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N.º 1

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Janeiro de 1966 

 

O Inventário Artístico

DO

DISTRITO DE AVEIRO

 

Por
A. Nogueira Gonçalves

 

A Academia Nacional de Belas Artes, que inicialmente julgara poder-se incluir o inquérito artístico do distrito de Aveiro num só volume, repartiu-o por dois, publicando o volume da zona-sul. Incluiu no mesmo os concelhos abaixo do Vouga, aos quais juntou o de Albergaria-a- Velha.

A continuação do inquérito directo, executado por um dos seus membros, reuniu tal massa de notas e de fotografias, que se viu ser insuficiente só um outro volume para a zona superior.

Julgou-se ser melhor subdividir esta nova parte e fazê-la sair em dois tomos. Um deles destinado aos concelhos que em sua parte principal ocupam o território estendido da grande linha dorsal demarcada pela estrada número um, para o mar. O outro reservado aos concelhos do interior, os quais, de alturas baixas, se elevam às cumeadas que daquela estrada se vêem recortadas a nascente e penetram para o interior.

O primeiro volume, publicado em 1959, correspondeu aos concelhos de Mealhada, Anadia, Oliveira do Bairro, Águeda, Vagos, Ílhavo, Aveiro, Albergaria-a-Velha. Na quase totalidade abrangeu o que foi a provedoria de Esgueira e depois de Aveiro, como também a antiga diocese, que fora criada na parte do arcediagado do Vouga que se encontrava dentro dos limites da mesma provedoria.

O original do segundo volume, tanto em notas como em fotografias, encontra-se reunido e passado às fichas definitivas, no arquivo da Academia. Falta só aquele largo trabalho de gabinete que exigem as publicações desta natureza.

Encontrar-se-ão nele recenseadas as espécies artísticas dos concelhos de Murtosa, Estarreja, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira, Ovar, Feira e Espinho. Virá a encerrar a quase totalidade da antiga terra da Feira, com algumas omissões, aquelas que, na divisão distrital, lhe excluíram na parte norte, incluindo breves regiões que lhe não pertenciam.

O terceiro volume será dedicado aos concelhos de Sever, Vale de Cambra, Arouca, Castelo de Paiva, indo do Vouga ao Douro, da serra das Talhadas, pelo maciço de Fuste, à zona periférica ocidental do Montemuro. Parte do inquérito respeitante às regiões inferiores já se encontra feito.

Se confrontarmos estes três volumes do distrito de Aveiro com os dois só (um da cidade e outro do distrito) consagrados a uma área mais rica em monumentos, tanto pela quantidade como pela primacial qualidade, a de Coimbra, notar-se-á o cuidado da Academia em procurar levar cada vez mais esta indagação aos limites que julga convenientes.

Se da Academia tem havido esse cuidado, também aqui encontrou um meio humano compreensivo da finalidade do inquérito, dotado de espírito / 8 / aberto, perfeita sociabilidade, que não é o menor encanto a ter-se em todo este largo, progressivo e rico tracto do País.

O fim que a Academia se propôs, o mesmo dos inquéritos similares de diversos países europeus, é meramente artístico; recensear por escrito e recolher as imagens, por fotografia ou desenho, das espécies acima do nível popular, daquelas saídas das mãos de artífices de certa capacidade até às daqueles que são verdadeiramente os Artistas, dessas espécies que se incluem na classificação de artes maiores e menores.

O trabalho deste inquérito é de selecção, de joeiramento. Não é um conjunto de breves monografias locais, com a resenha de todos os trastes mais ou menos antigos que existam numa casa, ou de todas as imagens de igreja ou de capela.

Pouco importa que uma casa tenha sido o solar duma família de larga ressonância genealógica, se essa habitação não tiver as mínimas características arquitectónicas que possam documentar a arquitectura domiciliária numa época.

Neste inquérito, a nobreza não está na gente que habitou a casa, mas nas mãos do arquitecto que a projectaram, nas dos artífices que a ergueram. É uma inversão dos conceitos antigos.

Nada interessa saber quantas esculturas dum santo que a devoção ao mesmo, generalizada ou restrita a um local, mandou executar. Importam as qualidades artísticas que essas imagens manifestam. Não se trata de iconografia, posto que em certos casos se tenha de atender a esse aspecto.

Naturalmente, circunstâncias de vária ordem poderão levar a anotar e apontar espécies de qualidade mais baixa. Não se irão mencionar as vulgares pinturas de ex-votos, as alminhas de estrada, pois que de igual forma se teria de registar cangas de bois (que bem sugestivo seria para as formosas de Murtosa a Espinho); não se descendo pois a etnografia artística.

De igual forma se não vai à arqueologia pré e proto-histórica, romana ou bárbara, posto que frequentemente, na introdução a cada freguesia, se refiram estações acessíveis ou, no corpo da recensão, se trate duma ou outra espécie que mereceu ser destacada.

Nos objectos de prata ou de ouro não é a matéria que importa. Neste rico distrito, a multiplicidade de confrarias, o natural gosto de ostentar riqueza, vincar bairrismo, acentuar religiosidade, multiplicou, no fim do século passado e no presente, as cruzes processionais, a que chamam padrões, e que dão encanto e brilho aos cortejos devotos. Interpretam tipos correntes sete e oitocentistas. Não são referidas pois, exceptuando uma ou outra de rara qualidade. Poderá uma arqueologia artística dos tempos futuros ocupar-se delas; hoje interessam secundariamente, tanto pela sua concepção como pelo trabalho; e ainda e muito principalmente porque elas, e espécies equivalentes, se encontram para aquém do tempo que limita o inquérito.

Esse limite é definido pelo fim do sistema político absolutista.

Com a instauração do regímen liberal o quadro histórico em que a / 9 / Nação vivera por séculos alterou-se fundamente. A extinção dos dízimos tirou a principal fonte de receita não só ao clero, mas a certa parte da nobreza que vivia cumulativamente de comendas e padroados. A abolição dos morgadios quebrou os elos que mantinham a mesma nobreza dentro duma mediania, assegurada na sucessão das gerações. A facilidade que se deu à remissão de foros, facilitando a que a terra se tornasse livre e alodial; a própria prescrição, favorecida pelo estado de lutas internas, diminuiu e mesmo tirou uma fonte certa, sem os cuidados da administração directa, tanto à nobreza como ao clero. A supressão dos conventos, com o confisco de seus bens, extinguiu uma das fontes de melhores encomendas que os artistas tiveram por séculos. A conversão dos bens de mão morta, com a subsequente depreciação dos títulos de dívida pública, reduziu a facilidade de aquisições por parte dos cabidos, colegiadas, igrejas, misericórdias, confrarias.

Acabadas ou diminuídas essas fontes, a encomenda de construção de edifícios, de execução de espécies artísticas de variado volume e qualidade, sofreu grande crise. As artes evoluíram também num sentido mais democrático.

Estas razões justificam que essa época seja tomada como limite do inquérito.

Por outro lado são motivo a que sem demora se proceda ao mesmo.

As igrejas conventuais que não ficaram sedes de freguesia, e às quais se tirou, para leiloar, para ir decorar outros templos, o que se podia levar com motivos diversos e para fins vários, se ainda se conservam bastantes, tem sido só pelo amor e sacrifício das modestas populações avizinhantes. Os edifícios claustrais, vendidos uns, outros adaptados melhor ou pior a outros fins, abandonados numerosos, estão desnaturados ou caiem em ruínas, não falando de outros de que só fragmentos dispersos se nos deparam. As igrejas paroquiais, as capelas, pequenas em relação ao acréscimo da população, estão a modificar-se, como o pede e mesmo exige a sua categoria de elementos que fazem parte da vida que evolui; a inconsciência iconoclasta, tanto pelo desamor do passado como por preocupações de certo gosto protestante, suprime-lhes as esculturas que foram alegria para os olhos, consolação de almas amarguradas, apoio da religiosidade, símbolo de esperanças tanto na vida como no último cerrar de olhos; a própria euforia vaticana-II, em oposição às severas normas trentinas que consagraram séculos duma linha certa de pensar, altera formas, diminui o valor espiritual e estimativo de coisas a que o coração e os olhos se tinham prendido.

As casas antigas desceram a casas de lavradores no melhor dos casos, nas respectivas capelas temos encontrado instalados os animais domésticos, tendo-se-lhe vendido retábulos, esculturas, tectos, grades, tudo o que o bric-a-brac cobiçou.

O inquérito, posto que tardio, vem ainda a tempo de recolher os traços artísticos dum teor de vida que, sendo / 10 / de ontem, em breve há-de parecer envelhecido de séculos.

Essa evolução, esse rápido desaparecimento, poderá constatar-se pelo confronto do volume do inventário duma cidade do Centro, publicado em 1947, com o que hoje existe; aí, neste momento, uma vasta nave há que nem para garagem a querem e se está a desmontar.

O Inventário Artístico não vem, em nada, modificar os direitos de propriedade das espécies cuja existência se regista. Não passa dum inquérito como um outro, seja ele linguístico, etnográfico, de música popular, botânico, etc. O que tem originado é uma maior atenção, cuidado, zelo e amor pelo que se possuía, guardava ou simplesmente se via, e cujo valor de diversa ordem, como sentido de raridade, de interesse, de mera documentação que fosse, se desconhecia. Diversas espécies, só porque os trabalhos de inquérito as fizeram notar, foram melhor guardadas, limpas ou restauradas.

Os três volumes ficam um registo do que o amor pela terra, pela casa, por motivos sociais e religiosos, levou a encomendar e a capacidade de criação e a técnica dos artistas e artífices executou e ainda perdura.

 
 

Lápida sepulcral de Jorge Dias Figueiró, capelão-tesoureiro de D. Isabel de Portugal, esposa do Imperador Carlos V.

 
 

Lápida sepulcral de Jorge Dias Figueiró, capelão-tesoureiro de D. Isabel de Portugal, esposa do Imperador Carlos V.

 

 

páginas 7 a 11

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