À
PARTE o respeito que devemos ao templo onde fomos baptizados − como ali
o haviam sido já nossos Pais e Avós − e em que repousam, no chão
sagrado, tantas e tantas gerações de gente da nossa terra que lá foram
a enterrar no decorrer dos séculos, a Igreja de Santa Eulália
de Águeda merece-nos ainda um carinhoso e especial interesse pela íntima ligação que tem com o estabelecimento do aglomerado
populacional que à sua sombra se criou e depois, tão notavelmente, se
desenvolveu. Mas, além disso, ela representa também hoje, para nós,
quase que o único centro evocador dum Passado já remoto e que ali atinge
bem eloquente expressão, reflectindo muito do que tivemos outrora, e de
que ainda se mantém parte, como parcela dum património rico de tradições
e práticas religiosas, tão arraigadas e sentidamente vividas
na alma do
nosso povo, que foi sempre sincera e profundamente crente(1).
Devemos ainda salientar que a nossa Igreja constitui um considerável
agrupamento de coisas de arte, espécie de pequenino museu, onde se reúne
o que nos resta dos tempos antigos e que, não sendo muito, é contudo o
bastante para, de forma honrosa, poder representar as várias modalidades
artísticas que caracterizam os diferentes estilos, abrangendo um
período que não deve andar muito longe de cinco séculos. Qualquer dos
motivos apontados recomendaria e justificaria amplamente este estudo: o
concurso de todos, porém, impô-lo à minha consideração logo que comecei
a coligir os elementos com que organizei há anos a monografia de Águeda(2).
À volta da Igreja, na verdade, muitos factos da vida da
nossa gente se passaram, dia a dia: quantos ali não foram,
[Vol. XVII -
N.º 67 - 1951]
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162 /
logo no alvorecer da vida, a tomar o banho litúrgico do
Baptismo, na antiquíssima Pia Baptismal, curioso exemplar arqueológico,
de resaibo gótico, que pode ser admirado no pequeno baptistério? Depois,
mais tarde, outros ali se encaminharam também, a unir-se pelos laços do matrimónio,
enquanto, de todos, uma boa parte lá ficou ainda a dormir
o sono derradeiro... E depois, pela vida fora, quantas
coisas mais por ali se passaram e que a nossa memória
poderá recordar?... Festas alegres, Procissões coloridas
e vistosas, enterros... E assim − bem certo estou disso −
poucos haverá que não encontrem nestas folhas − numa página, numa
linha, numa entrelinha, qualquer coisa que
lhes desperte uma íntima lembrança, uma recordação grata, uma saudade...
Foi preso desta ideia que este trabalho ordenei e escrevi.
*
* *
O estudo da Igreja de Águeda, tendo em vista o papel
que ela representou como elemento proximamente ligado às
origens da povoação, foi já feito há anos, e por mão de
Mestre(3); as notas que apresento agora respeitam principalmente à antiguidade e reformas principais do templo, obras de arte que
encerra, seu aspecto actual, à enumeração dos Párocos e Curas que nela
exerceram a sua autoridade eclesiástica e a dirigiram a partir do século
XVI, e ainda ao direito de Padroado, de que era titular a Casa Ducal de
Aveiro.
Não se sabe desde quando se ergue aí, a coroar o outeiro
em que assenta, e dominando o povoado que foi acolher-se à sua sombra benfazeja, a vetusta igreja de Santa Eulália. Que é de
fundação muito antiga, revela-o, entre outras coisas, o facto de, em
1320, ela concorrer com uma soma considerável de rendimento para ajuda
da guerra contra os Mouros, em que andava então empenhado o nosso rei
D. Dinis; mas já muito antes existia, e o templo deveria ser então de
reduzidas proporções; de uma maneira geral, assim terá permanecido até
fins do século XVI. É dos meados deste século o belo retábulo de pedra
de Ançã, estilo Renascença, que hoje pode ver-se na capela do
Santíssimo, mas
que estaria primeiramente na capela-mor, servindo-lhe de
tribuna. Trata-se de uma peça de grande valor artístico,
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163 /
pois tanto a última Ceia de Cristo, rodeado dos seus doze Apóstolos, que
se vê na parte superior, como o Sacrário, que ocupa a parte central,
ladeado por anjos músicos, que tocam diferentes instrumentos, são
composições de harmoniosas e suaves linhas, devidas à mão de
experimentados e bons lavrantes, e, sem dúvida, do que melhor pode
apontar-se saído da irradiação da escola do Renascimento coimbrão. É um
trabalho congénere de vários retábulos da época, vasados nos moldes
clássicos então adoptados, em que as figuras de anjos, ou somente as
cabeças aladas, destes, envolviam ou acompanhavam lateralmente os
sacrários, que lembram pequeninas torres acasteladas(4).
A igreja não teria, por essa altura, mais que três altares: o altar-mor,
rematado pelo referido retábulo de pedra e os dois colaterais, um
dedicado a N.ª Senhora do Rosário e o outro, a S. Luzia; anteriormente ao
século XVII, não encontrei referência a quaisquer outros santos, nem ao
seu culto ou capelas.
Tomei nota de alguns legados pios feitos com a imposição de se dizerem
missas e de acenderem lâmpadas naqueles
altares, tendo o Prior João Rodrigues, ao tomar posse da igreja no ano
de 1601, tido o cuidado de registar essas obrigações. Já do século XVII,
vi um assento de óbito, referente a Pedro Fernandes, da Póvoa de Rio
Covo, falecido no ano
de 1622, onde também se diz que ele deixou «hũ alq.e de pam
ao S.mo Sacram.to outro a virgẽ do Rosario ou a
St.ª lucia per su
alma».
Da primitiva edificação é
que nada deve existir hoje, e do seu recheio
e ornatos transitaram a bela Pia Baptismal a que já nos referimos, e a
imagem da Padroeira Santa Eulália,
também em pedra de Ançã, de marcado talho gótico, que ainda hoje se vê
no nicho sobre a porta principal. A rematar esta, ficava um alpendre que
já no ano de 1620 lá se encontrava(5), aí se conservando ainda em
1700, pois na visita Pastoral deste ano se lhe faz referência.
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164 /
*
* *
Assim estiveram as coisas por algum tempo, até que
começou a notar-se, em face do progressivo desenvolvimento
da terra, que a igreja era pequena e não correspondia às necessidades
espirituais e categoria da povoação; classifica-se de urgente a obra de
a restaurar, ou fazer de novo, e vemos que a partir de 1669 não cessa o
clamor feito neste sentido pelos visitadores que ali apareciam com
frequência. Na visita Pastoral deste ano, dizia-se que era necessário
restaurar a igreja, pois ela, em parte, não estava em bom estado,
alvitrando-se também que se fizesse igreja nova ou se acrescentasse a
que estava. Em face da documentação consultada, convenço-me de que a
insistência dos visitadores a propósito da remodelação da igreja era
determinada mais pelas suas acanhadas proporções, do que propriamente
pelo seu estado de ruína, que, a meu ver, exageravam; além disso, parece
que a igreja nem uma torre tinha, pois naquele referido ano de 1669
falava-se na sua construção, de onde resulta que, decerto, como se
observa ainda hoje nos templos de reduzida arquitectura, um simples
campanário haveria; e a confirmar isso, há uma disposição expressa no
auto da visita de 1665, em que se manda fazer «uma porta para o sino»,
único decerto, ao tempo. No ano de 1666, também foi ordenado que se
concertassem as lajes do pavimento da igreja e que se fizessem de novo
os degraus das escadas que davam acesso ao altar-mor, que estavam gastos
a tal ponto que era perigoso subir por eles. De tudo isto resulta que em
diferentes épocas se fizeram reformas do templo, e que foram
aproveitando de umas para outras certas partes de construção e materiais
das anteriores. Teremos que retroceder alguns anos para,
depois do que atrás deixamos dito, acompanhar melhor a evolução das
obras de restauro e ampliação da igreja, que decorreram desde o primeiro
terço do século XVII até meados do seguinte.
Parece que, na verdade, a igreja ameaçava ruína (pelo menos em parte), a
partir do século XVII, acentuando-se mais esse estado nos princípios do
imediato; mas, não cremos que se possa entender assim, de forma geral, e
já salientámos que o aspecto ruinoso do templo provinha, em parte, do
aproveitamento do que era velho para novas reconstruções: isto, aliado
ao mau estado dos telhados e do forro, a que
encontramos também algumas alusões desse tempo, deve ter
causado a má impressão reflectida nos autos das visitas Pastorais. Vamos
então ver o que se fez de novo e qual a parte que apenas sofreu
beneficiações, aliás de cuidado arranjo.
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Do que aí vemos hoje, julgo que, em matéria de construção, tudo se deve
aos séculos XVII e XVIII. Assim, pertence ao primeiro terço daquele a
instituição das Capelas particulares de Nossa Senhora da Esperança
(1624)
(6) e do Menino Jesus (1625)
(7); e ainda as do Senhor Jesus
(1628) e de S. Francisco, esta fundada em data que não pude precisar,
mas aproximada destas, e anterior a 1639, ano em que Mateus Fernandes,
falecido a 12 de Outubro deste ano, vinculou vários bens à obrigação de
se dizerem missas no altar desta capela(8). A primeira foi fundada pelo
Cónego Simão Pinto, da Sé de Coimbra, onde faleceu a 12 de Janeiro
de 1628, sendo sepultado nesta capela, que ficou sendo pertença da
família. A segunda, que vulgarmente é designada por Capela de S. João,
foi mandada edificar por Pedro Fernandes Chicre e mulher Brites João,
por instrumento de obrigação de 11 de Abril de 1623
(9).
Com a edificação destas quatro capelas se terá ampliado o corpo da
Igreja fechando com as duas paredes que delas se continuavam até
encontrar a fachada principal, o que deu ao templo um aspecto novo e
maiores proporções no sentido da largura, pois creio que, tanto a capela-mor e o arco cruzeiro,
assim como a fachada e alpendre que a rematava para o lado do Poente,
não sofreram alteração nesta época. Mas chega finalmente o século XVIII,
e pelas visitas Pastorais nós podemos acompanhar com mais precisão o que
se passou quanto às obras levadas a cabo na Igreja, e que foram muito
importantes, como se verá. A autoridade diocesana
tomou o caso a peito e não descansou enquanto o não viu resolvido,
embora tudo isso se arrastasse ainda por bastantes anos. E bem merecedores são de grata lembrança
todos quantos se esforçaram, ou de qualquer forma deram o seu auxílio,
para ultimar tal empresa: por isso aqui trarei os seus nomes, para que,
gravados nestas páginas, deles fique duradoira memória.
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166 /
*
* *
No ano de 1700 vem a Águeda fazer a visita Pastoral,
em nome da autoridade diocesana, e por comissão da mesma, o ilustrado e
virtuoso Prior de Recardães, ao tempo Arce'diago do Vouga − Dr. Diogo
Gomes, muito conhecido pelo
seu zelo religioso, e por ter sido ele o reformador daquela igreja
(10).
O referido visitador estranhou o estado em que se
achava a igreja de Águeda, exteriorizando a sua mágoa por
verificar que ela denunciava certo estado de ruína, ainda que a reputava
insuficiente para uma terra tão importante e populosa. Ouçamos o que a
tal respeito disse:
«He muito para extranhar que sendo este povo tão antigo, nobre e pio,
esteja com uma igreja tão pouco asseada e desproporcionada à grandeza da
terra; e como
seja preciso mandar-se forrar parecia conveniente que assim o R.º Prior
como os Fregueses se unissem e com grande fervor procurassem à
imitação
de outros povos circunvizinhos, menos nobres e poderosos fazer uma
igreja para lustre do povo e honra dos freguezes e sobre tudo para
gloria e zelo de Nosso Senhor»
(11).
Insiste-se na ideia de fazer uma igreja nova, alvitrando-se que fosse pedido o auxílio régio e o concurso do povo,
que faria promessas para esse fim; atendendo também a que
a obra exigia uma soma avultada, foi determinado ainda que se recorresse
ao rendimento das confrarias(12), que dariam
tudo aquilo de que pudessem dispor.
Organizaram-se as coisas de forma que nada faltasse para os trabalhos
preliminares de tão arrojado empreendimento,
comprando-se um cofre para guardar o dinheiro que se ia juntando,
havendo daquele três chaves, das quais uma estava
na mão do Reverendo Prior; a outra na do Juiz da Igreja;
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e a terceira ficaria confiada à guarda do mordomo mais velho da
Confraria do Senhor.
Foi nomeada também uma comissão encarregada de levar a efeito tal
empresa e dela faziam parte pessoas de relevo no meio social da época,
como eram Bento de Figueiredo
Brandão, que, não sendo embora de Águeda, estava aqui
ligado pelo seu casamento, sendo o tronco de uma família
ilustre que bastante se notabilizou(13); e ainda
João Pinto,
o Capitão António de Almeida e o Capitão João André
Homem(14).
Não podemos acompanhar pari passu os trabalhos relativos à construção da
igreja no período que decorre de 1701 a 1716, pois os autos das visitas
não nos elucidam a tal respeito; até 1710, esteve à frente da paróquia o Prior Constantino da Silva Pinto, já de idade avançada, e quer-nos parecer que,
por esse motivo, principalmente, as coisas que com o assunto da igreja
se prendiam, continuaram no mesmo pé.
No auto da visita daquele último ano, novos apelos se fazem,
determinando-se ao mesmo tempo que se falasse a um mestre para traçar a
planta da nova igreja, e mais uma vez se roga ao Prior tome isso a seu
cuidado, pedindo também ao Dr. Manuel do Souto Vidal(15) que interviesse
neste assunto prestando a sua atenção «a negócio tanto do serviço de
Deus».
Eram cada vez mais fortes as exortações dos visitadores, mas as coisas
pouco ou nenhum adiantamento levavam, pelo que foi recomendado ao Juiz
da Igreja que se munisse do traslado do auto da visita que à edificação
da igreja se referia, afim de requerer ao Dr. Provedor da comarca, para
que este por sua vez desse conta ao tribunal do Desembargo do Paço da
necessidade que havia de construir a igreja, para de harmonia se mandar
passar «Carta de finta», recurso este já indicado na visita Pastoral de
1700.
Por aqui se vê que não foram coroadas de êxito as recomendações que o
Prior Diogo Gomes fizera havia já dezasseis anos, e assim ficam as
coisas até o ano de 1719, data em que se não tinha dado princípio a
quaisquer obras. Os autos da visita deste ano revelam-nos agora um
pormenor novo
/
168 /
e curioso: não havia unanimidade de opinião quanto ao assunto em causa,
pois enquanto uns entendiam que a igreja devia ser feita de novo, outros
achavam que não; e ainda que dos autos da visita se deixa transparecer a
ideia de que a demora da resolução do caso deveria filiar-se em menos
zelo da parte dos fregueses, não me parece que fosse essa a causa. Povo
como o nosso, essencialmente religioso, observador de quantas práticas
devotas ficaram na tradição, não se lhe deve imputar a culpa do
sucedido; convenço-me, antes, que presidiu a essas delongas o desejo de
conservar o templo mais ou menos como tinha vindo dos antepassados:
reformá-lo?, melhorá-lo?, sim; mas apear as suas paredes até à raiz,
tirar-lhe o carácter que se tinham habituado a ver-lhe, isso é que não.
Queriam decerto conservar-lhe a traça antiga, tanto mais que não havia
ainda muitos anos que a igreja tinha sofrido uma reforma de certo âmbito
com a fundação das capelas laterais, e seriam até os particulares que as
mandaram construir e as duas Irmandades delas proprietárias os principais partidários da simples
restauração da igreja; a leitura atenta dos documentos deixa-me neste
convencimento. Mas vejamos o que, com tanta clareza, nos expõe o
visitador nesse referido ano de 1719:
«Pelo capítulo da visita passada se ordenou se fizesse uma Igreja de
novo com a direcção nele declarada, mas agora me consta que houve alguns
desentendimentos, por alguns fregueses quererem se não fizesse de novo a
dita Igreja e por isso andavam com informações para impedirem se não
fizesse no que tem mostrado pouco zelo no serviço de Deus.
E sendo esta freguezia tão populosa e pode concorrer para se reedificar
de novo com a ajuda do dinheiro que há
de créscimo nas Confrarias e tributo que Sua Majestade que Deus guarde
foi servido conceder, portanto ordeno que o R.º Parocho comas Eleitos e
Juiz da Igreja escolhão dois homens de cada lugar desta freguezia para
que façam rol pelas portas de todos os freguezes pelo que cada um pode e
deve dar para que com esse dinheiro junto com o das Confrarias e tributo
se dê principio a fazer a dita Igreja a fundamentis visto estar tão
arruinada e miseravel que já não admite concerto.»
Mandava-se que a obra fosse feita dentro de quatro meses, fazendo-se
também a devida planta para ser posta a pregão a obra, e para se dar por
meio de arrematação a Mestre que desse boa conta de tal serviço;
determinava-se ainda que se fosse dando conta do que ia ocorrendo ao Dr.
Provedor da comarca e o Pároco, por sua vez, mandaria arrecadar todo o
dinheiro das Confrarias e os respectivos
juros, e com o tributo concedido e o produto do rol feito pelas portas
dos moradores, levando também em conta algumas
/
169 / promessas, tudo isto somado, daria a
quantia suficiente para
reedificar a Igreja, segundo o juízo dos visitadores. Mas não me parece
que, apesar de tão detalhadas e, sem dúvida, criteriosas sugestões, se
desse inteiro cumprimento ao que há muito vinham projectando aqueles
emissários do Prelado de Coimbra.
Posta a questão nestes termos, com tantas e tão minuciosas instruções,
com dinheiro arrecadado, comissões nomeadas, etc., etc., parece que só
restava lançar mão das picaretas, destruir a igreja velha e plantar
outra, nova, em folha, no seu lugar. Mas o povo tem também os seus
caprichos; e quando se convence que tem a razão do seu lado, nada há que
lhe faça abalar os seus propósitos: foi o que, a meu ver, se deu. E o
que se fez então?...
Depois do ano de 1719, em que se tomaram as providências atrás
mencionadas, a primeira visita Pastoral teve aí lugar em 1721;
procurámos ler os autos dela com atenção, na esperança de ver já as
obras da Igreja, se não concluídas, ao menos em bom andamento, sendo com
certa surpresa que encontrámos as coisas no mesmo estado de há anos.
Deparámos antes com novas queixas, assim expressas:
«He para sentir o miserável estado em que esta Igreja se acha e seja tão pouco o zêlo dos moradores desta vila, que não procurem a factura de uma nova, como se tem mandado,
nem se animem com o exemplo de tantos templos visinhos
como ha neste Arcediagado em freguesias mais pobres, mas
com mais amor no culto divino. Recomendo ao Juiz da Igreja e Eleitos
dêem principio a esta obra cobrando o que se tem para ella aplicado e
recorrendo por mais.»
Apelava-se ainda para os lavradores para que dessem «seus dias de carro»
e para os trabalhadores a fim de concorrerem também para os serviços dos
materiais.
Mas ainda desta vez as coisas não andaram; e, esgotados os meios
suasórios, dos pedidos e apelos, feitos por tão diversa forma, os
visitadores enveredaram por outro caminho: entrou-se agora no campo da
imposição, advertindo-se o Juiz da Igreja e as pessoas nomeadas para
tratarem das obras, de que, no caso de na visita próxima não se ter dado
início aos trabalhos há tanto ordenados, cada um deles seria condenado
em dez mil reis de multa!... Assim se mostra que tinham sido baldados
todos os esforços dos anteriores visitadores, feitos no sentido de se
dar princípio à igreja nova.
E igualmente se vê que se mantém a ideia de que todas estas delongas
tinham como origem o pouco zelo dos moradores
da terra, juízo que, a meu ver, não deve ser tomado rigorosamente.
Dos eleitos faziam parte pessoas da maior consideração, bem conhecidas
no meio, como eram Bento de Figueiredo
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170 /
Brandão, o Capitão António de Almeida, o Capitão João André Homem, tudo
gente de crenças religiosas, que decerto não descurariam assim tal
assunto.
Devia haver um motivo forte para explicar esta resistência por parte da gente de
Águeda, não dando andamento às obras da
Igreja, em manifesta oposição a tantas e repetidas ordens, e sugestões
tão diversas, feitas no mesmo sentido. Quanto a mim, só vejo uma
explicação razoável para o facto: os desentendimentos que surgiram a
respeito de fazer a obra desde os alicerces, ou de sujeitar o edifício a
uma reparação,
embora minuciosa e cuidada: deve estar aqui a razão deste estado de
coisas que há tanto tempo se arrastava e, justamente, começou a fazer
perder a serenidade de ânimo dos ilustres visitadores
(16).
Do ano de 1721 é também uma Memória
Paroquial da freguesia de Águeda,
escrita pelo Prior LUÍS DIAS CORREIA
(17), na qual se faz referência às
capelas particulares, sepulturas que havia na igreja com letreiros,
etc., mas não se refere às obras de restauro, nem a descreve com
particularidade, o que depois é suprido com a narrativa do Dicionário Geográfico, como mais adiante se verá.
Eis-nos agora no ano de 1726. Nova visita é feita à nossa Igreja.
Lêem-se os respectivos autos, e vemos tudo na mesma! Repetem-se as
queixas, que desta vez nada mais
quis fazer o visitador; assim nos diz o auto respectivo:
«Vejo e é muito para sentir que ha tantos annos vindo os R.os Visitadores
a visitar esta Igreja e vendo o miseravel estado em que se acha, tendo
todos eles ordenado por capitulos de visita a que se desse principio à redificação ou factura de nova igreja, obrigando com condenações e
censuras, não se satisfez até ao presente a obra nem se cotaram as
condenações; uma e outra coisa movidas do pouco zeIo do R.do Parocho e
seus freguezes.»
Fosse como fosse, ou por que fosse, o que é certo é
que as coisas continuavam na mesma, arrastando-se anos e anos este
assunto da igreja; não me convenço entretanto
/
171 /
de que isso se ficasse devendo ao pouco zelo do Pároco, nem à
indiferença do povo pelas coisas religiosas, pois além de haver várias
Confrarias e Irmandades em que ele se agrupava para melhor dar expansão
ao culto divino, em muitos outros casos se demonstravam os seus
sentimentos de religiosidade, como já ficou dito.
Alcançamos assim o ano de 1730.
A 17 de Junho, aí está outra vez o visitador, e nada se
tinha feito ainda, apesar de mais quatro anos serem decorridos!...
Agora, devemos confessar que é com justo motivo o que ele diz, ainda que
em tom moderado, e invocando a protecção divina, ao povo de Águeda, a quem exorta no sentido
de se dar realização a tal empreendimento, ao mesmo tempo
que afirmava haver já dinheiro bastante para esta obra:
«Grande mágua me causou ver o estado em q. se acha a Igreja desta
freguesia q. sem duvida se houvesse Capella decente para onde se puzesse
o Santo e os Santos q. nella se acham o mandaria assim; porem como me
enformam ha já dinheiro bastante p.ª se reidificar m.to recomendo ao
povo deste Lugar q. em havendo officiais façam logo m.to por lhe dar
principio.»
(18)
Vê-se assim que o visitador deste ano foi mais comedido nas suas apreciações, usando de melhor táctica: em vez de ameaça de
multas e penas espirituais − o que já havia sido posto em prática, aliás
sem resultado que se visse, o critério foi outro, e dele resultou
decisivo efeito, pois aquando da visita posterior, que teve lugar no ano
de 1736, em vez das queixas, e lamentações, censuras, etc., os autos
revelam-nos que as obras estão em bom andamento, e expressamente se
louva a acção do Prior, que pôs todo o zelo e cuidado em as adiantar.
Ali se vêem estas palavras:
«He urgente a necessidade q. ha de esta
Ig.ª se pôr corrente p.ª se transferir p.ª ella o Santissimo e se selebrarem nella os Officios devinos
por assim o pedir a necessidade desta freg.ª e assim espero q. o R.do
Prior, com aquelle zêlo com que tem cuidado em adiantar a mesma obra a
faça completar com a possivel brevidade, e do Juiz da Igr.ª pella parte
que lhe toca pellos meios condusentes.»
Novo rumo tomaram agora as coisas, como se vê. Os trabalhos
das obras da Igreja começaram então entre 1730-1736,
/ 172 /
achando-se em pleno desenvolvimento em 1738, como se mostra desta parte
do auto da visita desse ano, que transcrevo:
«Louvo m.to ao R.do P.e o
Cuid.º com q. se tem portado no adiantamento da
Igr.ª espero q. continue com bom zêlo p.ª chegar a ter a perfeição que he devida a tam S.to Lugar.»
As obras foram prosseguindo; e se não correram com
a celeridade desejada, pois ainda em 1741 não estavam acabadas, iam
contudo em bom caminho; e o visitador, sem dar quaisquer ordens ou fazer
qualquer recomendação ou censura a este respeito, limitou-se neste ano a
exteriorizar o desejo de que se desse fim à obra «p.ª Gloria da Divina Magestade q. nos templos se adora e em elles deseja a suma perfeição e
pureza».
Além disso informa o auto que a tribuna e os altares colaterais estavam
já arrematados.
*
* *
Mas surge agora a pergunta:
em que consistiam então as obras que
acabámos de surpreender já tão adiantadas? Demoliu-se totalmente o que
estava, e andavam a fazer construção nova, de raiz? Fortaleceriam as
paredes velhas, ou fariam mesmo outras novas, mas apenas para o lado do
Poente, na direcção dos arcos das capelas laterais construídas no
primeiro terço do século XVII?
Os documentos não nos permitem destrinçar com precisão o que se fez.
É
tudo concorde no sentido de informar que a igreja não estava à altura de
povo tão «nobre e rico», e de terra tão importante, centro de uma
freguesia populosa, e nada mais; mas entendo, em face de tudo que
encontrei a este respeito, e do exame feito à actual Igreja, que não
será erro supor que apenas se fez neste tempo uma reforma geral do
edifício, mas cuidada e criteriosa. Substituiu-se a capela-mor, que se
achava em completa ruína, por uma mais ampla, e o mesmo se fez ao arco
cruzeiro e altares colaterais,
revestindo-se uma e outros da bela talha doirada que ainda hoje
ostentam; o alpendre que estava à porta principal, foi apeado, e as duas
paredes da igreja avançaram mais alguns
metros até ao Adro, sendo também alteadas, e sobre elas se assentou
forro novo, repartido em caixotões emoldurados em madeira de castanho,
possivelmente com pinturas posteriormente desaparecidas, colocando-se
na linha central do tecto, e a todo o comprimento, de espaço a espaço,
uma fila de rosáceas
/
173 / entalhadas, de onde se suspendem os lustres, obra que ainda hoje pode admirar-se, e que recentemente foi reposta
no seu antigo aspecto.
As obras da igreja continuavam ainda em 1741, e o Visitador achava-as
nessa altura com «bons acrescentamentos»,
sendo-lhe informado que a tribuna e os altares colaterais já haviam sido
arrematados, o que nos leva a concluir que os trabalhos de restauro
tinham entrado na última fase; e assim foi de facto. Até 1749, não vimos
que se realizassem Visitas Pastorais, mas a suprir a falta e até talvez
vantajosamente,
sob certos aspectos, temos o Dicionário Geográfico, que foi impresso
em 1747
(19), e nos descreve com detalhe a igreja de
Águeda, mencionando
pormenores que nos permitem um conhecimento muito ajustado do templo;
melhorou muito o seu aspecto geral com as beneficiações recebidas:
rasgaram-se
novas e maiores janelas; ampliou-se o arco cruzeiro, que se
revestiu de boa talha doirada, com delicados motivos de estilo joanino,
rematando por um aparatoso escudo das armas reais portuguesas, entre
figuras de anjos e grinaldas de flores, num conjunto sóbrio, a que não
falta certa nota da imponência
característica da época; ajustaram-se-lhe também os dois altares
colaterais, que são do mesmo estilo. Diz o citado Dicionário Geográfico:
«Ocupa a Igreja o logar mais iminente da terra: a sua invocação he de
Santa Eulalia e a apresentação pertence á Casa de Aveiro e não ha
noticia do tempo da sua fundação: he de tres naves; na parte do Norte
tem tres Altares: o do Santissimo Sacramento, fechado com duas grade,
de ferro, obra antiga e de notavel artefacto: tem um retabolo de pedra
com as Imagens dos dôze Apostolos, vulto, sentados á meza e orna-se com
dous alampadários de prata
(20): na mesma nave se segue a Capella que he
propria da freguesia, da invocação do Santissimo Nome de Jesus; tem o
altar huma veneranda Imagem de hum Santo Christo e debaixo dele um Passo
do Senhor Morto
(21) com os Prophetas Moysés e Elias, as três Marias, S.
João Evangelista e N. Senhora, obra antiga e admiravel; segue-se na
mesma nave o altar de S. Francisco e capella dos Terceiros com huma
Imagem do mesmo Santo Patriarcha e de uma parte Santa Rosa
/ 174 / de Viterbo e da outra o Apostolo e Evangelista S. Matheus. Na outra
nave, para a banda do Sul, fica a Capella de N. Senhora da Esperança,
fundada no ano de 1624 com missa quotidiana por Ayres de Pinho e sua
mulher e he hoje administrador dela Constantino da Silva Pinto, seu
parente; Na mesma nave se segue logo a Capella do Menino Jesus, fundada por Antonio João da Serra e sua
mulher Francisca da Fonseca, he seu administrador João Alvares de
Figueiredo Brandão; tem obrigação de cento e cincoenta missas e hum
aniversario e meio. Para a
parte do Nascente fica o Altar-mór, com a Imagem da
Padroeira Santa Eulália; outra de S. Pedro Martyr; tinha ainda as
imagens de S. Francisco Xavier, Santo Antonio e Santa Apolónia»
(22).
Diz ainda o mesmo Dicionário:
«Da parte do Norte fica o altar colateral dedicado a N. Senhora do
Rosário e da parte Sul o de Santa Luzia com a imagem da Santa e Santa
Águeda, Santa Catarina, S. Braz e S. Ana.»
Não se apontam aqui nem a Capela do Senhor dos
Passos, nem a das Almas, sinal evidente de que elas não existiam nessa
data, pois o autor da memória, que descreveu
o templo nos seus mais pequenos detalhes, chegando a referir pormenores relativos a certos motivos de ornamentação,
não se esqueceria de mencionar as capelas referidas,
se lá
estivessem ao tempo. Mas outra Memória Paroquial, datada
de 5 de Abril de 1758
(23), ao fazer a descrição da nossa igreja já lhe
inclui estas duas capelas, por onde temos de concluir
que as mesmas foram edificadas entre os anos de 1747-1758.
E neste pé ficaram as coisas, até os anos de 1898-1900,
em que a igreja sofreu uma grande reforma, tanto exterior,
como interiormente, feita a expensas do benemérito Conde de Sucena,
nosso saudoso conterrâneo
(24).
/ 175 /
O seu aspecto actual, aparte um ou outro pormenor de ornamentação ou de
restauro, é o mesmo que apresentava após a reforma do século XVIII, a
que já nos referimos.
Vamos transcrever aqui umas pequenas passagens, extraídas duma obra
publicada há poucos anos, onde, pela pena de um erudito e distinto
escritor, vem feita a descrição da igreja de Águeda, que algumas vezes
visitou, sendo assim o seu
depoimento duplamente valioso, pelos conhecimentos que possuía em tal
matéria, e pelo exame que directamente fez ao templo:
«O aspecto geral é o de um monumento do tempo de D. João
V.
Houve por essa época reedificação, com acrescentamento visivelmente
denunciado por uma pequena torre colada à parede E. da torre (do sec. XVIII) e que era com
certeza dum templo anterior.
/
176 /
A igreja tem pirâmides, cunhais e uma pesada frontaria de granito ao
lado S. da qual se ergue a torre. É formada de três naves com capelas
laterais de abóbadas, suportadas cada uma pelo cruzamento de dois arcos
ogivais de pedra, assentes em colunas e capiteis, também de granito, em
cujos vértices se vêem bocetes com lavrados. Interiormente sofreu o
templo reforma nos últimos anos do século passado (1898-1900), reforma
que, embora em parte necessária e feita na melhor intenção, se ressente
duma absoluta falta de competência e bom gosto. Fizeram-se barbaridades
irremediáveis. Cobriram-se com estuque os caixotões de castanho do
tecto; trocou-se o ouro velho da talha, discreta e preciosamente
patinado pelos anos, por tinta branca e ouro novo, berrantes,
espectaculosos, próprios de teatro ou café concerto; umas grades
pesadas, de ferro, bem interessantes, que separavam as capelas laterais
da nave, desapareceram; e até lajeados cobertos de inscrições e
armoriados foram substituídos por mosaico. A igreja conserva porém,
ainda, duas capelas laterais do séc. XVII. São ambas particulares: uma,
com a invocação de Nossa Senhora da Esperança, pertence à casa da
Borralha; a outra, da invocação do menino Jesus, foi instituída por
Pedro Fernandes Chucre e sua mulher Beatriz João, de Águeda e pertence à
Casa das Lágrimas (Coimbra). As restantes capelas, embora não haja
documentos que o atestem, parecem da mesma época.
Pode admirar-se o arco cruzeiro e a tribuna, com
alguma talha de merecimento, do meado do sec. XVIII, e duas obras de
pedra de Ançã, de valor artístico: um retábulo na capela do Sacramento
com o sacrário em forma de castelinho com suas amuradas na parte
central;
aos lados, figuras de anjos esculpidas na pedra, e na parte superior um
alto relevo que representa a Ceia de Cristo. Esta obra afigura-se
inspirada nos moldes da escola do Renascimento coimbrão, atentos alguns
pontos de semelhança entre este retábulo e a capela do Sacramento da Sé
Velha de Coimbra. A outra obra de pedra de Ançã existente na igreja de
Águeda e digna de referência é um grupo da Deposição de Cristo no
túmulo: a imagem da Virgem e algumas das dos Apóstolos têm bordaduras
a
guarnecer as roupagens, bem delineadas)
(25).
/ 177 /
[Vol. XVIl -
N.º 67 - 1951]
*
* *
Mas deixamos dito atrás que a igreja de Águeda
− pelo
núcleo de objectos de arte que ainda hoje contém, representativos de
diferentes modalidades dos períodos artísticos que a idade da sua
construção abrange − poderia considerar-se um pequeno museu da nossa
terra; e assim é, de facto. Digamos
então agora alguma coisa, em abono do que já por mais de uma vez tivemos
ocasião de afirmar.
Além do belo especímen que constitui a PIA BAPTISMAL,
indubitavelmente filiada no ciclo gótico, talvez misto de outras
influências, ali poderemos admirar o formoso retábulo de pedra de Ançã
da Capela do S.S. Sacramento − que bem merece um estudo atento e
demorado, por parte dos arqueólogos especializados nesta matéria.
Pertence à Escola da Renascença coimbrã e deve considerar-se do melhor
que saiu da mão dos seus experimentados e hábeis lavrantes, pela
suavidade das suas linhas, delicadeza e perfeição dos ornatos e figuras
de que se compõe; representa a ÚLTIMA CEIA, vendo-se a figura de
Cristo, sentado à mesa, rodeado dos Apóstolos
(26).
Além deste trabalho, existe o belo grupo escultórico da DEPOSIÇÃO NO
TÚMULO, composição muito expressiva e valiosa, de traça muito correcta,
também da mesma escola, e lavrada no mesmo calcário. A isto devemos
juntar os baixos relevos dos arcos das capelas laterais, e ainda um
pequeno capitel do Cruzeiro do Calvário, que se acha no Adro da igreja.
E é tudo que podemos agrupar, pelo que toca a trabalhos em pedra, pois
que, adentro ainda do âmbito renascentista, está o retábulo da Capela
dos Terceiros de S. Francisco, com os seus motivos decorativos e que,
não sendo dos mais ricos, são de muito agradável vista na combinação dos variados baixos-relevos, vasados nos moldes da época.
Mas é o século XVIII, como da leitura do que ficou atrás escrito bem se
depreende, o que ali tem mais dilatada representação artística: nos
retábulos dos altares colaterais, no
/
178 /
revestimento de talha doirada que a partir do cimo deles as paredes do
arco cruzeiro ostentam até se rematar pelo
elegante escudo das armas reais portuguesas, a que já nos
referimos; nas colunas e mais ornamentação entalhada da capela-mor, e
ainda nas imagens de bom recorte setecentista, das quais devemos salientar as da Padroeira Santa Eulália, S. Pedro, N.ª Senhora do Rosário e St.ª Luzia, estas duas,
principalmente, de cuidado acabamento, num conjunto feliz. que dá ao
templo uma nota de certa imponência, a lembrar
ainda os últimos e faiscantes lampejos do reinado do rei magnânimo.
PÁROCOS DE ÁGUEDA
1575-1951
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