
avaramente, a ajudá-lo, mais parecendo, todavia, contrariar-lhe
as suas propensões artísticas do que prodigalizar-lhe as bênçãos
necessárias ao seu trabalho árduo.
É que o sol de Aveiro não
aquece... como lá para as bandas do Sul, e fraqueja no seu
despique com as investidas eólicas e brumas espessas que o
escondem...
Dest'arte o nosso marnoto tem de
vencer o fatalismo geográfico da região, suprindo a escassez das
carícias solares, fecundantes, com uma técnica produtora de sal
estruturada em moldes próprios.
O factor humano que actua na
exploração salineira de Aveiro é o seu elemento primordial.
É com arte e beleza, tragédia e
glória, que o marnoto esculpe os cristais de sal.
O Sol não o acarinha.
E sem este o Vento baila
ineficazmente, não lhe emprestando o sopro anímico indispensável
ao seu nascimento.
O clima de Aveiro é fresco,
ventoso e particularmente húmido, pairando sobre uma vastíssima
planície líquida retalhada de braços da Ria e de imensos canais.
A região é muito fria, mesmo
quando os raios solares a fusilam no pino do Verão.
Até parece que as marinhas se
acham arrimadas umas às outras, como que entreajudando-se em
busca do abrigo acolhedor.
E o Vouga, coleante, avoluma a
tragédia fazendo desabar abundante mistura de água doce nas
águas vindas do Mar.
Custa muito a Vida do marnoto de
Aveiro!
Manhã cedo, mal o dia rompe, ele
aí vai na sua bateira, indispensável companheira para deslizar
na Ria, rumo à marinha. Sabe-se lá que dolorosos monólogos terá
ouvido ao marnoto, no seu vaivém diário, quando vencido pelo
desalento e tocado de cansaço.
/ 6 / –
Que raio de vida esta!...
É duro, muito rijo, o trabalho
do marnoto!
Parece, no entanto, que é na
singular movimentação da sua faina e no contacto com os
caprichos da Natureza que ele adquire uma idiossincrasia própria
para a luta.
E para a arte.
Encafuado na sua marinha, e
acicatado pela ideia de que terá de arrancar em quatro ou cinco
meses de labuta quotidiana e permanente o pão que há-de comer
durante um ano inteiro, o marnoto fecha-se no seu pequeno mundo
e escreve, aí, o grande poema da sua vida de trabalho e de
sofrimento.
É um trabalhador singular, misto
de lavrador que arregala os olhos para o Céu, numa sôfrega
ansiedade de receber as suas graças, e do artista ensimesmado
quando plasma e dá vida às concepções do seu génio.
E, curioso:
Não obstante o vendaval interior
que atormenta o marnoto, nascido da incerteza de receber os
favores da Natureza, é com ternura que prepara o berço onde o
sal há-de nascer e acarinha este quando o rê suavemente.
E precisamente na aptidão com
que o trata e o acolhe no seu leito, é que se encontra a razão
de ser das virtualidades e particularidades do sal de Aveiro.
Desde o momento em que se inicia
a preparação da marinha para a gestação do sal, passando pela
recolha da água nos canais vizinhos, sua engorda
salineira, e toda aquela teia delicada de que o marnoto se vale
na luta heróica pela sua subsistência, até ao limiar da
morte
do sal em pleno Outono, sempre o marnoto é tocado de carinho,
engenho e arte.
O sal de Aveiro não nasce, como
nascem e medram os frutos silvestres.
É feito pelo marnoto, com o seu
talento, sofrimento e dedicação.
Sem estes,
/ 7 / que
sintetizam toda a valorização desta figura regional tão típica,
o sal de Aveiro não mostraria aquele seu reluzir inebriante
quando o Sol lhe cai em cima e o afaga.
O sal de Aveiro tem os seus
pergaminhos, e ostenta uma linhagem que o distingue e o torna
preferido, – quer, ainda pela delicadeza dos seus cristais,
provinda da delicadeza com que o acariciam as mãos do nosso
marnoto! Dele colhe, ao nascer, os carinhos indispensáveis à sua
fina estirpe, não vão as suas mãos feri-lo e conspurcá-lo quando
é retirado do seu leito natalício que um ténue lençol de água
cobre docemente...
...É então que o seu progenitor
revela toda a sua arte, rendo-o mansamente na terna preocupação
de o trazer para a luz do dia são e escorreito. Este pormenor da
natalidade e da vivência do sal de Aveiro, – com os seus épicos
ressaibos de drama e de glória – põe em evidência toda a
grandiosa epopeia do trabalho do marnoto de Aveiro e o singular
merecimento do nosso sal.
Daí a produção ser dispendiosa.
E, também, o sal de Aveiro
ter de custar mais caro, – tal como as delicadas porcelanas
ou as filigranas douradas que transpiram beleza e gosto...
É este sal, nado e criado na
laguna aveirense, que depois vai guarnecer as circunvizinhanças
da Cidade, proporcionando-lhe uma panorâmica de sonho. É o
marnoto, ainda, que ao erguer os luminosos montes de sal,
pacientemente, afanosamente, ergue também eloquentes monumentos
ao Trabalho,
– símbolos de sacrifício ou
artísticas capelas viradas para o Céu, onde se afogam tantas
lágrimas e soluços, inquietações, ilusões, e uma ânsia incontida
de garantir o pão nosso de cada dia.
E, então, quando os cristais de
sal começam a aflorar na fímbria do horizonte, desde o poente ao
nordeste, acumulando-se e crescendo, e ganhando forma plástica
que o génio do marnoto modelou, o riqueza paisagística da Rio de
Aveiro encanta o olhar e seduz os espíritos ávidos de Beleza!
É um aspecto muito enternecedor
e importante da actividade salineira aveirense e do seu marnoto.