J. A. Carrilho Ralo, Evolução da Indústria de Lacticínios, Vol. XIX, pp. 161-184.

A EVOLUÇÃO DA INDÚSTRIA

DE LACTICÍNIOS NO DISTRITO

DE AVEIRO

O GRAU de prosperidade duma região depende essencialmente da riqueza do seu solo, da intensa e racional exploração deste e do desenvolvimento industrial que aí se registar. As restantes actividades estão, por via de regra, estreitamente subordinadas àquelas e ao afluxo populacional que determinam ou que as condições de vida do meio permitem. A elevada densidade de população que se verifica no distrito de Aveiro pode em grande parte explicar-se pela extraordinária importância agrícola e industrial da região. No caso particular da indústria de lacticínios à base do leite de vaca, o distrito de Aveiro constitui o fulcro da sua área principal e é nele onde essa actividade atingiu maior desenvolvimento. Para documentar o que se acaba de referir, bastará indicar que ao distrito de Aveiro cabem cerca de 77 % da produção de lacticínios do Continente. A indústria absorve na região cerca de 60 % da produção de leite de vaca, avaliada no ano de 1951 em cerca de 65 milhões de litros.

Para mais perfeita ideia do que se acaba de referir, indica-se, no quadro n.º 1, a produção anual dos vários produtos no Continente e no distrito e a percentagem que a este cabe em relação àquele.

Vemos assim que o maior contingente de produtos lácteos é fornecido pela região aveirense, pertencendo-lhe inteiramente a produção de produtos dietéticos, leite condensado, leite em pó e lactose e grande parte dos produtos de tecnologia mais delicada.

À produção total de lacticínios do distrito pode atribuir-se, no ano em referência, o valor aproximado de 110 mil contos, contra cerca de 70 mil contos do valor da matéria prima industrializada, cerca de 50 milhões de litros. Naquela [Vol. XIX - N.º 75 - 1953] / 162 / importância não está incluído o valor dos principais subprodutos − 350.000 litros de leite magro, 1:800.000 litros de leitelho e 18:000.000 de litros de soro de queijo e caseína − utilizados na alimentação de animais ou noutros fins.

QUADRO N.º 1
ELEMENTOS RELATIVOS AO ANO DE 1951

Produtos

Produção no Continente - kgs.

Produção no Distrito de Aveiro - kgs.

% no Distrito em relação ao Continente

Manteiga

Queijo

Farinhas lácteas

Produtos dietéticos

Leite condensado

Leite em pó

Caseína

Lactose

2:141.405

1:534.561

188.429

316.320

361.698

164.622

386.605

3.370

1:210.005

1:375.960

166.599

316.320

361.698

164.622

338.914

3.370

56,5

89,6

88,4

100,0

100,0

100,0

87,6

100,0

Totais

5:097.010

3:937.488

77,25

Apesar da enorme importância da produção de leite na região, o valor desta é inferior ao de vários produtos agrícolas e pecuários, tais como o vinho, a carne, a batata e o milho, que excedem em muito os 100 mil contos anuais, assim como o valor da respectiva indústria é, nalguns casos, bastante inferior ao de outras actividades industriais, mesmo sem falar naquelas que constituem empreendimentos com verdadeira projecção em todo o País.

Todavia, se situarmos aquela modalidade industrial no quadro das actividades regionais, ela pode, mercê da posição relativa que ocupa, do progresso que atingiu e da série de problemas que envolve, ser considerada das mais importantes.

Por estes motivos e pelas tradições que a indústria de lacticínios tem no distrito, afigura-se-nos de interesse arquivar nas notas que vão seguir-se os factos mais salientes da sua evolução e do incontestável desenvolvimento e aperfeiçoamento atingidos nos últimos anos.

Assim, na evolução da indústria de lacticínios no distrito de Aveiro podemos considerar três períodos:

1.º − Da sua origem a 1923:
2.º − De 1924 a 1938;
3.º − De 1939 a 1953.

/ 163 /

1.º Período: − Corresponde à época que decorre até 1923 e compreende duas fases distintas.

A primeira vem das mais recuadas épocas(1) e estende-se até ao fim do século passado (1892), altura em que são introduzidas as desnatadeiras centrífugas na região.

As notícias mais antigas que atestam a preparação da manteiga nesta região datam de 1513. Em foral de D. Manuel I, dado em Dezembro daquele ano à vila de Arouca, fazem-se referências a este produto.

Em 1640 todos os proprietários de vacas da freguesia de S. Pedro de Castelões de Cambra tinham incluído nos seus foros o pagamento de meio quartilho de manteiga ou meio tostão em dinheiro, por cada animal. (Rectificação do Tombo relativa à freguesia de Castelões).

Em 1870 escrevia o Intendente da Pecuária, António Augusto dos Santos:

«Em Cambra e mais terras que compõem o solar da família bovina arouquesa, o leite de vaca é convertido tão somente em manteiga. Nenhum se aplica ao fabrico do queijo. É geralmente mal preparado aquele lacticínio(2). A imperfeição do seu preparo deve atribuir-se sobretudo a má qualidade da manteiga.

A estatística oficial relativa ao ano de 1870, acusa nos cinco concelhos, que total ou parcialmente constituem o solar da raça arouquesa, a produção de 17.902,5 kgs. de manteiga que ao preço médio de 340 reis, dão o valor de 6.0868850 reis.»

Do relatório acerca do estudo da indústria pecuária no distrito de Aveiro, relativo a 1876 e 1877, publicado em 1878, transcrevemos as seguintes referências:

«As explorações económica e zootécnica da espécie bovina neste distrito reduzem-se à produção, criação e recriação de novilhos − trabalho, ceva e produção de lacticínios...». E mais adiante: «Está muito atrasada a indústria de lacticínios neste distrito como geralmente o está em todo o País».

No mesmo trabalho se afirma que a indústria de fabricação de manteiga estava quase limitada aos concelhos de Sever do Vouga, Cambra, Arouca e Paiva, sendo uma pequena parte consumida nestas localidades e a restante vendida para Aveiro, Porto, Coimbra, Santarém, Lisboa e outras terras do Sul. / 164 /

A maior exportação deste lacticínio fazia-se de Cambra, por intermédio da Estação de Estarreja. O autor dos referidos relatórios (o Intendente de Pecuária, MANUEL F. DE OLIVEIRA COUTINHO) calculava que do concelho de Cambra saíam anualmente cerca de 40.000 kgs. de manteiga, embora parte fosse produzida nos concelhos vizinhos.

Até à introdução das desnatadeiras centrífugas eram os próprios lavradores que extraíam a manteiga pelo primitivo processo da cântara de barro e touço, prática que ainda, por vezes, se realiza nos lugares mais recônditos da Serra. Consistia essencialmente em guardar o leite na cântara de barro durante dois ou três dias para facilitar o afloramento da gordura, aumentar a acidez e permitir um maior rendimento em manteiga.

O processo em referência era e é conhecido pela designação de «massar o leite».

A sua descrição sumária permite avaliar a natureza e péssima qualidade da manteiga, por via de regra conspurcada de moscas, larvas, pêlos, etc., apresentando muitas vezes aspecto verdadeiramente repugnante.

Os lavradores vendiam a manteiga assim obtida a intermediários que, depois de reunirem quantidades apreciáveis, a submetiam a uma salga feita à mão na típica masseira, colocando-a a seguir nos centros de consumo, embalada em tigelas de barro, cestos de vime ou latas.

Este processo circunscrevia-se quase exclusivamente à zona serrana, solar da raça bovina arouquesa, constituindo o natural aproveitamento do leite que excedia da amamentação das crias e do parco consumo em natureza.

MATA PREGO considerava este processo pouco generalizado e apenas em uso pelos pequenos agricultores do distrito de Aveiro, cuja manteiga de má qualidade era sobretudo consumida pelo mercado do Porto.

Nessa altura, de facto, a técnica de fabrico utilizada era rudimentar e inteiramente caseira.

A segunda fase deste período inicia-se com a introdução das desnatadeiras centrífugas na região e corresponde à generalização das referidas máquinas por quase todo o distrito.

Pode considerar-se como a de «iniciação industrial».

Em 1892, montou-se no escritório duma casa comercial de Sever do Vouga a primeira desnatadeira.

Em 1893, surge em Sanfins do mesmo concelho a primeira fábrica de manteiga com finalidade industrial. A instalação desta fábrica deve-se à iniciativa do Visconde de Nandufe, a quem se atribui também a introdução das desnatadeiras centrífugas no País e a montagem, anos antes, duma outra fábrica em Tondela. / 165 /

Aquele titular dedicava-se com entusiasmo à preparação da manteiga, pois em 1894 estabelecia uma rede de postos de desnatação e de fábricas por todo o distrito.

A sua falência, em 1924, obrigou-o a passar os restos dessa actividade para um seu feitor, o qual a abandonava totalmente em 1932.

Em 1896, um grupo de vendedores de manteiga estabelece em Vale de Cambra outra fábrica de manteiga, e, em 1906, constituiu-se na mesma localidade uma firma em regime de sociedade que emprestou também grande impulso ao fabrico desse produto.

Em 1896, é decretado que a Frutuária de Castelo de Paiva funcione como escola de lacticínios, sendo o respectivo plano de organização aprovado no mesmo ano e pouco tempo depois.

Não foi fácil colher elementos seguros sobre o exercício da Frutuária. As poucas informações que obtivemos levam-nos a supor que a escola de lacticínios não chegou a funcionar.

A circunstância do País deixar de exportar gado bovino para a Inglaterra, a partir de 1895, levou a lavoura a interessar-se pelo fabrico de manteiga. / 166 /

Neste último ano são decretadas providências relativas à fiscalização da venda do leite e lacticínios.

Em 1905, o VISCONDE DE NANDUFE apresentava no Congresso de Leitaria, entre outras, as seguintes considerações:

«O fabrico de manteiga pelo processo do repouso, ainda bastante praticado no País, deve ser proibido. Tem gravíssimos inconvenientes: o primeiro é ser nocivo, porque sendo a manteiga por este processo obtida de nata da qual a mais antiga tem, por vezes, dez, doze e mais dias, não é nata o que se pretende transformar em manteiga, mas sim uma substância repugnante à vista, mal cheirosa e cheia de vermes, além de micróbios de toda a espécie.

O segundo inconveniente deste processo, ou antes, da forma por que ele é praticado, está em que o produto obtido por esta forma não é manteiga, mas sim um produto falsificado em que predomina a caseína e a matéria azotada, esta proveniente dos vermes desenvolvidos por milhares... durante o tempo em que a, nata esteve em repouso...»

Em 1906, o professor MOTA PREGO considerava «a indústria de fabrico de manteiga de rudimentar e pouco importante, visto que o consumo deste produto no País era sustentado por uma grande importação de Inglaterra».

Com o rodar dos anos, sucedem-se e realizam-se várias tentativas, embora na maioria infrutíferas, para o estabelecimento do fabrico do queijo, em imitação do que já se fazia nos países estrangeiros de maior produção de leite.

Assim, de 1902 a 1914, o Visconde de Salreu dedicou-se em instalações próprias à preparação do queijo do tipo holandês, o que maior contingente ocupava no mapa das nossas importações.

Em 1905, aparece na Feira outra tentativa com vistas ao fabrico de queijo do tipo de pasta mole.

Este empreendimento sucumbe no ano imediato, data em que a firma Holândia inicia a preparação do queijo em Válega − Ovar.

Nesta fábrica, cujo desaparecimento teve lugar em 1924, preparou-se queijo de tipo holandês, no intuito louvável de se abastecer o mercado com produtos fabricados no País.

Apesar de algumas instalações serem consideradas modelares para a época − é o caso da fábrica de Salreu − todas as tentativas soçobraram perante a insuficiência de meios adequados, deficiência de instalações e falta de conhecimentos para trabalhar leite produzido em condições de higiene e salubridade muito precárias, ao que se nos afigura pela natureza, qualidade e progresso das explorações da hora presente.

Ao tempo que estas tentativas tinham lugar, assistia-se a uma intensa pulverização de fábricas de manteiga e postos de desnatação. / 167 /

/ 168 /  Ao período de guerra que começou em 1914, segue-se o tabelamento da manteiga em 1918.

Embora fosse de prever que esta medida traria como consequência um certo abrandamento ao desenfreado interesse na instalação de novos estabelecimentos, o que é certo é que estes aumentaram em grande escala.

Para uma ideia mais exacta da evolução do número destes estabelecimentos neste período, referimos no quadro N.º 2 o seu movimento nos anos iniciais da indústria e no fim dos quinquénios que lhes sucederam até 1924.

QUADRO N.º 2

 

ANOS

Estabelecimentos existentes

Postos de desnatação Fábricas de manteiga Total

1892

1893

1894

1895

1896

1897

1898

1899

1000

1905

1910

1915

1920

1924

1

2

6

6

14

19

26

39

64

113

140

197

288

1

2

7

7

8

9

12

12

13

29

40

58

74

107

1

3

9

13

14

23

31

38

52

93

153

198

271

395

 

Do que se deixa dito somos levados a concluir que este período inicial da indústria de lacticínios teve a caracterizá-lo:

a) − O aumento progressivo do número de estabelecimentos;

b) − A falta de condições higio-técnico-económicas de laboração, funcionando os estabelecimentos em adegas, estábulos, cozinhas, alpendres, etc., etc., nas piores condições de salubridade;

c) − A transformação dum leite mau em manteiga de péssima qualidade e sem poder de conservação;

d) − O irremediável e lógico fracasso das tentativas para o aproveitamento integral do leite.

/ 169 /
2.º Período: − Decorre desde 1924 até 1939, ano em que a indústria é organizada (Decreto n.º 29:749, de 13/7/1939 e Portaria n.º 9:733, de 10/2/1941).

Nos primeiros anos deste período regista-se a publicação de dois diplomas legais, com o fim de assegurarem, na instalação e funcionamento dos estabelecimentos, as condições de higiene e de salubridade indispensáveis (Decs. n.os 10:195 e 16:130).

Como se disse atrás, os postos e fábricas pululavam por toda a parte da região, instalados, por vezes, em antros de verdadeira imundície.

Aos diplomas citados deve-se realmente a disciplina e o progresso que a partir dessa altura se operou na indústria: o primeiro, estabelecendo os preceitos higiénicas a observar no fabrico dos produtos; o segundo, promulgando várias medidas relativas às condições a que deviam obedecer os estabelecimentos de lacticínios. Além destes pontos essenciais, aqueles diplomas inserem várias disposições sobre armazenagem e venda dos produtos e tornaram obrigatório o licenciamento dos estabelecimentos de preparação de natas, manteiga, queijo e outros derivados do leite, seja qual for a sua extensão e natureza.

A execução dos decretos a que nos vimos reportando competia e compete quase exclusivamente à Direcção-Geral dos Serviços Pecuários.

Nos primeiros anos que se seguiram à sua publicação, organizou-se o cadastro dos estabelecimentos em exercício e iniciou-se a obrigatoriedade do seu licenciamento.

Por alturas de 1926, é determinado um inquérito para conhecimento do estado e exigências da indústria de lacticínios no País.

Só a partir de 1933 podemos considerar extensiva a todas as oficinas a obrigatoriedade de possuírem a respectiva licença sanitária.

De 1925 a 1930 a indústria do fabrico de manteiga atravessou um período de crise pela concorrência da margarina.

Este produto invadiu o mercado em embalagens originais e serviu, ao mesmo tempo, para a prática de fraudes por falsificação da manteiga.

Em 1930, inicia-se em Vale de Cambra nova tentativa de fabrico de queijo, a qual só vê resultados práticos assegurados a partir de 1933.

Este período foi de grande entusiasmo pelo fabrico daquele produto, pois que se estabelecem no distrito fábricas em Estarreja (1931), Feira (1933), Avanca (1933) e Vale de Cambra (1934).

O êxito que ia alcançando o fabrico do queijo, a secagem do leite praticada em pequena escala desde 1924, o aparecimento de farinhas lácteas em 1934 e o da caseína cujo fabrico / 170 / data de 1936, marcam o início da fase verdadeiramente industrial. Começa a fazer-se em extensão o total aproveitamento do leite, valorizando o leite magro na preparação dos vários produtos, até então quase inteiramente destinado à alimentação de animais.

O distrito de Aveiro possuía nessa altura metade das fábricas existentes no País e cerca de dois terços dos postos de desnatação. Estes, na totalidade, ultrapassavam o número 500.

Por alturas de 1934, são visitados pelos Serviços Oficiais os estabelecimentos e os seus proprietários são notificados a executar as beneficiações de que aqueles careciam. Estas determinações abrangeram 128 fábricas de manteiga; 312 postos de desnatação; e 15 postos de recepção.

Apesar destas exigências, o número de estabelecimentos foi aumentando progressivamente, a ponto de em 1936 se ter verificado a necessidade de impedir que a indústria se pulverizasse ainda mais. Assim é, naquela data, superiormente determinado o condicionamento da indústria e a suspensão de novos licenciamentos.

Nos anos que decorreram de 1934 a 1938, verificou-se grande número de encerramentos, quer voluntários, por incapacidade técnica e económica dos proprietários, quer impostos pelos Serviços Oficiais, por falta de requisitos de ordem técnico-higiénicas nas instalações.

São estas, a traços largos, as ocorrências de maior relevo verificadas no decorrer do período a que nos vimos referindo. No entanto, alguma coisa mais diremos acerca desta época.

Antes, porém, de o fazermos, damos no quadro n.º 3 nota do movimento dos estabelecimentos no fim de cada triénio.

QUADRO N.º 3

 

ANOS

Estabelecimentos existentes

Postos de recepção

Postos de desnatação

Fábricas de manteiga

Total

1927

1930

1933

1936

1939

3

56

89

347

355

345

327

250

125

155

123

126

113

472

510

471

509

452

 

Pelo que se deixa dito verifica-se que o número de estabelecimentos se mantinha, não obstante o condicionamento para abertura de novas oficinas e das exigências que vinham sendo impostas àquelas que se encontravam em laboração. / 171 /

Às prescrições legais promulgadas anteriormente se deve atribuir o progresso que a indústria mostrou nessa época.

Na verdade essas disposições prestaram relevantes serviços ao País e podem considerar-se, para esse tempo, de superior concepção, pela visão clara do problema e metódico ordenamento dos pontos que visam.

Paralelamente às exigências feitas nas instalações, os Serviços Oficiais iniciam em 1934 uma campanha de assistência à indústria.

Embora não transparecesse a apreciável melhoria que a pouco e pouco se ia verificando nas condições de laboração dos vários estabelecimentos, a obra realizada nesse sentido representa trabalho de grande persistência e podia considerar-se do maior interesse para o País.

Só quem conhecer a dispersão das instalações, os penosos, e duros trajectos a que a sua inspecção obrigava, pode avaliar os sacrifícios feitos para dar execução às providências que as leis publica das impunham e a melhor salubridade e qualidade dos produtos exigia.

Procedeu-se, assim, em etapas sucessivas à beneficiação obrigatória das instalações, ao reapetrechamento das fábricas, dotando-as dos requisitos indispensáveis a uma melhor técnica. / 172 /

As exigências dos Serviços Oficiais incidiram, em especial, sobre os seguintes pontos:

a) Impermeabilização das paredes e pavimentos;
b) Isolamento das instalações e salubridade dos locais (afastamento de estrumeiras
    e de estábulos);
c) Arejamento e ventilação convenientes;
d) Tectos forrados ou a estuque; e
e) Abastecimento de águas e canalização de esgotos.

Ao mesmo tempo a laboração era vigiada e exigia-se:

a) Conservação e limpeza das instalações e material;
b) Uso permanente de vestuário próprio e exclusivo para trabalho
     nos estabelecimentos;
c) Documentação sanitária de todo o pessoal; e
d) Lavagem e desinfecção do material utilizado na recolha e transporte do leite.

Nos anos imediatos foram seguidas, com interesse, as técnicas de fabrico e foi prestada a necessária assistência. / 173 /

Aconselhava-se a montagem de frigoríficos, a pastorização do leite e a fermentação das natas à base de culturas de fermentos lácteos próprios, etc.

Fizeram-se demonstrações e experiências, orientava-se o fabrico e aconselhavam-se os pormenores de ordem técnica indispensáveis à obtenção de produtos de melhor qualidade.

Ao mesmo tempo o Laboratório de Patologia Veterinária do Porto foi devidamente apetrechado, para efeito de poder distribuir gratuitamente fermentos lácteos pela indústria, de resolver as dificuldades de ordem técnica que surgissem aos industriais, de realizar os ensaios e os estudos necessários para que fossem divulgadas as normas a atender na preparação dos produtos.

Dos vários estudos efectuados destacamos o que incidiu sobre o queijo nacional do tipo holandês, considerado pelo Prof. José Maria Rosell o mais completo do mundo.

Reconheceu-se também a necessidade de ser criada uma Comissão de Vistorias a estabelecimentos de lacticínios que, em resumo, tinha como finalidades essenciais:

a) Estudar e propor as remodelações necessárias nos vários estabelecimentos;
b) Apreciar as condições dos locais previstos para novas instalações; e
c) Apreciar e pronunciar-se sobre os projectos relativos a estabelecimentos
    desta natureza.

Os postos de recepção aparecidos em 1933, aumentaram de ano para ano e contavam-se por cerca de 90 em 1939, o que representava, por si só, um índice de progresso, dado que a sua missão principal é recolher leite em boas condições, com vistas ao abastecimento de fábricas onde existe a possibilidade de realizar o seu inteiro aproveitamento.

Em 1939, 5 fábricas preparavam queijo, cotando-se a produção em cerca de 400.000 quilos, quantidade suficiente para evitar a importação deste produto. Sete anos depois a produção de queijo no distrito atingia 1 milhão de quilos.

O elevado número de estabelecimentos e a sua confusa dispersão continuavam a permitir, na compra do leite, uma concorrência desmedida entre os industriais, concorrência à primeira vista salutar, mas no fim, quase sempre de funestas consequências para a própria produção.

À subida exagerada de preços da matéria prima durante a luta entre os industriais sucedia quase sempre um largo período de baixa por eliminação de alguns concorrentes ou por acordo entre eles.  / 174 /

O aspecto geral que oferecia a indústria no fim deste período foi ainda essencialmente caracterizado pela grande dispersão e expressivo numerário dos estabelecimentos:

89 postos de recepção;
250 postos de desnatação;
113 fábricas de manteiga (5 das quais preparavam queijo e outros produtos).

Em resumo, neste período, deve destacar-se:

a) Instalações acanhadas e por vezes inadequadas;
b) Reduzida capacidade de laboração e inconstante garantia da matéria prima;
c) Incapacidade técnica e financeira da maioria dos proprietários;
d) Deficiente apetrechamento;
e) Ausência de condições para a formação de stocks.

Daqui necessariamente resultava:

a) Produção má e cara;
b) Concorrência no mercado de produtos laborados;
c) Frequentes oscilações no preço do leite.

A falta de frigoríficos que permitissem conservar e armazenar a super-produção dos anos de 1937 a 1939, facilitou a desmedida concorrência na venda da manteiga.

Foram, sem dúvida, estas razões que levaram o Estado a organizar a indústria em moldes especiais, com vistas a conciliar e a garantir o justo equilíbrio dos interesses em causa.

Pelo que temos lido e ouvido, podemos concluir que talvez fosse essa a solução que se afigurasse mais consentânea com as necessidades da época.

Referindo-se ao estado da indústria de lacticínios em Portugal, escrevia, em 1938, o Agrónomo ERNESTO BURGUETTE:

«Chegamos, assim, logicamente, à concentração industrial como único meio, permitindo o melhoramento dos produtos e uma economia de laboração aceitável, da qual muito longe se encontram as nossas minúsculas fábricas actuais. De uma melhor economia e qualidade dos produtos beneficiarão, sem dúvida, o consumidor e o industrial, mas também com ele viria a lucrar o produtor, presentemente uma vítima das deficiências da indústria.»  / 175 /

Reconhecida esta oportunidade, o Governo cria a Junta Nacional dos Produtos Pecuários, com cuja acção se inicia o período seguinte:

3.º Período: − Começa verdadeiramente com o aparecimento da J. N. P. Pecuários e é, por assim dizer, o período da concentração da indústria de lacticínios.

O diploma que cria aquele organismo, impõe com clareza a orientação a seguir e os objectivos a atingir pelas suas diferentes secções. No caso particular da indústria de lacticínios esses objectivos eram:

a) Estudar as condições a que devem obedecer as fábricas para uma laboração económica, e promover a concentração da indústria por forma que todas as unidades que subsistissem desfrutassem dessas condições de laboração;

b) Definir as respectivas zonas de abastecimento;

c) Promover a supressão dos postos de desnatação considerados impróprios, inconvenientes ou de laboração deficientes.

O referido organismo, servindo-se de estudos feitos e tomando em conta as médias de laboração do triénio 1937 a 1939, extraídos de elementos fornecidos directamente pelos industriais, dá imediata execução às determinações previstas na lei. Organiza e promove a concentração dos industriais e propõe o encerramento dos estabelecimentos considerados
desnecessários.

Em 1941 diversos industriais agrupam-se em sociedades.

Eram estes os primeiros efeitos da orientação que se entendia dever seguir em matéria de lacticínios.

Logo que a maioria dos industriais se constitui nos agrupamentos previstos, são definidas as zonas de abastecimento (Portaria n.º 9:733, de 10/2/1941) para as novas unidades industriais.

Aos proprietários dos postos de desnatação é garantida a indemnização respectiva, calculadas na base da sua quilagem média de laboração.

Alguns proprietários de fábricas não entraram nas sociedades por sua livre vontade e outros aguardaram oportunidade de ver considerados os seus direitos, devidamente assegurados pelo organismo competente.

A definição das zonas de abastecimento para cada fábrica impunha necessariamente uma modificação profunda nas instalações existentes, as quais eram inadequadas, insuficientes ou incapazes, pelo seu apetrechamento, de laborarem em boas / 176 / condições técnico-económicas os quantitativos de leite que lhe haviam sido atribuídos.

Inicia-se assim uma época de renovação nas instalações da indústria de lacticínios, o que se consegue na maior parte com o decorrer dos anos.

Os projectos das novas unidades fabris ou os projectos de ampliação das já existentes, foram apreciados e considerados em relação à provável laboração prevista e à natureza dos produtos a preparar.

Duma maneira geral todas as instalações passaram a dispor de boas condições higio-técnicas, realizando-se as diferentes operações de fabrico segundo um ordenado esquema de trabalho.

Os melhoramentos técnico-higiénicos introduzidos nas diferentes instalações fabris e estabelecimentos complementares, podem considerar-se notáveis, pois de instalações incipientes e antiquadas passou-se em pouco tempo para edifícios modernos e de boa concepção (Fotos 6 e 7, 8 e 9).

E certo que, nalguns casos, as exigências dos Serviços Oficiais foram excedidas pela iniciativa dos industriais que se abalançaram a empreendimentos de extraordinária grandeza. / 177 /

/ 178 /

Vejamos agora no quadro n.º 4 o movimento do numerário de estabelecimentos nos vários anos deste período.

QUADRO N.º 4

 

ANOS

Estabelecimentos existentes

Postos de recepção

Postos de desnastação

Fábricas de Manteiga

Total

1939

1940

1941

1942

1943

1944

1945

1946

1947

1948

1949

1950

1951

1952

89

91

113

119

80

79

82

84

87

98

123

137

140

141

250

251

233

191

69

67

69

66

67

61

69

57

57

56

113

95

70

37

14

14

14

14

14

14

14

14

14

14

452

437

416

347

163

160

165

164

168

173

206

208

211

211

 

/ 179 /  Observa-se assim que, embora decrescendo o número de postos de desnatação e de fábricas de manteiga, só em 1943 se verifica o desaparecimento dos estabelecimentos previstos na organização da indústria.

Daí por diante o número de fábricas e de postos oferece certa estabilidade, embora nos últimos anos tenha aumentado o movimento de postos de recepção (Fotos 10 e 11).

Muitos estabelecimentos licenciados actualmente como postos de desnatação realizam apenas a recepção do leite. É natural que futuramente se observe aumento nos estabelecimentos daquela natureza, circunstância que poderá ser interpretada como retrocesso.

Das 14 fábricas de lacticínios existentes apenas 3 fabricam exclusivamente manteiga; as restantes realizam o aproveitamento do leite na variada gama de produtos a que pode dar lugar.

Durante o período a que nos referimos aumentou consideravelmente o fabrico de queijo e produtos dietéticos.

Em 1941 inicia-se o fabrico de leite condensado.

Em 1946 ensaia-se a preparação do Nesmilcafé.

As zonas de abastecimento às fábricas definidas em 1941, são suspensas a partir de 1947 (Portaria n.º 11:750, de 14/3/1947).  / 180 /

Em 1948 entra em actividade o fabrico de leite em pó, pelo método de Krause e procede-se às instalações necessárias à preparação de lactose e ácido láctico, como elementos valorizadores do soro resultante do fabrico de queijo.

Em 1949 inicia-se o fabrico de «Pelargon».

A lactose e ácido láctico começam a produzir-se a partir de 1951 e em 1952 mais duas fábricas estão apetrechadas com a aparelhagem necessária para efectuarem a secagem do leite pelo processo de atomização.

Ultimamente uma empresa deseja iniciar a preparação de albuminas e ensaia-se a secagem de soro para alimentação de animais.

No quadro n.º 5 indicam-se as fábricas existentes, as datas das suas construções ou remodelações e os produtos que estão autorizados a preparar.

Não há dúvida de que da concentração da indústria resultaram benefícios que não podem ser postergados e que representam para o País riqueza apreciável.

Entre os benefícios que a concentração industrial pôde trazer, destacam-se:

1.º − Maiores possibilidades para a instalação e montagem de estabelecimentos fabris, em boas condições de higiene e salubridade, garantindo, ao / 181 / mesmo tempo, uma laboração técnico-económica conveniente;

2.º − Reapetrechamento em condições de permitir um maior rendimento económico;

3.º − Integral aproveitamento do leite, com o aumento do fabrico do queijo e de outros derivados;

4.º − Aperfeiçoamento dos processos tecnológicos por uma gradual melhoria das técnicas de fabrico;

5.º − Mais eficiente controle do leite e melhoria apreciável nas condições de recolha e transporte;

6.º − Conservação e constituição de stocks reguladores do abastecimento público.

Como reflexo da organização indicam-se ainda:

a) Redução considerável do número de estabelecimentos e aumento relativo da laboração diária;

b) Melhor qualidade e maior variedade dos produtos;

c) Garantia na colocação do leite e desaparecimento das frequentes oscilações de preços.

Assim, e em última análise, parece-nos que está fora de qualquer crítica a medida mandada pôr em execução pelo Governo, no sentido de se promover à concentração da matéria prima leite para fins industriais.

De facto, a dispersão de pequenas unidades fabris - postos de desnatação e fábricas de manteiga - jamais podia corresponder às necessidades sempre crescentes da população portuguesa em produtos lácteos e constituía uma aberração dentro do progresso industrial a que nos últimos anos assistimos no nosso País.

No aspecto particular das instalações reiteramos que houve modernização e que atingimos até um grau de aperfeiçoamento muito razoável.

Nos edifícios das novas fábricas estão montados e laboram os maquinismos mais modernos em uso nas indústrias lácteas (Fotos 12 e 12-A).

Estas condições permitem, além duma laboração em boas condições de higiene e salubridade. a prática de processos técnicos mais aperfeiçoados na preparação dos vários produtos.

Ao mesmo tempo, a maioria das fábricas assegura o completo aproveitamento do leite.

Em pouco tempo a indústria de lacticínios sofreu profunda remodelação e pode dizer-se que presentemente rivaliza com a indústria dos países mais progressivos em matéria de indústrias lácteas.

/ 182 / e / 183 /

 

 / 184 /  Não conhecemos no País outra actividade que em tão curto espaço de tempo atingisse o progresso e o grau de aperfeiçoamento registado na indústria de lacticínios.

Apesar de estarmos longe de satisfazer as reais necessidades da população do País em matéria de lacticínios, o distrito de Aveiro contribui largamente com produtos de qualidade para minorar essas deficiências alimentares.

São estes os factos que supomos de maior evidência na linha evolutiva da indústria de lacticínios no distrito de Aveiro.

Oxalá possam servir a alguém que um dia queira fazer a história completa e verdadeira da indústria de lacticínios nesta região.

Aveiro, Janeiro de 1953.

JOSÉ A. CARRILHO RALO

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(1) ESTRABÃO regista que o uso de manteiga na Lusitânia vem desde 60 anos antes de Cristo.

(2) No Boletim da D. Geral da Agricultura − oitavo ano, n.º 1, pág. 23 − refere-se: «o modo de preparo da manteiga foi talvez introduzido pelos árabes, pois que, nos arredores da capital, se usam processos de todo idênticos ao que as actuais populações muçulmanas da Ásia Menor empregam.» 

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