Aires Amorim, Questões entre Esmoriz e Cortegaça por causa dos marcos que as separam, Vol. XVI, pp. 241-246.

NOTAS SOBRE ESMORIZ

QUESTÕES ENTRE ESMORIZ

E CORTEGAÇA, POR CAUSA

DOS MARCOS QUE SEPARAM

AS DUAS FREGUESIAS

No decorrer dos tempos, têm surgido dúvidas e pleitos, por causa das demarcações entre Esmoriz e as freguesias vizinhas.

Esmoriz confina pelo norte com Paramos, pelo sul com Cortegaça, e pelo nascente com Riomeão.

Quero, hoje, referir-me, apenas, às contendas havidas entre Esmoriz e Cortegaça.

Os marcos da praia serão o maior pomo da discórdia, já porque as delimitações entre as freguesias, em questão, não correm sempre em linha recta, já porque o marco da praia era subterrado, de quando em vez, pelas dunas, ou até derrubado, e os pescadores, de boa ou má fé, não dizimavam do pescado na igreja, em cuja praia tiravam as redes, levando, com isso, o pároco lesado a defender os seus direitos.

Quando surgiria o primeiro conflito? Difícil será dizê-lo. Já aí por 1617, ou até uns anos atrás(1), se tinham levantado dúvidas entre os Abades Baltazar Jorge, de Esmoriz, e Manuel Álvares, de Cortegaça, mas tudo foi derimido pelos louvados.

Novo conflito se esboçou, por cerca de 1633, «sobre o dizimo de hũ copioso lanço de robalos». Procedeu-se, porém, a uma louvação e, de comum acordo, o Pároco de Esmoriz, [VoI. XVI - N.º 64 - 1950] / 242 / João de Pinho, e o de Cortegaça, o Licenciado Pantaleão da Costa e (ou de) Vasconcelos, mandaram pôr um marco no areal.

Sucedeu, porém, que este marco «se tirou ou o gastou o tempo», ou, como é também de presumir, o cobriram as dunas. Sentindo-se lesado nos dízimos do pescado, o Abade de Esmoriz, João de Pinho, apresentou em 1657 no Auditório do Vigário Geral, o Cónego Dr. João Rodrigues de Araújo, um libelo contra o de Cortegaça, Miguel Rodrigues. Em 11 de Janeiro de 1663 o Vigário Geral mandou proceder a uma vistoria, efectuada na sua presença, em 21 de Outubro do ano seguinte. Todos de acordo até ao marco das gandras do rio de Carriçal. Avançando até ao outeiro da Cantareira, que dividia as duas freguesias, não chegaram a entender-se os dois Abades na demarcação daí para o mar. Sustentava o de Esmoriz «que havia de correr algum tanto ao Sul, e o R. Ab.e de Corteg.ª ao Norte». É que, segundo o Abade João de Pinho, «vai a demarcação das ditas Igrejas [de Esmoriz e de Cortegaça], sempre carregando a parte do Sul, como são as mais demarcaçoens da praia do mar das Igrejas circumvisinhas do Norte para o Sul».

Vendo que as partes interessadas não chegavam a uma solução, nomeou o Vigário Geral dois louvados de cada freguesia pleiteante, para derimir a contenda, concordando estes em que «a devizão das dittas Freg.as pella p.te do mar era na Estremeira que estava junto ao mar em alto da Areia que de presente está entre os outr.os (2) dos faxos de Cortegaça e Esmoriz, e ahi em presença de todos meterão hũa pedra lousa, que ficava servindo de marco p.ª comforme a elle direito ao mar se pagarem os disimos da p.te do Sul a Freg.ª de Corteg.ª e do Norte a de Esmoriz; e que dahi p.ª terra lhe (3) paresia q hia rodiando, e emdireitando aos maismarcos passando por este lugar (4) donde se fes este termo e que esta lhe (3) paresia a verdadr.ª demarcação, que podião fazer, e assim o entendião em suas consiençias, e juram.to q recebido tinhão»

Os Párocos aceitaram a demarcação que foi julgada por sentença, proferida pelo Vigário Geral em 6 de Novembro de 1664.(5)

Meio século após esta sentença, surgiu novo conflito de / 240 / direitos. É agora a vez do Pároco de Cortegaça se queixar do de Esmoriz. Eis a questão: como o marco da praia desaparecesse sob as dunas e os pescadores, por vezes, fossem entregar ao Abade de Esmoriz o dízimo do pescado que pertencia ao de Cortegaça, intentou este, o P.e Alexandre Gomes Ferreira, uma acção no Tribunal Eclesiástico, em 1722, contra o P.e António Nunes de Aguiar. É, precisamente, a repetição do pleito julgado em 1664. O Abade de Esmoriz, contestando o libelo, dizia que se devia pôr, à custa de ambas as partes, um marco entre os outeiros dos fachos de Cortegaça e Esmoriz, por ser o lugar onde estava o antigo, «sempre carregando a parte do Sul como hião as mais demarcaçois da Praya do Mar das Igreias circumvezinhas». E o mais que dizia o Autor quanto aos marcos de terra, não vinha à questão, por existirem e não ser preciso louvação.

Faleceu o P.e António Nunes de Aguiar, sem ver a questão terminada, sucedendo-lhe na paroquialidade D. Bento da Assunção Pimenta, que requereu comissão para que o Abade de Silvalde, o P.e Tomás Pinto Machado de Magalhães, desse juramento aos louvados para procederem à demarcação. Autorizado pelo despacho: «Como pede não havendo duuida algũa das partes», procedeu-se, em 28 de Setembro de 1724, à demarcação, pondo os louvados «hum Marco de pedra de lousa aonde lhes pareceo estaria pouco mais ou menos o marco antigo e declararão que o dito Marco emdireitaua ao Mar pella parte do Sul e por ahi julgauam deuia ser a dita deuizam da praya de ambas as freguezias».

O Dr. Manuel Barbosa que servia de Vigário Geral, pronunciou, em 24 de Janeiro de 1725, a sentença: «Julgo o termo por sentença Cumprasse como nelle se contem; e paguem os autos», a qual, no dia seguinte, foi proferida em audiência pública, pondo fim à contenda (6).

Novo conflito, agora já não por causa do marco da Praia, mas pelo lugar do Monte, que extrema as duas freguesias. Aconteceu que o tanoeiro José Fernandes de Oliveira construiu uma casa no dito lugar do Monte, em terreno que dizimava à igreja de Cortegaça. Levantaram-se dúvidas sobre a freguesia a que pertenceria a nova casa; então, para evitar demandas, os dois Abades, de comum acordo, D. Bento da Assunção Pimenta, de Esmoriz, e João Gomes Moreira, de Cortegaça, requereram ao Vigário Geral, o Dr. João Ramos, / 244 / que mandasse proceder a uma vistoria e julgasse a questão por sentença.

No dia 9 de Outubro de 1747, o Vigário Geral e o escrivão Luís da Silva Guimarães, juntamente com dois louvados e as partes, apareceram no local para proceder a uma vistoria. Estudado o caso pelos louvados, «se achou que a devizão destas freguezias de Cortegaça e esmoris neste sitio se indireitava do marco do monte ao do Fajó».

Verificou-se, então, que o Abade de Cortegaça dizimava de três cortinhas que tinham alguma terra já dentro dos limites de Esmoriz; que tinha como da sua freguesia duas casas que, de facto, não lhe pertenciam; que José Fernandes de Oliveira dizimava, indevidamente, em Cortegaça, e que a nova casa, em questão, estava toda construída em terreno de Esmoriz.

Em audiência pública de 6 de Novembro do dito ano de 1747, julgou o Vigário Geral, por sentença, que a prescrição e o dizimar em Cortegaça não eram razões bastantes, como invocava este Pároco, para considerar da sua igreja tais terrenos e casas, mas que pertenciam a Esmoriz (7).

E assim terminou mais uma questão. Não viveram, porém, as duas freguesias muito tempo em paz. Novo litígio se moveu em 1787 entre o Cónego Regular D. Ildefonso da Madre de Deus Carneiro e (ou de) Sá, Abade de Cortegaça, e o Dr. André António Pinto da Cunha, Abade de Esmoriz. Sustentava aquele que, segundo o Tombo da Comenda de Riomeão, feito em 1630 (8) «se posera hum marco na mamoa do Caminho de Cortegaça, dizendose expresamente no Tombo, que neste marco acaba a Demarcação, que a Comenda tem com Cortegaça», e que «citado o Abade de Esmoris se posera o marco junto a estrada de Ovar, alem da Mamoa do Caminho de Cortegaça, aonde principia a demarcação, que a Comenda tem com Esmoris».

Para apoiar a sua pretensão, aduzia a sentença de 1664, a que acima nos referimos, e segundo a qual «a comua partilha, e antiga q de tempo antigo se dizia por onde partião entre si as freguezias era no monte, e alto dele, que estava junto do lugar de Cardielos: e no alto do dito Monte estava hum Marco da Comenda de Riomeão».

Este marco, segundo o seu pensamento, é o que falta na Mamoa do caminho de Cortegaça que identifica com a chamada, então, Mamoa de Cima, um pouco ao sul do marco de / 245 / Lagoelas, e requer que seja reposto nesse lugar, apendoando-se, depois, até à praia (9).

Desta sorte, tocar-lhe-ia, como pretendia, uma gandra ou «monte inculto, e despovoado», entre os marcos de Lagoelas e de Cardielos.

O requerimento, porém, de D. Ildefonso labora em contradição, pois diz que as duas freguesias se dividem por meio da dita gandra e acrescenta, em seguida, que Esmoriz começa do marco de Lagoelas para o norte... Não reparava que a freguesia de «Cortegaça está dividida de todos os lados com huns vaIados, q tem mais de 80 añ. a que chamão Partilhas do Coutto [...]» e que «dentro daquelles vallados a q chamão as partilhas (10) do Coutto, sempre de tres, em tres añ reparthião os matos, e touregas, por ordem da just.ª do mesmo Coutto», sem nunca avançar para o norte do marco de Cardielos (11). Demais, os baldios de Esmoriz não estavam tapados.

Acresce, ainda, que «costuma a just.ª daquelle Coutto e Freg.ª fazer correição, e examinar se estão os dittos vallos tapados, e nunqua andou o juiz, e seus companr.os por fora dos dittos marcos, que estão juntos aos vallos, tanto da p.te de Maceda, como de Esmoriz». Por outro lado, aí por 1783, «os moradores, e Freg.ª [de Esmoriz] com o juiz» venderam um pedaço da gandra em questão... e nem o Abade, nem a Justiça do Couto de Cortegaça os inquietaram. Só em 1787 ou 1788 é que o Abade se lembrou de que a gandra era da sua freguesia... A vistoria, por ele requerida, efectuou-se em 24 (12) de Fevereiro de 1791, sendo presentes o Dr. Fernando José Marques Soares, Juiz do Tombo da Comenda de Riomeão, com cinco louvados de Esmoriz, Cortegaça e Riomeão. Foi continuada e terminada apenas em 9 de Maio com os louvados Alferes Domingos Fernandes Valente da Beira e Manuel Guedes Barbosa, senão considerado o marco da Mamoa do caminho de Cortegaça, isto é, o marco do Monte ou marco de Cardielos, como termo divisório das duas freguesias em litígio (13).

A última página sobre a demarcação de Esmoriz e Cortegaça foi escrita pelas Juntas de Paróquia de ambas as freguesias / 246 / em 26 de Dezembro de 1910. «Resolveram terminar a questão por mutuo accordo ficando os limites de futuro a serem constituidos por linhas rectas comprehendidas entre o marco de Cardiellos e da Camboa, Camboa e Feijô, Feijô e Gandra, do Rio do Carriçal, Rio do Carriçal e Rua Marques Reis, seguindo depois até ao mar por meio della abaixo» (14).

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Disse que em 26 de Dezembro de 1910 se tinha escrito a última página sobre a demarcação das duas freguesias. É caso para perguntar se, de facto, será a última... Numa coisa, parece, se podem orgulhar os dois povos: é que, não obstante tantas rivalidades, discórdias e pleitos, sempre se portaram irmãmente, sem haver efusão de sangue.

E aos Párocos, defendendo o território do seu benefício com direitos e obrigações, a cuja testa foram colocados pelos Prelados, que devemos a delimitação das duas freguesias. Se não pugnassem pelos seus direitos, levando até por vezes, como acima se mostrou, o caso ao Tribunal Eclesiástico, não teríamos hoje resolvido este importante problema.

Foi lutando pelos direitos da sua igreja, que a legislação civil então respeitava, que o Abade de Esmoriz D. Bento da Assunção Pimenta pôde entrar na acção judicial, ao lado dos seus fregueses, contra o déspota Morgado de Paramos, Aires Pinto Henriques Freire de Albuquerque. Doutro modo, talvez nunca eles cantassem vitória.

Nem se pense que o problema da delimitação do território surgiu apenas para Esmoriz e Cortegaça; também outras freguesias, algumas até vizinhas, viram-se a braços com ele, p. ex.: Paramos, Riomeão, Arada, Ovar (15).

Dez.º de 1950.

P.e AIRES AMORIM

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(1) Referindo-se à data do primeiro conflito de que havia memória, dizia em 1657 o Abade João de Pinho no libelo contra o de Cortegaça: «haverá quarenta para cincoenta annos».

(2) Outeiros. 

(3) Aliás, lhes.

(4) O lugar deve ser o «Pinhal junto ao outr.º da Cantareira». 

(5) Cfr. a «Copia do libelo que no anno de 1657 deo o R. João de Pinho Abade de Esmoris, Contra o R. Miguel Roiz Abade de Cortegaca sobre a Divisão e Demarcação destas duas Freguezias [...]» − Cartório Paroquial de Esmoriz.  

(6) Cfr. «Snn.ca Ciuel de louuação e demarcação do R.do B.to de Assumpção Pimenta Abb.e da frg.ª de Esmoriz com o Rd.º Alex.e Gomes Ferr.ª Abb.e da frg.ª de Cortegaça tudo da Com.ca da Fr.ª deste Bisp.do». Arq. Paroquial de Esmoriz.

(7) Cf. a «Snn.ca Ciuel de Transação e amigauel compozição a favor do Rd.º D. Bento de Assumpcão Pimenta Abb.e da freg.ª de S.ta Maria de Esmoris da Com.ca da feira deste Bispado p.ª seu ttº &ª». − Arq. Paroq. de Esmoriz.

(8) O marco de Lagoelas tem a data de 1929. 

(9) Diz, mais, que entre as duas freguesias faltam alguns marcos. Por seu lado, o Pároco de Esmoriz, afirma que na praia apareceram três marcos.  

(10) O sublinhado não é meu.

(11) Cortegaça fez partilhas, por várias vezes. Assim, em 1708, e em 1787 de três montes baldios. Cfr. os documentos.

(12) Um pouco depois, aponta-se o dia 28, talvez erradamente.

(13) Cfr. uma pasta de documentos intitulada «1791 − O Abbade de Cortegaça requer ao Snr Juis do Tombo da Commenda de Riomeao [...]:» − Arq. Paroq. de Esmoriz. .

(14)Esta nota do Abade António André de Lima encontra-se na pasta de documentos por ele intitulada «Doc. n. 1 − 1.ª Sentença − Questão principiada em 1657 e terminada em 1664» − Arq. Paroq. de Esmoriz.

(15)Arq. Distrital do Porto, Inventário do Cartório do Cabido da Sé do Porto, n.º 749 (fis. 51-60); 758 (fls. 133-142 e fls. 267-274).

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