A Academia Nacional de Belas Artes,
que inicialmente julgara poder-se incluir o inquérito artístico do
distrito de Aveiro num só volume, repartiu-o por dois, publicando o
volume da zona-sul. Incluiu no mesmo os concelhos abaixo do Vouga,
aos quais juntou o de Albergaria-a- Velha.
A continuação do inquérito directo,
executado por um dos seus membros, reuniu tal massa de notas e de
fotografias, que se viu ser insuficiente só um outro volume para a
zona superior.
Julgou-se ser melhor subdividir esta
nova parte e fazê-la sair em dois tomos. Um deles destinado aos
concelhos que em sua parte principal ocupam o território estendido
da grande linha dorsal demarcada pela estrada número um, para o mar.
O outro reservado aos concelhos do interior, os quais, de alturas
baixas, se elevam às cumeadas que daquela estrada se vêem recortadas
a nascente e penetram para o interior.
O primeiro volume, publicado em
1959, correspondeu aos concelhos de Mealhada, Anadia, Oliveira do
Bairro, Águeda, Vagos, Ílhavo, Aveiro, Albergaria-a-Velha. Na quase
totalidade abrangeu o que foi a provedoria de Esgueira e depois de
Aveiro, como também a antiga diocese, que fora criada na parte do
arcediagado do Vouga que se encontrava dentro dos limites da mesma
provedoria.
O original do segundo volume, tanto
em notas como em fotografias, encontra-se reunido e passado às
fichas definitivas, no arquivo da Academia. Falta só aquele largo
trabalho de gabinete que exigem as publicações desta natureza.
Encontrar-se-ão nele recenseadas as
espécies artísticas dos concelhos de Murtosa, Estarreja, Oliveira de
Azeméis, S. João da Madeira, Ovar, Feira e Espinho. Virá a encerrar
a quase totalidade da antiga terra da Feira, com algumas omissões,
aquelas que, na divisão distrital, lhe excluíram na parte norte,
incluindo breves regiões que lhe não pertenciam.
O terceiro volume será dedicado aos
concelhos de Sever, Vale de Cambra, Arouca, Castelo de Paiva, indo
do Vouga ao Douro, da serra das Talhadas, pelo maciço de Fuste, à
zona periférica ocidental do Montemuro. Parte do inquérito
respeitante às regiões inferiores já se encontra feito.
Se confrontarmos estes três volumes
do distrito de Aveiro com os dois só (um da cidade e outro do
distrito) consagrados a uma área mais rica em monumentos, tanto pela
quantidade como pela primacial qualidade, a de Coimbra, notar-se-á o
cuidado da Academia em procurar levar cada vez mais esta indagação
aos limites que julga convenientes.
Se da Academia tem havido esse
cuidado, também aqui encontrou um meio humano compreensivo da
finalidade do inquérito, dotado de espírito
/ 8 / aberto, perfeita
sociabilidade, que não é o menor encanto a ter-se em todo este
largo, progressivo e rico tracto do País.
O fim que a Academia se propôs, o
mesmo dos inquéritos similares de diversos países europeus, é
meramente artístico; recensear por escrito e recolher as imagens,
por fotografia ou desenho, das espécies acima do nível popular,
daquelas saídas das mãos de artífices de certa capacidade até às
daqueles que são verdadeiramente os Artistas, dessas espécies que se
incluem na classificação de artes maiores e menores.
O trabalho deste inquérito é de
selecção, de joeiramento. Não é um conjunto de breves monografias
locais, com a resenha de todos os trastes mais ou menos antigos que
existam numa casa, ou de todas as imagens de igreja ou de capela.
Pouco importa que uma casa tenha
sido o solar duma família de larga ressonância genealógica, se essa
habitação não tiver as mínimas características arquitectónicas que
possam documentar a arquitectura domiciliária numa época.
Neste inquérito, a nobreza não está
na gente que habitou a casa, mas nas mãos do arquitecto que a
projectaram, nas dos artífices que a ergueram. É uma inversão dos
conceitos antigos.
Nada interessa saber quantas
esculturas dum santo que a devoção ao mesmo, generalizada ou
restrita a um local, mandou executar. Importam as qualidades
artísticas que essas imagens manifestam. Não se trata de
iconografia, posto que em certos casos se tenha de atender a esse
aspecto.
Naturalmente, circunstâncias de
vária ordem poderão levar a anotar e apontar espécies de qualidade
mais baixa. Não se irão mencionar as vulgares pinturas de ex-votos,
as alminhas de estrada, pois que de igual forma se teria de registar
cangas de bois (que bem sugestivo seria para as formosas de Murtosa
a Espinho); não se descendo pois a etnografia artística.
De igual forma se não vai à
arqueologia pré e proto-histórica, romana ou bárbara, posto que
frequentemente, na introdução a cada freguesia, se refiram estações
acessíveis ou, no corpo da recensão, se trate duma ou outra espécie
que mereceu ser destacada.
Nos objectos de prata ou de ouro não
é a matéria que importa. Neste rico distrito, a multiplicidade de
confrarias, o natural gosto de ostentar riqueza, vincar bairrismo,
acentuar religiosidade, multiplicou, no fim do século passado e no
presente, as cruzes processionais, a que chamam padrões, e que dão
encanto e brilho aos cortejos devotos. Interpretam tipos correntes
sete e oitocentistas. Não são referidas pois, exceptuando uma ou
outra de rara qualidade. Poderá uma arqueologia artística dos tempos
futuros ocupar-se delas; hoje interessam secundariamente, tanto pela
sua concepção como pelo trabalho; e ainda e muito principalmente
porque elas, e espécies equivalentes, se encontram para aquém do
tempo que limita o inquérito.
Esse limite é definido pelo fim do
sistema político absolutista.
Com a instauração do regímen liberal
o quadro histórico em que a
/ 9 / Nação vivera por séculos
alterou-se fundamente. A extinção dos dízimos tirou a principal
fonte de receita não só ao clero, mas a certa parte da nobreza que
vivia cumulativamente de comendas e padroados. A abolição dos morgadios quebrou os elos que mantinham a mesma nobreza dentro duma
mediania, assegurada na sucessão das gerações. A facilidade que se
deu à remissão de foros, facilitando a que a terra se tornasse livre
e alodial; a própria prescrição, favorecida pelo estado de lutas
internas, diminuiu e mesmo tirou uma fonte certa, sem os cuidados da
administração directa, tanto à nobreza como ao clero. A supressão
dos conventos, com o confisco de seus bens, extinguiu uma das fontes
de melhores encomendas que os artistas tiveram por séculos. A
conversão dos bens de mão morta, com a subsequente depreciação dos
títulos de dívida pública, reduziu a facilidade de aquisições por
parte dos cabidos, colegiadas, igrejas, misericórdias, confrarias.
Acabadas ou diminuídas essas fontes,
a encomenda de construção de edifícios, de execução de espécies
artísticas de variado volume e qualidade, sofreu grande crise. As
artes evoluíram também num sentido mais democrático.
Estas razões justificam que essa
época seja tomada como limite do inquérito.
Por outro lado são motivo a que sem
demora se proceda ao mesmo.
As igrejas conventuais que não
ficaram sedes de freguesia, e às quais se tirou, para leiloar, para
ir decorar outros templos, o que se podia levar com motivos diversos
e para fins vários, se ainda se conservam bastantes, tem sido só
pelo amor e sacrifício das modestas populações avizinhantes. Os
edifícios claustrais, vendidos uns, outros adaptados melhor ou pior
a outros fins, abandonados numerosos, estão desnaturados ou caiem em
ruínas, não falando de outros de que só fragmentos dispersos se nos
deparam. As igrejas paroquiais, as capelas, pequenas em relação ao
acréscimo da população, estão a modificar-se, como o pede e mesmo
exige a sua categoria de elementos que fazem parte da vida que
evolui; a inconsciência iconoclasta, tanto pelo desamor do passado
como por preocupações de certo gosto protestante, suprime-lhes as
esculturas que foram alegria para os olhos, consolação de almas
amarguradas, apoio da religiosidade, símbolo de esperanças tanto na
vida como no último cerrar de olhos; a própria euforia vaticana-II,
em oposição às severas normas trentinas que consagraram séculos duma
linha certa de pensar, altera formas, diminui o valor espiritual e
estimativo de coisas a que o coração e os olhos se tinham prendido.
As casas antigas desceram a casas de
lavradores no melhor dos casos, nas respectivas capelas temos
encontrado instalados os animais domésticos, tendo-se-lhe vendido
retábulos, esculturas, tectos, grades, tudo o que o bric-a-brac
cobiçou.
O inquérito, posto que tardio, vem
ainda a tempo de recolher os traços artísticos dum teor de vida que,
sendo
/ 10 / de ontem, em breve há-de parecer envelhecido de
séculos.
Essa evolução, esse rápido
desaparecimento, poderá constatar-se pelo confronto do volume do
inventário duma cidade do Centro, publicado em 1947, com o que hoje
existe; aí, neste momento, uma vasta nave há que nem para garagem a
querem e se está a desmontar.
O Inventário Artístico não vem, em
nada, modificar os direitos de propriedade das espécies cuja
existência se regista. Não passa dum inquérito como um outro, seja
ele linguístico, etnográfico, de música popular, botânico, etc. O
que tem originado é uma maior atenção, cuidado, zelo e amor pelo que
se possuía, guardava ou simplesmente se via, e cujo valor de diversa
ordem, como sentido de raridade, de interesse, de mera documentação
que fosse, se desconhecia. Diversas espécies, só porque os trabalhos
de inquérito as fizeram notar, foram melhor guardadas, limpas ou
restauradas.
Os três volumes ficam um registo do
que o amor pela terra, pela casa, por motivos sociais e religiosos,
levou a encomendar e a capacidade de criação e a técnica dos
artistas e artífices executou e ainda perdura.
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Lápida sepulcral
de Jorge Dias Figueiró, capelão-tesoureiro de D. Isabel de
Portugal, esposa do Imperador Carlos V. |
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