TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 68-70

O POÇO

Como, 17 / Fev. / 64.

A missão, naquela manhã, era destruir o poço que ficava na tabanca junto ao caminho que já tinha uma história de lutas encarniçadas.

Saímos cedo para criar surpresa. Passámos calmamente por detrás da casa do Brandão, onde já estavam instalados os morteiros para possível apoio, e entrámos no caminho sem o mínimo ruído metálico, sem ruídos nos passos lentos que pareciam aumentar a distância que era duns 500 m.

Porém, quando entrámos na bolanha do lado direito, rasa de água, chafurdando, os passos começaram a distinguir-se. Um cão, desperto, ladrou. E eles acompanharam-no. Um, dois, três tiros que encontraram o nosso silêncio. Protegemo-nos atrás dos cômoros, água a correr por debaixo do peito, estendido sobre as ervas e sargaços. Depois, de armas fixas nos quadris, apontadas, avançámos curvados. Nada de novo... E começámos a montar o cerco à tabanca.

De repente, o Montes viu um bandido de mãos vazias a sair apressado duma porta qualquer, acobertando-se. E disse para os outros:

– Não atirem... Vamos apanhá-lo à mão! – E deu três passos. / 69 /

É que um homem vivo, um prisioneiro, por vezes, vale mais que meia dúzia de mortos. Por isso mesmo, é que há dias andara a correr como um doido atrás de três negros matulões que corriam como galgos. Acho que bateriam o recorde dos 100 m.

Porém, o Montes não foi longe, pois, mal dera os três passos, mais homens, estes armados de pistola-metralhadora, saíram a correr para as suas posições E, então, não esteve com meias medidas ou contemplações. Atirou a matar, pois estavam a jeito.

E logo uma poeira infernal se fez no descampado da tabanca, enquanto algumas balas altas quebravam ramos verdes que nos caíam na cabeça, nos braços.

Estava de pé, por detrás dum tronco, quando a chuva começou tempestuosa, em torrentes de estalidos e chicotadas. A reacção foi enérgica, mas, a pé firme, de arma a vomitar fumo e fogo enraivecido, tivemos que recuar para os cômoros da bolanha, rompendo o cerco ardiloso que nos tinham montado. Os morteiros caíam-lhes em cima.

Foi, então, que ouvi uma voz dorida:

– Não me deixem aqui...

Olhei. Era o Oliveira que fora ferido na cintura e que não podia mover-se. E já vinha sendo arrastado pelo Silva. O destino parecia persegui-lo. Um dia, uma rajada varara-lhe o dólman. E, agora, estava ali escorrendo sangue, contorcendo-se. O enfermeiro, assistia-o, injectando-o, enquanto nós íamos reduzindo ao silêncio o furor inimigo.

O cento e dezassete exclamava admirado:

– Olhe acolá um...

Carregou no gatilho. Ficou furioso. falhou a pontaria. O bandido atirou-se por terra. E ele esperou, olhos bem abertos. Porém, quando ele se tornou a erguer, apontou, de novo e desta vez acertou em cheio:

– Vá para o diabo! Já se ia a safar...

Dei-lhe uma palmada no ombro, palmada encorajadora:

– Bravo, cento e dezassete! Bravo!

– Foi só apontar. E eis mais um a juntar aos mortos. / 70 / O cento e dezassete é franzino, pequeno:

– Vês, os homens não se medem aos palmos. Bravo! E não tirávamos os olhos da frente.

Ao longe, começou a ouvir-se o ronronar cadenciado dos aviões que cada vez se distinguia mais próximo.

E soaram as últimas rajadas à distância.

 

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