A história, dizem os bons autores,
não tem outro fim que não seja dar a conhecer factos passados;
quer esse conhecimento se faça relatando simplesmente os
acontecimentos, quer juntando a este relato uma apreciação
crítica, moral, política ou filosófica.
Mas, para conhecer factos,
necessariamente, há que procurá-los; e essa busca é feita,
principalmente, em documentos coevos que os registem.
Será essa a fonte mais segura,
direi mesmo, a única fonte séria de que deve lançar mão quem
pretenda elaborar qualquer trabalho histórico.
Assim, tudo o que seja tradição
oral, para um investigador honesto, pouco ou nenhum valor deve
ter, porquanto a tradição altera-se ao passar de uma para outra
geração e a história só quer a verdade e nunca esta envolta na
fantasia de qualquer narrador que a cobre de ouropeis,
roubando-lhe a simplicidade e a beleza primitivas e, o que é pior,
deformando-a quase sempre.
Foi pensando assim que, há cerca
de ano e meio, em «Voz do Santuário», órgão oficial do Santuário
de Nossa Senhora das Preces, da freguesia de Aldeia das Dez,
iniciando uma secção que denominei «Dizem Velhos Manuscritos...» ,
nela tenho inserido, com um outro comentário, a transcrição de
alguns documentos dos muitos que anos antes tinha encontrado, a
granel, numa cave bafienta e húmida da Casa Nova do Seminário de
Coimbra.
E quanta preciosidade ali vi!...
Entre outros, eram bastantes os
processos pedindo a erecção de capelas e igrejas, inquirições
acerca de seminaristas que pediam para receber graus de ordens
sacerdotais e relatórios minuciosos das visitações que os
arcediagos dos diferentes arcediagados do bispado, faziam em cada
ano.
E tudo isto constituiu, para mim,
uma fonte rica de informação que fui saboreando enquanto o tempo
de que dispunha mo permitiu.
Uma outra que também utilizei e
que, por sinal, manou substancial e abundante, foi o registo
paroquial, mesmo a despeito das deficiências que nele notei
principalmente até aos meados do século XVII.
É com elementos desta natureza e
que reputo fidedignos que tenho trabalhado dando a conhecer alguns
factos que as últimas gerações da minha terra natal desconheciam
totalmente.
Mas, bebendo agora das mesmas
fontes e trabalhando nos mesmos moldes, serei eu igualmente feliz
ao tentar dizer alguma coisa sobre Aveiro e, particularmente,
sobre a freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, desde a sua
criação, em 1572, até à sua extinção?
É o que vamos ver.
Até 1572, a vila de Aveiro
constituía toda uma freguesia única, com sede na igreja de S.
Miguel, hoje desaparecida.
A sua população era,
aproximadamente, de 12 000 almas, cifra demasiado elevada para ser
pastoreada por um só pároco, por maior que fosse o seu zelo.
Assim o reconheceu o Bispo de
Coimbra, D. Frei João Soares que, por provisão de 10 de Junho
daquele ano, ordenou uma nova divisão territorial.
Surgem-nos, assim:
– ao norte do Canal central, as
freguesias de ● Nossa Senhora da Apresentação e ● Vera Cruz; e
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– ao sul do mesmo canal, as de ●
S. Miguel e ● Espírito Santo.
A de Nossa Senhora da
Apresentação, única que, no momento presente, nos interessa, tinha
a sua sede provisória na igreja de S. Gonçalo que, por ser muito
pequena, obrigou a pensar, desde logo, na construção de uma nova
igreja.
Assim nos aparece a que, sob a
invocação de Nossa Senhora da Apresentação, foi sede definitiva da
freguesia do mesmo nome até à sua extinção, em 1835.
«Esta igreja – diz Marques Gomes,
nas suas «Memórias de Aveiro» – foi edificada em 1906».
Não vi o processo organizado antes
da sua edificação e que devia ter servido de base à concessão da
licença para essa construção! Mas, respeitantes à Igreja Nova,
como então era denominada, duas referências encontrei no registo
paroquial que me levam a pôr em dúvida a exactidão daquela data.
A primeira, em 1627, ano em que o
vigário, Padre Frei Jerónimo Galvão, registou o falecimento de
Maria Pinheiro, em 12 de Setembro, declarando que foi sepultada na
Igreja Nova.
Note-se, que foi esta a primeira
vez que se aludiu a enterramentos na Igreja Nova.
A segunda, em 1647, em que o
vigário, Padre Frei Manuel Pinto de Moura, registou o falecimento
de Domingos António, sombreireiro, a 20 de Outubro, o qual foi
sepultado na igreja de Nossa Senhora da Apresentação, declarando
ainda que «foi o primeiro defunto por quem se tangeram os dois
sinos novos».
Estes dois sinos, segundo
declaração feita pelo mesmo pároco e escrita na capa do «Livro de
Bautizados» de 1638 a 1662, tinham sido postos «aos dous dias do
Mes de Outubro de 647 annos».
Ora, para que pudesse haver
enterramentos na «Igreja Nova», era necessário que, antes, ela
tivesse sido benzida; e esta cerimónia só podia realizar-se depois
de concluídas as obras e a igreja já «ornada e paramentada».
Como, por outro lado, a igreja de
S. Gonçalo, que estava servindo de matriz, era muito pequena e
urgia substituição, não é crível que, estando a igreja de Nossa
Senhora da Apresentação edificada, como diz Marques Gomes, desde
1606, só em 1627 começasse a ser utilizada no serviço paroquial.
Pelo que fica dito, sou de parecer
que as obras da «Igreja Nova» só em 1627 foram completadas; e, por
não ser admissível uma lentidão tamanha (21 anos!) nesta
construção, julgo que elas nem sequer em 1606 começaram, mas muito
posteriormente a esta data.
A terceira das datas que acima se
mencionam só nos podem dizer que em 1647 ficou concluída a torre
sineira ou que, estando já feita, como aliás é bem natural, só
então houve possibilidade de dotá-la com os dois sinos novos a que
acima se alude.
À maneira de anotação devo
esclarecer que a torre, hoje existente, dispõe de quatro sinos,
não sendo nenhum dos colocados na torre primitiva, visto terem
todos data posterior a 1647.
Criada a freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação, foi nomeado seu vigário o Padre Frei Luís
Dias que em obediência a instruções recebidas do Bispo de Coimbra,
sob cuja jurisdição estava, em 1589 começou a organização do seu
registo paroquial, cujo primeiro livro destinou ao registo de
baptizados, casamentos e óbitos.
Mas os muitos anos, de mistura,
talvez, com um pouco de incúria e as imperfeições da tinta,
conspiraram contra a integridade do livro a que faltam muitas
folhas e contra a leitura de bastantes outras onde não pode ler-se
uma palavra, sequer, por ter desaparecido a tinta.
Assim, à primeira folha, além de
outras causas que impedem a sua leitura total, falta a metade da
direita. Tinha ela sete assentos de baptizados, dos quais os três
primeiros tinham as datas de 28 de Maio de 1589, 4 de Junho e 28
de Junho, sendo o primeiro de Francisco, filho de ... André e de
Maria Álvares. Desapareceram as folhas em que haviam sido feitos
os termos dos baptizados, em 1596, 1598, 1599, 1611, 1613, 1614 e
1617.
Estão incompletos os anos de 1589,
1590, 1592, 1601, 1608, 1610, 1612 e 1621 a 1623.
Servindo este livro também para
casamentos, apenas encontrei numa folha solta, uns
/ 33 / dois
ou três assentos quase ilegíveis e somente um registo de Óbito ali
vi.
Em suma, só a partir de 1623 se
podem considerar os registos de baptizados em estado razoável.
Felizmente, os livros que se
seguem a este, ainda estão em regular estado, só havendo a
lamentar, numa ou noutra folha, a ilegibilidade de alguns termos
em virtude do desaparecimento da tinta.
Apesar das deficiências apontadas,
até 1640 inclusive, pude registar o nascimento de 1268 crianças,
das quais: 705 são do sexo masculino e 563 do sexo feminino, ou
seja, 55,6% das primeiras e 44,4% das segundas.
Assim, o número de crianças do
sexo masculino excede em 1420 o das do sexo feminino.
Estes números são, na verdade,
interessantes e parece estar em desacordo com o que estamos
habituados a ver nas estatísticas oficiais, que acusam sempre um
excesso do quantitativo das mulheres sobre o dos homens.
Mas deixemos, por enquanto, de
fazer qualquer reflexão sobre o assunto e vamos continuar com o
dos nascimentos.
E, a propósito deles, mais uma
curiosidade: a dos filhos ilegítimos...
Diz Fortunato de Almeida, em
História da Igreja em Portugal, Tomo III – Parte II: «É sempre bem
difícil caracterizar sociedades sob o ponto de vista moral, quando
simultaneamente se encontram nelas, em grande destaque, paixões
estuantes, vícios infames, virtudes elevadas até ao mais puro
misticismo, como aconteceu em Portugal desde os fins do século XV
até ao meado do século XVIII».
E para corroborar a primeira parte
da sua afirmação, o autor apresenta o testemunho de Nicolau
Clenardo que, em 1535, de Évora, escrevia ao seu mestre Latomus
falando na sociedade portuguesa nos seguintes termos: «Para em
breve o dizer: por toda a Espanha me parece quadra muito de molde
a Vénus o epíteto de Pública e muito mais em Portugal onde é raro
topar mancebo legitimamente ligado.»
E mais adiante acrescenta: «Aqui
uns, aproveitando-se da licenciosidade comum, depravam-se nas
deleitações e na libertinagem; outros sofrem a miséria e os
vexames deste viver tão diverso.»
O quadro, pintado com tão negras
cores, aí fica; mas, pelo que é de deprimente para a sensibilidade
de um ser humano, eu recuso-me a aceitar a sua total exactidão.
Corrupção, imoralidade,
degradação, houve sempre em todas as épocas, em maior ou menor
grau.
E ao fazermos o balanço de uma
sociedade, sob o ponto de vista moral, não devemos olhar, apenas,
para a coluna das «Perdas», esquecendo que, ao lado desta, há uma
outra: a dos «Ganhos».
Postas estas considerações,
retomemos o fio do nosso assunto e vejamos o que se passa com os
filhos legítimos.
Dos 1 268 nascimentos, a que a
trás se alude, apenas 29 encontrei que são filhos naturais, sendo
um, filho de uma viúva e os restantes, de mulheres solteiras,
entre as quais, 2 escravas.
Naquele número, há 22, cujos pais,
no acto do baptismo, foram denunciados como tais, sendo 16
solteiros e 6 casados.
Entre os solteiros, citam-se o
licenciado Manuel Ribeiro, o Capitão Rafael de Figueiredo e Frei
Luís Lopes; e entre os casados, o Licenciado Gaspar Ferreira.
O exame destes números diz-nos que
na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, o mal moral não
atingiu a profundidade que podíamos julgar depois da leitura dos
extractos da carta em que Nicolau Clenardo pretende apreciar, sob
o ponto de vista moral, a sociedade portuguesa do seu tempo.
Os 700 e tantos lares, legalmente
constituídos e que, ao tempo, existiam na freguesia, não
desmentirão a afirmação feita alguns anos antes, de que era raro
topar mancebo legitimamente ligado?
Quantas mães dignas, quantos
homens simples e honrados!...
O seu número é, graças a Deus,
muito superior ao dos maus.