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toda a gente que admira embevecida as belezas da Ria e os
encantadores aspectos paisagísticos dos nossos rios Vouga e Águeda
avaliará devidamente, e em toda a sua extensão, o papel relevante
que eles desempenharam outrora no antigo tráfego mercantil que em
larga escala se exerceu através dessas vias fluviais. Eram numerosas
as barcas que diariamente as sulcavam num curioso vaivém, com as
velas enfunadas ao vento se este lhe corria de feição, o que dava à
paisagem que os ladeava uma nota de realçada beleza. E assim iam
deslizando sobre a corrente, parando aqui e ali, nos diferentes
portos junto de algumas terras que lhes ficavam mais próximas, para
aí descarregarem algum pescado da costa marítima de Aveiro e
algumas mercadorias, até aportarem finalmente ao Cais de Águeda,
junto da velha ponte, pois era aí a centro principal onde
convergiam, em largas dezenas, os almocreves com récuas de machos e
os serranos envergando a característica «capucha» caramulana, que
depois transportariam ajoujados, às próprias costas, em canastras,
ou sobre a lombada dos burricos, a sardinha que era levada às terras
mais escondidas nas abas da serra, e que iam apregoando como
«sardinha d'Águeda!» Tinham pernoitado nas locandas ribeirinhas dos
bairros de Além da Ponte e do Barril e comida a parca refeição,
aprontando-se assim para arrastar a longa jornada a percorrer, agora
com mais pesada carga na volta do que a que trouxeram na vinda,
constituída por queijos frescos, carvão, ovos, etc. E depois, lá diz
o ditado que «a descer todos os santos ajudam...» E lá seguia a
caravana, e outros se sucediam no dia imediato, entre o vozear
daquela gente que aos grupos calcorreava os carreiros através dos
montes por atalhos que bem conheciam, e ao som do guizalhar nas
coleiras dos jumentos, já bem batidos naqueles caminhos.
Águeda foi desde eras muito recuadas
um centro comercial de nomeada; e, como tal, a sua justa fama chegou
a terras muito distantes, perdidas nos confins das Beiras. Ali
afluía não só a multidão da gente que se entregava à prática de
pequenos negócios, de que ficou reflexo bem nítido que ainda chegou
a nossos dias, mas acorriam também, em grande número, abastados
mercadores, incluindo os ourives, os boticários, etc., etc.
Adolfo Portela, que no seu estilo
literário muito próprio, inimitável, nos descreve as lendas,
costumes e paisagens de Águeda, traça-nos com as cores vivas da sua
fértil imaginação, este quadro pitoresco alusivo à chegada dos
barcos, o que ele ainda presenciou:
«Era por Águeda que se fazia então
todo o comércio da Beira-Mar com as duas Beiras, Ovar, Porto,
Aveiro, Torreira, S. Jacinto, Costa Nova, tudo por ali passava com
as suas mercadorias, graças a essa bela estrada do rio, que era por
esse tempo a artéria principal da circulação comercial das terras de
Águeda.
Coalhava-se o rio de barcos e
bateiras em cada dia.
E, mal as velas assomavam, lá
abaixo, aos Carvalhos de Paredes, logo das bandas da serra descia, a
campainhar alegremente, a récua dos machos beirões que vinham a
fazer carga.
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Aos dez e aos vinte, em maré-cheia
de boa pesca, os barcos, ancorados no velho Cais das Laranjeiras,
com os mastros em descanso, davam a ilusão duma esquadra de galés
antigas que ali arribassem a ajoujar de riquezas.»
(1)
Com os modernos meios de transporte
e o progressivo assoreamento do rio desapareceram
/ 14 / os
barcos daquelas paragens e já não podemos agora vê-los alinhados
junto ao cais, nem apreciar a nota de rara beleza que nos ofereciam
não só quando transpunham a corrente de velas inchadas ao vento, mas
ainda, quando mal caía a noite, todos iluminados pelas fogueiras
onde os barqueiros cozinhavam as suas «caldeiradas», ali
estacionavam, para, alta madrugada, voltarem para a faina habitual.
Mas já muito anteriormente o papel
da Ria e dos rios Vouga e Águeda era posto em destaque. Numa
curiosa Memória Paroquial escrita pelo então prior d' Águeda, em
1758, ao tempo Manuel de Abranches da Costa
(2) diz-se que o rio era frequentado
por barcos de Aveiro, de Ovar, de Ílhavo e outras terras da costa
marítima, fazendo-se referência às mercadorias por ele
transportadas, como eram o sal, sardinhas e outro pescado; falava-se
ainda no tráfego comercial com a gente serrana, etc. Transcrevo da
citada memória, textualmente, e para lhe não alterar o sabor próprio
da narrativa, que é feita em termos muito expressivos, esta
passagem referente ao rio:
«As embarcações que o frequentam são
os barcos da vila de Aveiro e da Vila de Ovar e da Vila de Ílhavo e
das mais terras marítimas daquele sítio e por ele, a vela e remo,
conforme o vento, conduzem ao dito lugar vários provimentos de
infinito sal, sardinhas e outro género de pescado molhado e seco e
conduzem para baixo muitos vinhos, frutas e lenhas, por cuja
frequência é o dito lugar o melhor empório que têm as terras
marítimas, Aveiro e suas vizinhas; e ao mesmo lugar se vêm prover
os povos das serras e lugares vizinhos. O mesmo rio, de Verão, é de
curso plácido, porém, de Inverno, com as enchentes é arrebatado e
toma muitas águas, de sorte que, como corre encostado ao dito lugar
de Águeda, inunda muita parte dele.»
(3)
Pelo que se mostra, o transporte das
mercadorias não era possível fazer-se pelo rio no Inverno, pelo que
tinha de se recorrer à tracção animal.
Como bem se anota na memória, o rio
com a concorrência de muitos ribeiros que para ele desaguavam
tornava-se «arrebatado». Já na segunda metade do século XVII, esta
circunstância era posta em destaque pelo prior de Espinhel, que, ao
requerer lhe fosse dado um Cura para o ajudar nas lides da
paroquialidade, alegava, ao Rei D. Pedro II, que além de contar a
freguesia mais de 340 fogos tinha «de permeio os ribeiros que vão
pelo Águeda para o mar», acrescentando que o rio era muito caudaloso
principalmente no Inverno em que se não podia passar «sem risco da
vida». E foram aceites os motivos apresentados, pelo que foi nomeado
coadjutor no ano de 1674.
O Rio Vouga, ainda que numa parte do
seu percurso fosse também utilizado para este tráfego mercantil, não
teve neste campo a projecção do Rio Águeda; foi, no entanto,
importante também o seu papel, o que é assinalado num outro curioso
documento, do qual extraio a seguinte passagem:
«É o Vouga navegável desde a Vila de
Aveiro até Pessegueiro, por distância de cinco para seis léguas; e
só navegam por ele barcos pequenos, como são os de Aveiro, Ovar e de
Ílhavo, que conduzem as mercadorias para as feiras que se fazem por
estes contornos e trazem o sal para estas povoações.»
De tudo isto resulta, com evidência,
o papel outrora desempenhado por estes nossos rios no tráfego
comercial entre as terras da costa marítima e as serranas. Mas vária
documentação antiga revela-nos também que, a par dos negócios e
actividades já referidos, surgiam e firmavam-se por ali outras
convenções de significado mais transcendente – os contratos de amor
– pois muita gente vinha de fora ali constituir família, sendo
também em grande número os oriundos de terras da orla marítima, que
formavam novas famílias em Águeda, algumas das quais muito se
enobreceram em sucessivas gerações de letrados, de vultos eminentes
em ciência, nas artes, em leis, em
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religião, etc., etc. Levaria muito longe a explanação deste
assunto, mas sempre apontarei dois ou três casos, a título
explicativo. Assim, vemos o mercador Miguel Henriques de Castro, de
Vila de Rei, Bispado da Guarda, realizar o seu casamento na Vila de
Recardães, junto a Águeda a 23 de Novembro de 1727, firmando-se o
tronco duma família ilustre cuja descendência veio ligar-se à Casa
de Aveiro; outro mercador, e este natural de Águeda, – Agostinho
Soares Vidal, aqui casou a 23 de Julho de 1747, com Mariana de Santa
Rosa, cuja família provinha das serranas paragens de Couto de
Esteves, Sever do Vouga. Foram filhos destes, um bacharel em
Direito, José Pedro Soares, e uma filha que abraçou o estado de
religião, professando no Convento das Carmelitas em Aveiro com o
nome conventual de Soror Maria do Monte Carmelo. Remoto ascendente
deste mercador foi o piloto André Vidal, escudeiro fidalgo que veio
para Aveiro no século XVI gerir os negócios da navegação e aqui
casou com Ana Pires Pericão, ficando destes numerosa descendência
que se espalhou por muitas terras do Distrito, desdobrando-se em
dezenas de conhecidas famílias, das quais uma grande parte usa ainda
o apelido Vidal. Da serra veio igualmente Miguel de Seixas Diniz,
natural de Foz de Arouce, Lousã, que também realizou o seu casamento
em Águeda a 1 de Janeiro de 1724, com Maria da Silva, fixando aqui a
gerência dos seus negócios; um seu neto, o Dr. José Patrício de
Seixas Diniz foi notável Desembargador das Relações de Macau e do
Porto, e um irmão deste foi mestre de Teologia na Universidade de
Coimbra. Por sua vez, com gente de Aveiro e de outras terras da
costa, principalmente de Ovar, foram-se constituindo novos vínculos
familiares no decorrer das eras.
Do que fica exposto resulta – sem
grande esforço de imaginação – que teremos de encontrar neste longo
abraço, de séculos, que a serra vem dando ao mar, e este vem dando à
serra, no rodar dos séculos, a verdadeira explicação de como em
grande parte se foi fazendo o povoamento desta formosa e cada vez
mais progressiva região do Vouga. |