TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, 158 págs. VII-XI.

EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Este livro comporta, desde o início da sua escrita, muitas histórias de guerra, páginas escorrendo nervos, gritos, sangue e lágrimas, chagas, cicatrizes, feridos e mortes. Retrata a guerra em toda a sua violência e brutalidade, por vezes, ao pormenor, com esta originalidade: era escrito na sequência dos acontecimentos. São as crónicas/reportagens na hora. O que foi uma novidade no jornalismo, quando começou a ser publicado no Jornal da Bairrada (1964). Era uma ousadia, um desafio quase inocente.

Mas a este livro, o primeiro sobre a guerra colonial, foi acrescentada uma outra história, única em toda a literatura da guerra. Após alguns dias sobre a colocação da obra numa única livraria, a Vieira da Cunha, em Aveiro, era incluído no número dos livros proibidos. Havia de ser censurado e recolhido pela PIDE. Foi considerado um livro demasiado incómodo, muito desconfortável para o governo. Afinal, havia guerra. Não escondia nada. Nem os mortos, nem o desânimo e as lágrimas, muito menos as aldeias incendiadas e seus nomes, os bombardeamentos e o tipo dos aviões utilizados nas operações. / VIII /

Quando começou a ser publicado no “Jornal da Bairrada”, o facto chegou ao conhecimento do comandante de Batalhão 490, Coronel Fernando Cavaleiro, que me chamou a Farim, onde estava acantonada a Companhia do Comando, após o nosso regresso da maior operação de guerra até aí realizada pelas tropas portuguesas nas três frentes, a operação "Tridente", feita com o objectivo de desalojar o IN da Ilha do Como, a sul, considerada então a "República Independente do Como", um grande e inexpugnável bastião do PAIGC, onde haveria até um restaurante, bunkers, etc. Não era bem assim, apesar de, nos primeiros dias, os embates serem violentos e mostrarem os guerrilheiros muito poder de fogo, boa preparação e mobilidade, que, no entanto, foi afrouxando. As muitas baixas sofridas levaram Nino Vieira a pedir auxílio a outras bases, através de carta de que foi apreendido um exemplar numa operação posterior, realizada na península de Gampará. Escrevia que já não tinha "outra safa" senão pedir reforços. "Posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem n/ guerrilheiros (...) Já estamos a contar com a baixa de 23 camaradas nossos durante todos estes dias dos ataques". Assinava "do vosso camarada Marga-Nino". A estratégia, definida pelo Secretário-Geral, Amílcar Cabral, era que os camaradas e a população retirassem, "mas o que é certo é que é impossível, porque não temos caminho de fazê-los sair. Por isso, agradecia-vos que me mandassem reforços, vindos de todas as partes", acrescentava Nino.

Fernando Cavaleiro mandou-me chamar ao seu gabinete, perguntou-me, cordialmente, embora com aquele tom agreste e frontal que o caracterizava, se sabia os perigos que estava / IX / a correr, ao publicar as crónicas, que, a continuar, "ainda ia ter amargos de boca". Deixou-me um claro aviso, mas não me proibiu de continuar a escrever. Continuei, sem mudar o objectivo: mostrar o que era a guerra, quanto sofríamos, quanta coragem era necessário arrancar não se sabe bem onde, mas ela existia, apesar dos desaires e também de pequenas vitórias. Estas eram sempre escassas e transitórias, porque os guerrilheiros voltavam, em geral, sempre aos mesmos locais.

Regressado em Agosto de 1965, após dois anos de muitos e cansativos trabalhos (emboscadas, patrulhas, operações), em face do êxito que tinha sido a publicação no quinzenário, entendi não serem crónicas/reportagens para esquecer ou guardar na gaveta das memórias de guerra. Contactei a Gráfica Aveirense, que me imprimiu o Tarrafo, que não quer dizer senão pântano. A guerra no pântano. Como no Vietname.

No início da actividade literária, não conhecia nem editoras nem distribuidoras. Daí que só houve tempo para colocá-lo à venda na Livraria Vieira da Cunha, Aveiro, guardando os outros exemplares para vendê-los aos camaradas de batalhão e amigos. Eis senão quando sou alertado pela livraria que a PIDE passara por lá, levantara um auto de apreensão de todos os exemplares. Alertado, não tive outro remédio senão esconder algumas dezenas no escritório de um advogado de Aveiro, Dr. Manuel Granjeia, director do jornal, enquanto um amigo escondia uns tantos dentro de uma caixa de milho e foram os únicos que escaparam à devassa, ao purgatório das letras. Mas o sossego foi passageiro. Faltava o assalto final. No outro dia, quando de bicicleta chego a casa, provindo da estação de comboio, / x / de regresso do meu emprego em Aveiro, deparei-me com dois homens de meia idade, ambos de gabardine, à porta de casa dos meus pais, que por eles já haviam sido procurados no campo. Suspeitei de quem se tratava, antes que me mostrassem o sinistro crachá. Disseram ao que vinham. O auto foi levantado sobre a cómoda da sala de jantar. Mandaram-me apresentar-lhes todos os exemplares. Tinha algumas dezenas no guarda-roupa do quarto. Nenhum me seguiu. Confiaram. O medo era muito e só hoje entendo como acabei por dizer onde estavam os restantes. No escritório do Dr. Manuel Granjeia. Mandaram-me entrar na carrinha fechada. Onde o silêncio apagou as palavras, menos a revolta em mim, e pouco mais soube: o livro estava a seguir para o estrangeiro, o que ia dar trunfos a quem estava do lado do PAIGC e contra a guerra. Em Aveiro, o advogado zurziu a política colonial, a exploração de algumas empresas portuguesas, sediadas na Guiné. Os "gorilas" não reagiram demasiado, mas cheguei a temer que lhe dessem ordem de prisão.

Passaram-se os anos, chegou a Revolução dos Cravos e eis que, volvidos mais uns tantos, como que, por mera sorte do acaso, o exemplar censurado veio parar às minhas mãos. Tem os carimbos do Ministério de Defesa Nacional e de "Confidencial". Rara é a página que não tem sublinhados a vermelho, no sentido vertical, à margem, ou na horizontal por baixo da palavra ou da frase, considerada corrosiva ou subversiva, no mínimo incómoda. Há também notas a lápis, deixando a impressão de que houve dois censores, qual deles o pior.

No princípio e durante anos, até à década de oitenta/noventa, houve em Portugal a tremenda relutância em escrever / XI / e publicar livros sobre a guerra, que era uma espécie de memórias proibidas. Não sei se por vergonha de uns ou mau entendimento de outros. Talvez por ambos os motivos. Tempo houve em que os soldados eram considerados menos do que assassinos.

Libertado dessas peias, fui escrevendo Cabo Donato Pastor de Raparigas, (contos), Estranha Noiva de Guerra e A Cubana que dançava Flamenco, (romances) mas faltava republicar, fac-similado, em toda a sua nudez, o Tarrafo em si, mas acrescentado das dedadas vermelhas dos censores e da PIDE. É com estas marcas de documento (único) no universo de livros de guerra sobre o antigo Ultramar, que agora deixo aos leitores e historiadores o livro em que só a capa e esta Necessária Explicação são novidade. Como novidade será ainda hoje este diário de guerra que, segundo Beja Santos, também combatente da Guiné e escritor, (Adeus até ao meu regresso, pp. 15 a 18, 2012) "surpreende todas estas décadas depois, pela sinceridade, pelo registo inocente, pela dureza da aprendizagem" (...) "São apontamentos curtos, incisivos, por vezes metálicos, onde não escapa o volteio poético, a descrição brutal, os gemidos, os desalentos, um olhar quase etnográfico, o anseio por regressar" (...) "Outro valor histórico não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos, pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós".

O AUTOR

 

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