Este livro comporta, desde o
início da sua escrita, muitas histórias de guerra, páginas escorrendo
nervos, gritos, sangue e lágrimas, chagas, cicatrizes, feridos e mortes.
Retrata a guerra em toda a sua violência e brutalidade, por vezes, ao
pormenor, com esta originalidade: era escrito na sequência dos
acontecimentos. São as crónicas/reportagens na hora. O que foi uma
novidade no jornalismo, quando começou a ser publicado no Jornal da
Bairrada (1964). Era uma ousadia, um desafio quase inocente.
Mas a este livro, o primeiro
sobre a guerra colonial, foi acrescentada uma outra história, única em
toda a literatura da guerra. Após alguns dias sobre a colocação da obra
numa única livraria, a Vieira da Cunha, em Aveiro, era incluído no
número dos livros proibidos. Havia de ser censurado e recolhido pela
PIDE. Foi considerado um livro demasiado incómodo, muito desconfortável
para o governo. Afinal, havia guerra. Não escondia nada. Nem os mortos,
nem o desânimo e as lágrimas, muito menos as aldeias incendiadas e seus
nomes, os bombardeamentos e o tipo dos aviões utilizados nas operações.
/ VIII /
Quando começou a ser
publicado no “Jornal da Bairrada”, o facto chegou ao conhecimento do
comandante de Batalhão 490, Coronel Fernando Cavaleiro, que me chamou a
Farim, onde estava acantonada a Companhia do Comando, após o nosso
regresso da maior operação de guerra até aí realizada pelas tropas
portuguesas nas três frentes, a operação "Tridente", feita com o
objectivo de desalojar o IN da Ilha do Como, a sul, considerada então a
"República Independente do Como", um grande e inexpugnável bastião do
PAIGC, onde haveria até um restaurante, bunkers, etc. Não era bem assim,
apesar de, nos primeiros dias, os embates serem violentos e mostrarem os
guerrilheiros muito poder de fogo, boa preparação e mobilidade, que, no
entanto, foi afrouxando. As muitas baixas sofridas levaram Nino Vieira a
pedir auxílio a outras bases, através de carta de que foi apreendido um
exemplar numa operação posterior, realizada na península de Gampará.
Escrevia que já não tinha "outra safa" senão pedir reforços. "Posso
dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem
n/ guerrilheiros (...) Já estamos a contar com a baixa de 23 camaradas
nossos durante todos estes dias dos ataques". Assinava "do vosso
camarada Marga-Nino". A estratégia, definida pelo Secretário-Geral,
Amílcar Cabral, era que os camaradas e a população retirassem, "mas o
que é certo é que é impossível, porque não temos caminho de fazê-los
sair. Por isso, agradecia-vos que me mandassem reforços, vindos de todas
as partes", acrescentava Nino.
Fernando Cavaleiro mandou-me
chamar ao seu gabinete, perguntou-me, cordialmente, embora com aquele
tom agreste e frontal que o caracterizava, se sabia os perigos que
estava / IX /
a correr, ao publicar as crónicas, que, a continuar, "ainda ia ter
amargos de boca". Deixou-me um claro aviso, mas não me proibiu de
continuar a escrever. Continuei, sem mudar o objectivo: mostrar o que
era a guerra, quanto sofríamos, quanta coragem era necessário arrancar
não se sabe bem onde, mas ela existia, apesar dos desaires e também de
pequenas vitórias. Estas eram sempre escassas e transitórias, porque os
guerrilheiros voltavam, em geral, sempre aos mesmos locais.
Regressado em Agosto de
1965, após dois anos de muitos e cansativos trabalhos (emboscadas,
patrulhas, operações), em face do êxito que tinha sido a publicação no
quinzenário, entendi não serem crónicas/reportagens para esquecer ou
guardar na gaveta das memórias de guerra. Contactei a Gráfica Aveirense,
que me imprimiu o Tarrafo, que não quer dizer senão pântano. A
guerra no pântano. Como no Vietname.
No início da actividade
literária, não conhecia nem editoras nem distribuidoras. Daí que só
houve tempo para colocá-lo à venda na Livraria Vieira da Cunha, Aveiro,
guardando os outros exemplares para vendê-los aos camaradas de batalhão
e amigos. Eis senão quando sou alertado pela livraria que a PIDE passara
por lá, levantara um auto de apreensão de todos os exemplares. Alertado,
não tive outro remédio senão esconder algumas dezenas no escritório de
um advogado de Aveiro, Dr. Manuel Granjeia, director do jornal, enquanto
um amigo escondia uns tantos dentro de uma caixa de milho e foram os
únicos que escaparam à devassa, ao purgatório das letras. Mas o sossego
foi passageiro. Faltava o assalto final. No outro dia, quando de
bicicleta chego a casa, provindo da estação de comboio,
/ x /
de regresso do meu emprego em Aveiro, deparei-me com dois homens de meia
idade, ambos de gabardine, à porta de casa dos meus pais, que por eles
já haviam sido procurados no campo. Suspeitei de quem se tratava, antes
que me mostrassem o sinistro crachá. Disseram ao que vinham. O auto foi
levantado sobre a cómoda da sala de jantar. Mandaram-me apresentar-lhes
todos os exemplares. Tinha algumas dezenas no guarda-roupa do quarto.
Nenhum me seguiu. Confiaram. O medo era muito e só hoje entendo como
acabei por dizer onde estavam os restantes. No escritório do Dr. Manuel
Granjeia. Mandaram-me entrar na carrinha fechada. Onde o silêncio apagou
as palavras, menos a revolta em mim, e pouco mais soube: o livro estava
a seguir para o estrangeiro, o que ia dar trunfos a quem estava do lado
do PAIGC e contra a guerra. Em Aveiro, o advogado zurziu a política
colonial, a exploração de algumas empresas portuguesas, sediadas na
Guiné. Os "gorilas" não reagiram demasiado, mas cheguei a temer que lhe
dessem ordem de prisão.
Passaram-se os anos, chegou
a Revolução dos Cravos e eis que, volvidos mais uns tantos, como que,
por mera sorte do acaso, o exemplar censurado veio parar às minhas mãos.
Tem os carimbos do Ministério de Defesa Nacional e de "Confidencial".
Rara é a página que não tem sublinhados a vermelho, no sentido vertical,
à margem, ou na horizontal por baixo da palavra ou da frase, considerada
corrosiva ou subversiva, no mínimo incómoda. Há também notas a lápis,
deixando a impressão de que houve dois censores, qual deles o pior.
No princípio e durante anos,
até à década de oitenta/noventa, houve em Portugal a tremenda relutância
em escrever / XI /
e publicar livros sobre a guerra, que era uma espécie de memórias
proibidas. Não sei se por vergonha de uns ou mau entendimento de outros.
Talvez por ambos os motivos. Tempo houve em que os soldados eram
considerados menos do que assassinos.
Libertado dessas peias, fui
escrevendo Cabo Donato Pastor de Raparigas, (contos), Estranha Noiva de
Guerra e A Cubana que dançava Flamenco, (romances) mas faltava
republicar, fac-similado, em toda a sua nudez, o Tarrafo em si,
mas acrescentado das dedadas vermelhas dos censores e da PIDE. É com
estas marcas de documento (único) no universo de livros de guerra sobre
o antigo Ultramar, que agora deixo aos leitores e historiadores o livro
em que só a capa e esta Necessária Explicação são novidade. Como
novidade será ainda hoje este diário de guerra que, segundo Beja Santos,
também combatente da Guiné e escritor, (Adeus até ao meu regresso, pp. 15
a 18, 2012) "surpreende todas estas décadas depois, pela sinceridade,
pelo registo inocente, pela dureza da aprendizagem" (...) "São
apontamentos curtos, incisivos, por vezes metálicos, onde não escapa o
volteio poético, a descrição brutal, os gemidos, os desalentos, um olhar
quase etnográfico, o anseio por regressar" (...) "Outro valor histórico
não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos,
pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós".
O AUTOR
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