(do livro a publicar Nossa Terra e Nossa Gente)
A
DESCRIÇÃO desta tradicional festividade em 1949 − porque os costumes e as modas, evoluem
− é diferente da que fiz no meu livro Travassô e Alquerubim,
ao reportar-me ao ano 1905.
«cinco italianos, companheiros dedicados do iluminado de Assis na primeira comunidade seráfica de contemplação, deixaram um dia a doce tranquilidade
da sua pátria, e, tocados de uma grande compaixão pelo erro e ignorância
em que viviam, sepultados os infiéis de além Mediterrâneo − seus Irmãos,
apesar de tudo − determinaram passar à África, onde um grande sonho
de pacífica conquista os levava: − catequiiar Miramolim, imperador de Marrocos».
− ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL, Introdução ao Tratado da Vida e Martírio dos Cinco Mártires de
Marrocos, reedição de 1928.
Aconteceu isto no ano distante de 1219. Os seus nomes
eram: Berardo. Pedro. Acúrcio. Adjuto. Oto.
Enviados os cinco franciscanos por S. Francisco de Assis para catequizar
Miramolim ao cristianismo, e não o tendo
conseguido, foram, a mando deste imperador, presos e acorrentados, ao
uso da época, e mais tarde degolados (ano 1220, no papada de Honório).
A propósito desta tragédia trato o assunto desenvolvidamente no meu
livro Vítimas da Intolerância, pronto a publicar um dia.
/
56 /
Neste trabalho de agora só me proponho descrever as duas procissões e o
movimento do arraial da muito antiga e tradicional festividade dos
Santos Mártires de Marrocos − uma das mais remotas da região de
Vouga − que se realiza anualmente na freguesia de Travassô(1), do concelho
de Águeda e distrito de Aveiro, nos dias 15 e 16 de Janeiro,
«quer chova ou faça sol», como diz o povo.
1
15 de Janeiro.
A procissão dos Nus dos Santos Mártires de Marrocos,
também conhecida por procissão das Velas, é no dia 15 de Janeiro ao cair
da tarde, mais ou menos à hora comovente de Trindades.
Vem povo de todas as localidades da redondeza e de todas as bandas da
região. E vem povo de longes terras.
Muita gente! E essa gente − milhares de pessoas − traz
devoção, que o acto é de penitência e de recolhimento, sem foguetes e
nem repenicados festivos dos sinos. Nada disso.
Todos vêm cumprir as suas promessas porque os santinhos ouviram, lá no
céu distante, os anseios das suas almas crédulas e o murmúrio das suas
preces iluminadas do clarão
da fé.
Fé! Palavra doce, e bela, e mágica, que baila nos corações das gentes.
Palavra de estímulo e amparo... para o infeliz que, sofredor, palmilha o
caminho escuro e escabroso da desdita. Para o que é alvo da perversidade
alheia, e vítima do despeito, e da calúnia, e da inveja dos indivíduos
de má
formação moral.
Fé! Amparo e lenitivo de todos os que sofrem.
Antes daquela hora mística de Trindades do dia 15 de
Janeiro, as gentes devotas que, vindo de todas as bandas das
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encruzilhadas do infortúnio, ali se encontram no amplo
adro da igreja de S. Miguel de Travassô (Travasolo era o
topónimo quando ainda pertencia a Santiago de Compostela) principiam a
preparar-se para a procissão dos Nus, que não
demora a organizar-se.
Por alpendres e salas dos habitantes da antiga povoação
(é mais velha que a nacionalidade), atrás de muros e de cômoros, por todos os cantos escusos, aqui e além... e até
debaixo das copas das velhíssimas oliveiras do adro, essas gentes despem os fatos que trazem por cima das roupas
brancas de baixo... e, assim, em trajos menores, empunhando velas, acesas, de cera, lá vão, devotamente, as mulheres de saias brancas... e lá vão, devotamente, os homens de ceroulas e
de camisolas, aquelas e estes com o tronco embrulhado em filó ou pano
branco rendado, e esta tão
curiosa indumentária mais não é do que o simbolismo do nu,
porque a decência, os bons costumes e o frio próprio da época invernosa, não permitem aos crentes despirem-se completamente... para bem imitarem o doloroso momento dos
Mártires quando, em Marrocos e naquele ano distante, foram conduzidos nus e acorrentados, sob escolta, ao palácio do
imperador de então − o muito poderoso Miramolim. Mas
isso é outra história contada no meu livro Vítimas da Intolerância.
2
Lá vão todos... Lá vai, caminho além, a procissão dos
Nus, dos Santos Mártires de Marrocos, da igreja matriz de S. Miguel de
Travassô, a dirigir-se ladeira abaixo por entre
terrenos cultivados de quintalejos, rústicos muros e típicas
casas alpendradas de lavradores com velas acesas às janelas a luzirem religiosamente no cinzento escuro do crepúsculo
e no altar da crença das gentes.
Ao redor, tudo parece tocado de misticismo. Enternecedor. Comovente.
As sombras crepusculares tornam-se, pouco a pouco,
mais densas. E na penumbra aveludada e mística das sombras, as coisas mansas recolhem-se para dormir. Silêncio!
Na imensidão das alturas já brilham pirilampos do céu.
E a noite cai... mansinha, serena, friorenta.
Contudo, no espaço e dentro do silêncio, as delicadas sensibilidades pressentem vagos e alados anseios. São as
dores da Terra. O sofrimento das pequenas vidas e das pequenas coisas.
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Lá vai a procissão a descer, vagarosamente, sempre e sempre. Os passos
arrastados, as velas e as tochas nas mãos, as almas recolhidas, os olhos
no chão, os lábios em preces:
«Padre nosso, que estais no céu»...
Penitentes... E muito povo! Lá vão todos... ladeira abaixo (rua
estreita, mal empedrada, aos ziguezagues) até à capela da Senhora do
Amparo(2), que fica à borda dos
campos e de onde se espreita, à luz do dia, por cima dos rebrilhos
nervosos azul-prateados das águas das enchentes
de Janeiro, terras e casaria multicor da freguesia de Requeixo e dos
lugares doa Taipa e de Carcavelos. Lá vai a procissão dos Nus,
onde se incorporou muita gente que não vai de penitência, mas que,
devota, também reza.
Mulheres do povo, de indumentária escura, xailes a agasalharem os corpos e lenços nas cabeças, atados por baixo
dos queixos.
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Senhoras de mantilhas pretas a cobrirem os penteados. E homens...
De permeio, os penitentes, de alvas, saias e ceroulas com
atilhos nos tornozelos, panos brancos rendados a embrulharem os troncos,
velas acesas nas mãos, os olhos da fé postos no chão, as almas dobradas
em súplicas, nos lábios preces a subirem ao céu:
«Avé-maria, cheia de graça»...
Os dois dias da festividade do ano de 1949 foram iluminados de Sol. Muito Sol. Dias lindos. Amorosos. Mas, via de regra,
costuma chover. Não importa. Organiza-se da mesma maneira a procissão de penitência dos Nus.
Lá vai ela debaixo de chuva, vagarosa e sem pressas, sempre e sempre,
caminho além, ladeira a descer (mal empedrada e aos ziguezagues...),
até lá abaixo à capelinha da Senhora do Amparo, que fica à borda dos
campos.
Velas e tochas nas mãos dos crentes, almas a arrastarem-se, indiferentes
ao tempo, olhos no chão, lábios em preces:
«Salvé-rainha, mãe de misericórdia»...
3
Muita desta gente vai embora depois da procissão dos Nus, porque só veio
para cumprir as suas promessas. Outra fica para amanhã, que é o dia grande da festividade. O dia
maior da freguesia de Travassô, mais antiga que a nacionalidade! E,
amanhã, com muitos que devotamente vêm cumprir promessas, milhares de
romeiros e passeantes comparecem com os seus farnéis e a sua alegria dos
dias festivos.
4
16 de Janeiro! O grande dia!
Manhãzinha cedo, muito cedo... um galo
cantou num pátio. Outros galos cantaram, a responder.
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Depois, a rasgar, de mansinho, o véu escuro e aveludado da noite, e
ainda de maneira imprecisa, apareceu uma vaga claridade a dar forma às
coisas, a fazer realçar a vida.
Então, na torre da igreja de S. Miguel de Travassô, o velho relógio,
sempre alerta, bateu horas, no sino grande, compassadamente:
tom... tom... tom...
O som metálico e cantante encheu o adro. Acordou a
povoação. Bailaricou nos corações moços. Acariciou o outono grisalho da
velhice a recordar tempos idos é ressoou longe... por quebradas, várzeas
e outeiros.
E agora, nos pátios cercados com currais e alpendres,
já esgaravatam galinhas. E nos beirais dos telhados saltitam, ainda
friorentos, animosos e chilreantes pardais.
Matinas! Matinas!
É domingo. 16 de Janeiro de 1949. Festa grande dos
milagrosos Santos Mártires de Marrocos. O frio não é
muito. Geada, pouca ou nenhuma.
O dia promete ser lindo... e o Sol já é ouro a espalhar-se sobre a
Terra, a nimbar de luz os píncaros orvalhados das árvores e dos
arbustos, a oscular cariciosamente as ervas e as humildes florinhas, e a
aquecer as almas, e as casas dos ricos, e os casebres dos pobres.
Agora, sobre a relva do adro da igreja de S. Miguel de Travassô e sobre
a ramagem verde-cinza das mansas oliveiras cintilam, aqui e além,
fímbrias da luz matutina a ourelar nesgas de cenário.
Gotas de orvalho a tremerem... a tremerem e a caírem,
luminosas e puras, lembram diamantes caros em fulgurações de arco-íris.
As almas dos seres sonham e fremem, embrulhadas na fina suavidade
ligeiramente friorenta da manhã diáfana e linda. E até as coisas mansas
da Natureza parecem sentir a grandiosidade do dia.
Encantamento!... Magia!...
5
Na fonte, ali em baixo, as bicas de ferro despejam apressadamente a
linfa. E então a linfa, apressada, canta saudosos cantares do tempo que
para trás viveu a purificar-se, em transformações e nascentes... e,
amorosamente, tomba em cabriolas sobre o líquido − corpo e alma de si
própria − que enche o largo tanque alpendrado, onde, nos dias úteis, as
lavadeiras vêm escarolar a roupa e desenferrujar as línguas, os bustos
dobrados nas bordas do tanque, a ensaboar, a esfregar, a murmurejar
coisas da vida... das vidas dos outros.
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6
Dia 16 de Janeiro! Dia grande dos Santos Mártires de
Marrocos na freguesia de S. Miguel de Travassô.
Batem dez horas, metálicas, cantantes, compassadas. Sol. Muito Sol. O
firmamento azul, de reflexos translúcidos. E o povo já fervilha a encher o adro e os logradouros
próximos.
Várias dezenas de automóveis
− de mistura, «espadas» do Brasil − e carros de
burros e de cavalos e vistosas e modernas camionetas, de «trombas» de
bicharocos antediluvianos, estacionam em longa «bicha» de quase dois quilómetros, veículos
todos arrumadinhos uns atrás dos outros na margem direita da estrada
nacional, sob a orientação de zelosos cantoneiros
fardados e limpos (parece que lhes vi luvas brancas de algodão e chapéus novos em louvor ao dia) do serviço da Direcção das Obras Públicas de Aveiro.
Nas camionetas em «bicha», letreiros ornamentais e festivos das
localidades de: Ílhavo, Murtosa, Aveiro, Estarreja, Águeda, Albergaria-a-Velha, Avanca, Gafanha, Vale
de Cambra. .. e outras. E carripanas de burros e de cavalos, à antiga, com as chapas camarárias de algumas daquelas
localidades e ainda outras a indicarem: Vagos, Angeja,
Verdemilho, Bom Sucesso (terra do arqueólogo e causídico Dr. Alberto
Souto), Cacia, Pardilhó, Eixo (terra onde viveu
o pensador Dr. Jaime de Magalhães Lima), Oiã, Costa do
VaIado, Salreu, etc., etc.
Bicicletas são tantas que seria mortificante contá-las.
Talvez milhares arrumadas aqui e além, em espaços vazios, à margem do
adro e dos caminhos, em alpendres ou
pátios desocupados, em hortas e quintalejos . .. E tabuletas de bocados
de tábuas, ao alto de paus especados à frente dos
referidos locais, avisam em caligrafia garatujada e ortografia,
arrevezada:
E tais máquinas, de largo uso na região para as necessidades de homens e de mulheres, ficam entregues ao cuidado de
«guardiões» que para tal serviço se propuseram «tomar conta» a troco de
«uma coroa» por bicicleta.
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E continua a chegar povo,
muito povo. Um mar de
gente, santo Deus! Não se cabe, dizem alguns. Anda-se
aos empurrões. Tudo cheio: − ruas, adro, interior da igreja,
alpendres, salas, tascos, lojas, pátios, adegas, eiras, hortas, quintais...
Um mar de gente!
Falatório; Pregões. Risadas. Palavrões. Assobios. Bruteza. Campainhadas
de bicicletas. Buzinadas de automóveis...
Gente que veio de todas as localidades da região e de todas
as bandas do Distrito − e até de fora do Distrito; de longes terras!
Gente que desceu lá de riba dos labirintos das serras altaneiras. Gente de aldeias, de vilas, de cidades... E gente
das planuras, de horizontes largos, dos rincões da beira-mar.
De perto e de longe veio gente, em comboios ordinários e
extraordinários, «abarrotadinhos» dos estribos aos tejadilhos;
em automóveis, e camionetas, e bicicletas, e motocicletas,
e carripanas de burricos e de cavalos, enfeitados os arreios
com ramagens e flores; e ainda em grandes barcos, a descerem os rios Vouga e
Águeda, com musicatas e descantes;
e em bateiras chatas a deslizarem sobre águas das enchentes
de Janeiro e empurradas à vara, a encurtarem distâncias de
povoações próximas.
E também a pé, por estradas e estradecas, veredas e atalhos, por todos os caminhos que conduzem a Travassô vem gente... muita gente!
Grupos e mais grupos de homens e
mulheres, roupas domingueiras... eles, barbeados e de camisas lavadas e elas, blusas novas, xailes, cordões de ouro,
arrecadas ou brincos nas orelhas, e um ar de festa a bailar
na manhã luminosa e nos corações moços dos rapazes e das
cachopas, e logo a reflectir-se nas janelas dos olhos desta boa gente portuguesa a quem, para ser das primeiras, só falta a
cultura de certos povos. Mas falta!... E a cultura eleva o
nível de vida de um Povo.
Com a sua manifesta alegria, quase todos trazem ou à
cabeça ou nos respectivos veículos que os conduzem, os suculentos farnéis a encherem cestos e açafates... e o vinhinho a acompanhar em garrafões, «borrachas» e pipinhos.
Porque, em verdade, os farnéis e o «vinhinho» são razão
de vida e parte integrante das festas dos lusitanos. Sem o farnel e a pinga não existiria «boa festa», nem em Travassô,
nem no Bom Jesus de Braga ou no Senhor da Pedra. E talvez mesmo não existisse «o encanto»
− visto de certa maneira − deste nosso Portugal.
O farnel com o bom galinhaço, o bom chouriço e presunto de fumeiro, os apetitosos «rijões», o carneiro de caçarola a
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rescender, como manjar de deuses, e o famoso leitão classicamente assado no forno (de espeto), de pele aloirada e a estalar,
como manda o ritual... e o verdasco espumante,
a borbulhar, a fervilhar, a fazer cócegas na garganta, enquanto os olhos
lacrimejam... Oh! volúpia desta boa gente lusíada e semi-pagã...
O farneI, o banquete, a «comesaina»
− como diz o meu vizinho Ambrósio
− a tempo e a horas, com discursos ou sem eles, salvam as festas, salvam
os regimes e até às vezes salvam as Pátrias. Patrioticamente o proclamo!
7
Agora já são onze horas do dia 16 de Janeiro. O firmamento
sempre sereno e azul. Muito azul.
Vai grande azáfama nas cozinhas dos habitantes de
Travassô: matam-se e
depenam-se galinhas. Fazem-se estrugidos. Batem-se ovos com leite,
manteiga, canela e um bocadinho de casca de limão triturada. Tiram-se «rijões»
da panela do unto e morcelas do fumeiro. E vai-se à salgadeira...
Por todo o adro e de mistura com aquele «mar de gente»
vêem-se: barracas de brinquedos, de quinquilharias, de «tiro ao alvo».
Fotógrafos «à la minuta». Roletas da sorte com maços de cigarros, com
vistosas garrafas de bebidas, e gaitas, e canivetes, e bugigangas. É o
arraial! Andam por ali «africanistas» com filhas mulatinhas;
«americanos» com casacos de couro e modos desempoeirados;
«brasileiros» de fatos claros acompanhados das esposas vestidas de
sedas coloridas, a lembrar ambiente tropical.
Uma velhota anda a vender pequenos moinhos de papel. Um corcunda
apregoa guloseimas para crianças, espetadas na ponta de um pau, e grita:
«quem quer mama»?
Por todo o arraial... canastras, tabuleiros, açafates e cestos com pão
de trigo, fruta, cavacas, tremoços, roscas e arrufadas, bolos diversos,
figos secos do Algarve, queijo da serra... e um homem velho com um
periquito também velho que, por hábito, tira de uma caixa, com o bico,
um papelinho dobrado que diz a sorte dos «desinfelizes».
Moços da lavoura analfabetos e caixeiros semi-analfabetos, as mãos
grossas e fatos domingueiros, proferem alto graçolas picantes
acompanhadas de risotas ordinárias e vão exercitando o «apalpanço» às
conversadas no meio da multidão. Alguns trazem raminhos a florirem os
chapéus, ou a imagem dos Santos Mártires, que homens da Irmandade com
opas vermelhas andam a vender entre o povo.
Pobres esfarrapados, aleijados, chaguentos, pedintes sujos
e de profissão deambulam por ali a pedir esmola, lamurientos:
«Meu rico senhor, por alminha de quem lá tem...»
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E carteiristas! Uma súcia... Soldados da Guarda Republicana, de espingardas ao alto, andam a manter a ordem.
O dia sempre lindo! Nem de encomenda, neste 16 de Janeiro de 1949. Muito
Sol. Muita gente. Burburinho. Os espíritos contentes.
Por todas as lojas e
tabernas (as de mais movimento são as do Joaquim da Cal e do Júlio) e
por pátios e alpendres, com mesas improvisadas na
véspera, o reboliço à roda das pipas e dos garrafões da pinga é de
respeito. E vende-se carne assada, leitão, queijo, chouriças, um
arrozinho quente «apaladado»... E falatório, praguedo, empurrões,
ditos maliciosos, boa disposição, risotas descaradas.
E um homenzinho narigudo (nariz Cirano de Bergerac), vermelhuço e
lustroso; a parecer a caricatura do vinho e talvez primo de Baco ou descendente de
divindade pagã, anda por ali,
irreverente, abaixo e acima, com um enorme e retorcido corno cheio de
vinho, a tiracolo. Um autêntico corno de boi (a lembrar o Boi Ápis dos
egípcios), grande, grosso, retorcido, com uma rolha de atarrachar na
ponta mais fina e por onde o narigudo e vermelhuço homemzinho
escorropicha diante da multidão que, embasbacada, ri-se e diz-lhe
maliciosas e ambíguas chufas.
E balõezinhos coloridos de borracha são apregoados por
uma raparigota de langorosos e repolhudos olhos mouriscos:
− «Balõezinhos! Balõezinhos!» Olha a bolinha...
a bolinha! Cá 'stá a bolinha!
Alegria! Alegria! Que alegria é vida, e tristezas não pagam
dívidas − dizem os olhitos húmidos e piscos do homenzinho vermelhuço... um
sátiro! com nariz à Cirano de Bergerac.
Santos Mártires!
Santos Mártires!
Romeiros, vinde rezar.
Romeiros, vinde cantar.
Canta é viver.
Cantar é sonhar...
Romeiros!
Trazei as vossas promessas abotoadas nos corações.
Trazei harmónicas,
Trazei violas
E a flor dos mangericões.
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65 /
[Vol. XVI -
N.º 61 - 1950]
E trazei as conversadas,
De faces morenas,
Rosadas,
Aos ombros lenços de côr,
Olhos molhados de amor...
... a travar alegres canções~.
Vinde, romeiros, rezai.
Vinde, romeiros, cantai.
A rezar também se canta.
Também se reza a cantar...
8
Depois de terem batido as onze horas ouviu-se dizer:
«já lá vem a procissão»!
E a notícia passou de boca em boca e correu, como um
zumbido, pelo adro, pelos alpendres, pelas ruas, pelos pátios.
E todo aquele mar de gente, que «queria
ver, principiou a mexer-se e a remexer-se, nervosamente. Todos pretendem
«sítios bons» para melhor presenciarem. E lá vai agora a onda humana aos empurrões à procura
daqueles «bons sítios», para ver passar a procissão que, segundo os bem
informados, já vinha a subir a ladeira do lugar de Baixo, desde a capela
da Senhora do Amparo.
9
A rua muito juncada, com rosmaninho, folhas de palmeira e de japoneira, raminhos de alecrim, junco e junquilhos vários,
florinhas e ervas de cheiro que, pisadas pela procissão que subia,
rescendiam no ar, embriagavam as almas já enfeitiçadas de religiosidade.
Todas as janelas das casas por onde a procissão passa estão atulhadinhas
de gente. E vê-se gente arrumada aos
lados da ruazita a subir, nas bifurcações dos caminhos, encarrapitada
em muros e nas elevações próximas.
No terreiro em frente às escolas primárias dos dois sexos e no jardim
gradeado (sem repuxo) da casa do «brasileiro» − que tem um santinho de azulejos na parede
− tudo cheio, com muitas senhoras e cavalheiros à
mistura.
E no adro! E então no adro!... Um mar de gente,
à espera...
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10
Lá vem! Lá vem a procissão a chegar ao adro! Lá
vem... Silêncio agora! O povo descobre-se, respeitoso.
À frente grandes e roxos
pendões, as guias a descerem
do alto com borlas douradas nas pontas. E seguram essas borlas nas mãos
enluvadas de branco (luvas de algodão), homens que vestem
opas roxas avermelhadas, barbas feitas na véspera, muito sérios, penteados, e compenetrados.
Depois seguem-se
outros pendões menores e bandeiras simbólicas de várias congregações,
anjinhos de túnicas multicores de cetim, os pés em sandálias, os cabelos
encaracolados, e grandes asas brancas a subirem das costas, viradas ao
céu. Vão muito lindos! Alguns são belos
como pequenos Alcibíades. Graciosos como delicadas figurinhas dos
cromos do Natal.
E irmandades. E grandes cruzes de prata erguidas muito
alto e muito polidas, a brilharem ao Sol. E penitentes amortalhados de branco, a cumprirem promessas, uns a caminharem de frente, outros de costas, e alguns a arrastarem-se
de joelhos, amparados e guiados por parentes ou amigos − todos a rezarem com devoção:
«Padre nosso, que estais no céu»...
E andores: Santa Clara, São
Roque, Santa Rita,
S. Francisco... e mais anjinhos, e mais pendões e bandeiras, e mulheres amortalhadas, e homens... muitos
homens a ladearem, a formarem cordões, uns de opas roxas,
outros de opas brancas, e velas e tochas acesas nas mãos,
e padres de sobrepelizes a rezarem alto, e comissões (de que
/
67 /
faz parte o regedor) a dirigirem a procissão, e mais penitentes
carregados de espingardas (promessas por vários motivos), uns a
caminharem de frente,
outros de costas e
mais andores: Senhora da Soledade, Santo lvo, Senhor dos Passos, outros
ainda... e o andor dos Mártires de Marrocos com os cinco franciscanos
martirizados a mando do Miramolim!
«Salvé-rainha, mãe de
misericórdia»...
Ouvem-se e repercutem
nostálgicos
os acordes das filarmónicas que acompanham a procissão.
De permeio, aqui e além, por entre os andares, também vão a cumprir
promessas donzelas pálidas como luares mórbidos (algumas de branco e os
cabelos soltos e compridos), de olheiras fundas e tristes como Verónicas,
a dedilharem,
contrictas, rosários de madre-pérola de onde pendem Cristos de marfim.
Silêncio! Nenhum vento. Nenhum gorjeio de pássaro. As árvores muito
quietas. O céu
azul. O Sol a dourar a
vida com o pincel da verdade.
/ 68 /
E o povo reza e ajoelha-se à passagem dos Mártires e
do pálio, todo bordado
a fios de ouro velho. E sob o pálio vão
os reverendos priores, paramentados a preceito, compostura ortodoxa.
À frente deles, outro sacerdote leva a sagrada relíquia
− um osso dos
Mártires num recipiente com vidro. Um daqueles ossos que vieram de
Marrocos após a mortandade dos cinco franciscanos, trazidos de lá em
duas arcas pelo infante português D. Pedro (irmão de D. Afonso lI), e ao tempo na corte do
Miramolim.
O infante, com a sua comitiva, numa acidentada viagem por Ceuta,
Algeciras e Tarifa, não tendo conseguido entrar em Portugal por Sevilha,
dirige-se à Galiza. E, possivelmente, daqui, entregues pelo infante as arcas com os ossos ao
rico-homem
Afonso Pires, de Arganil (porque a razão
do infante estar na corte de Marrocos provinha de fortes desavenças com o irmão), são os ossos transportados para Coimbra (onde ao tempo estava a corte portuguesa) e recolhidos ao
Mosteiro de Santa Cruz.
Mais tarde a correspondente Ordem religiosa fê-los
distribuir por suas
sucursais(3) remetendo um osso para Travassô, onde antigamente houve um
convento-celeiro, que pertenceu a cónegos grijós e a frades crúzios.
/ 69 /
II
A procissão vai até lá arriba ao cruzeiro de granito(4) que fica à
beira da estrada nacional, contorna-o, desce o adro e entra na igreja.
As duas filarmónicas, à rectaguarda, ficam fora. O povo ajoelha
e reza:
«Avé-maria, cheia de
graça.»...
A igreja está cheia de gente, muita gente, à espera, para ouvir o sermão
do padre pregador, que traz fama... e até dizem os entendidos que já
pregou no Porto!...
E as duas filarmónicas,
muito gabadas, atiram para o espaço azul, inundado de Sol e de anseios vagos, notas lacrimosas que
ajudam a crença e espalham misticismo, fazendo vir às almas crédulas dos simples, lá do céu
distante, o incenso das melodias etéreas e dos mundos angélicos. Mundos
do Espírito!
«Salvé rainha, mãe de
misericórdia»...
E então principiam na igreja, atulhada de gente e toda engalanada, os actos religiosos, com missa cantada e música no
coro. E no momento preciso em
que o padre pregador aparece no púlpito, as gargantas dos presentes pigarreiam muito,
a consertarem-se, a prevenirem-se para, depois, todos caladinhos, nem uma
palavra se perder do sermão. Silêncio!...
E solene, paramentado, sua reverendíssima
ajoelha com simplicidade.
Reza. Benze-se. Depois, levanta-se. Discretamente passa um lenço branco
pelos lábios. Corre os olhos
/
70 /
pela assistência, para julgar da «qualidade», pousa ao de leve as mãos
brancas sobre a borda do púlpito revestido de grande gala e principia:
(5)
Custodit Dominus assa eorum −
O Senhor
foi o guarda dos seus ossos −
Salmo de David.
I
S. Francisco de Assis na Idade-Média foi um segundo
Jesus Cristo,
chamando os Homens à verdade do Evangelho. Ergueu-se na Europa daquele
tempo, como o sol no mundo, alumiando e aquecendo os que esquecidos da eternidade viviam tão somente
para as tristes realidades desta vida. Tinha uma aspiração suprema:
alargar os corações tanto, que neles coubesse Deus, e, uma vez
possuindo Deus, andassem pelos caminhos do Infinito! Para isso
falava-lhes de Deus e dos Céus. Aos seres criados chamava irmãos, vendo
neles vestígios do Criador Infinito, daquele mesmo que também criara os
Homens. Da água e do sol, das aves, e das feras, da natureza, enfim,
dizia coisas que ainda ninguém havia dito, e via neIa belezas − as
eternas belezas de Deus! − que nenhum sábio ou artista havia jamais
descoberto.
Era uma sedução, um encanto! Por isso até os grandes do tempo vinham a
ele, atraídos pela serenidade do seu falar, manso e sereno, como de
homem que trazia Deus consigo, e a mostrava. E foi assim que
advogados, médicos, juízes, mestres
e guerreiros deixavam suas togas e medicinas, suas cadeiras e espadas,
e pediam para se alistarem no seu séquito. Era um
fogo que ardia em sua volta. Um incêndio que se ateava, devorando. E as
almas, sacudidas por aquelas rajadas de sobrenatural, até às mais
íntimas profundezas, acordavam para uma vida nova, sequiosas de Deus, de
cujo Amor se haviam afastado, e convertiam-se. Oh! que dias felizes, os
daquele ano de 1200, em que a voz suave do Arauto de Deus, cantando a
Graça e a natureza, amansava as feras e convertia os Homens ao Amor! Os céus baixavam, a terra elevava-se. E a Graça
descia, tocando as almas, e sarando-as das feridas do pecado!
/ 71 /
E os homens e as coisas, purificados e santos pela acção do
sobrenatural, voltavam a Deus na quietadora paz de quem encontra o seu
destino.
II
Esta revoada de corações, rumo ao infinito, esta loucura
das almas chegou longe, como um contágio. E em 1219 aparecem em Portugal 5 religiosos humildes, descalços, pobres e sem
bordão nem alforge, como recomenda o Evangelho. − Quem sois e donde vindes? perguntava o povo, edificado da sua
simplicidade. − Somos Religiosos de S. Francisco d' Assis. E vamos
à África, às terras de Marrocos, pregar a Fé de Cristo!
De facto, naquele ano da Graça,
1219, reunira o Capítulo
Geral da Ordem, e foi resolvido realizar o pensamento de
S. Francisco de Assis: converter os infiéis à Religião Cristã.
E aí mesmo foram designados 6 Religiosos para a evangelização da África; Fr. Vital, Ir.
Berardo, fr. Pedro, fr. Acúrcio, fr. Adjuto e frei Oto, ou Otão. Eram varões de exímia
santidade, em tudo apostólicos e possuidores ao máximo do
espírito do seu Fundador. Naturais da Toscana (Itália)
embarcaram para Espanha com direcção a Portugal. Fr. Vital
era o superior deles, mas adoeceu no Reino de Aragão, onde
ficou. E os 5 seguiram. Fr. Berardo era célebre pregador, e
entendido na língua arábica. Fr. Oto era Sacerdote. Fr. Pedro
era Diácono (tinha as penúltimas ordens para ser Sacerdote) fr. Adjuto e Acúrcio eram irmãos leigos (não tinham ordens
nem se destinavam ao Sacerdócio). Vieram a Coimbra, visitaram a Corte
Real, foram a Alenquer, encomendar-se às orações de Seus irmãos, e desta vila arrancaram para a grande
conquista espiritual de Marrocos, embarcando em Lisboa, com
o auxílio da Infanta Santa Sancha. Parecia uma loucura. De
Lisboa passaram a Sevilha. Aí reinava a Moirama. Como
não eram sacerdotes nem guerreiros, mas pregadores de Jesus
Cristo, pregaram com grande coragem, nas praças e na mesquita dos
moiros, o nome bendito de Jesus. Presos, encarcerados, açoitados,
sentenciados à morte, viram com desgosto, no fim
de 5 dias de maus tratos, a sentença de morte trocada pelo
desterro para Marrocos!
IlI
Marrocos, o seu sonho doirado! Marrocos, o centro e
império de toda a Moirama, inimiga figadal de Cristo e da sua Lei!
Marrocos, o vasto campo que S. Francisco quisera ver convertido à Fé!
Marrocos, o campo que lhes fora superiormente destinado para cultivar,
em nome do Redentor dos Homens, Jesus Cristo! Marrocos tão apetecido e
desejado por
/
72 / outros irmãos seus que ficaram refreando o seu zelo, nas residências
das vilas e das cidades europeias! Marrocos, eis Marrocos! Agora − orar,
pregar, morrer. Até ao fim, até à última,
derramando o sangue para regar aquelas terras infiéis, a fim de que
nelas cresça a semente do Evangelho. Sim, que aquelas terras negras de
pecado se fizessem luz e Reino de Deus, eis o
grande ideal, a suprema aspiração dos enviados do pobrezinho de Assis. E desembarcaram. Iam pálidos, magros, esqueléticos,
desprezíveis nos hábitos rotos, de burel, que vestiam. Mas interiormente
alumiava-os a Graça, que lhes enchia as almas e fazia deles seres
sobre-humanos. E começam de pregar. O primeiro a quem pregam é a Miramolim, o imperador de todos os moiros. Depois é nas praças e nas
ruas, àqueles renegados que cada vez mais se obstinam.
Ora havia na Corte de Miramolim o Infante português, D. Pedro, irmão do nosso Rei, D. Afonso 2.º, fugido de Lisboa por
desavenças com seu irmão. Toma os Religiosos à sua protecção. Não quer
que eles preguem; mas que se vão embora. Eles teimam. Quatro vezes os
manda acompanhar ao porto, para se irem à Europa. Outras tantas eles
deixam os que os acompanham e voltam à cidade pregar. Quatro vezes os
mandam para o cárcere. Três vezes são publicamente injuriados e
açoitados, deitando-lhes sal nas feridas. Outras tantas eles se alegram,
e mutuamente se incitam ao martírio. Para maior alegria, Deus os
visita no cárcere. E recreados com a divina visão, passam toda a noite
cantando os louvores do Senhor. Em vão o Infante português tenta
escondê-los em sua casa, e guardá-los, vendo os ódios que contra eles se movem. Saem de novo a pregar.
É a Miramolim que encontram, vindo de visitar o túmulo dos seus
antepassados. A ele pregam. É a última vez. Por ele começaram e por
ele acabam! Manda-os prender e depois conduzir à sua presença. Quer
castigá-los pela sua própria mão. São levados ao terreiro do Paço Real,
e ameaçados. − Nossos corpos, dizem, estão na tua mão, ó Rei! Faze lhe
o pior que quiseres e souberes. Nossas almas, porém, são de Jesus
Cristo. A ele as entregamos. Estão fora da tua mão e poder. Alegres
morremos! E sorriam. O Rei pede a espada e diz: − Com a minha própria mão vingarei as injúrias que estes
perversos prègaram contra o nosso
Profeta e nossa lei! E, apartados uns dos outros, a cada um por sua
vez, fendeu-lhes a cabeça pelo meio, com grandes golpes. E, como se não
acalmasse ainda a sua ira, cruelmente os degolou. Era 16 de Janeiro de
1220. Que vitória! Tiram-lhes os homens a vida terrena e dá-lhes Deus a
celeste. Aqueles os abatem, este os eleva. Os mártires vencem morrendo.
Os aIgozes, triunfando, são vencidos. Que vitória! Que triunfo!
Do primeiro Mártir e Rei de todos
os mártires, Jesus Cristo, disse
Isaías, profeta, que seria glorioso o seu, Sepulcro.
/ 73 /
O mesmo podemos dizer destes humildes franciscanos, glória de Portugal e
da Itália, da Igreja e dos frades menores!
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Findou. . E três avé-marias são rezadas pelo prelado e pelo povo.
12
No fim, todos pigarreiam muito, outra vez. Todos se põem mais à
vontade.
Na meia claridade do interior do lindo templo, as vírgulas luminosas das
velas, as imagens dos altares, as toalhas rendadas e as flores que os
enfeitam, os vistosos paramentos e as cerimónias dos senhores priores, o
forte cheiro a incenso... tudo isso enche os corações das gentes e
fá-los subir a um mundo celestial onde pontifica o misticismo, e então
as almas dobram-se em recolhimento.
Silêncio!...
. . . . . . . . . . . . . .
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Lá fora a roda do Sol vai pouco mais que a pino. É a
grande lei da Vida. Dia lindo! Azul e ouro... como o manto
bordado da Virgem.
Depois, finalmente, terminam na
igreja − com aquele magnífico sermão,
missa cantada e a música no coro, onde havia vozes de barítono e tenor −
os actos religiosos.
Aproxima-se o badalar das duas horas da tarde. E só então principiam as
sagradas e humanas leis da matéria, que os estômagos já reclamam − ora
pois!...
− Vivós Santos Mártis!
− berra um, entusiasmado de
pipinho ao ombro enfiado num «marmeleiro».
− Quem quer mama?...
− apregoa o corcunda das guloseimas, no adro, pelo
meio das gentes de todos os tipos e classes sociais.
− Balõezinhos! Balõezinhos! Olha a bolinha... Cá
'stá a bolinha! −
canta a raparigota dos olhos mouriscos. E o homem vermelhuço e de nariz
à Cirano lá anda de um lado para o outro com o grande corno de boi a
tiracolo. E às vezes desatarracha aquilo e escorropicha...
O arraial sempre em burburinho. E o povo atira-se, por onde pode e calha, aos farnéis e à pinga.
Abrem-se cestos e açafates. Devoram-se petiscos.
Escorropicham-se
garrafões, «borrachas» e pipinhos. Todos muito satisfeitos, graças ao
Altíssimo.
− Vivós Santos Mártis!
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74 /
Alegria. Boa disposição. E ouve-se dizer:
− A procissão, sim senhor! com muita ordem e respeito.
− As músicas, afinadinhas...
− O sermão do padre pregador, que era dos bons e
sabia daquilo a valer, era de se poder ouvir só por gosto. Muito lindo!... Coisa boa...
− E o solo! E então o solo cantado no coro da igreja!...
− Ai, aquilo é
que foi! Era mesmo de uma pessoa ficar p'ráli toda a santa tarde sem se
cansar. Isso é que era!...
Nas residências de Travassô os seus habitantes têm, nesses dias, mesas
fartas para parentes e amigalhaços, com aletria e arroz doce à sobremesa
em louvor dos Santos Mártires de Marrocos.
E assim todos os anos, a 15 e 16 de Janeiro, «quer chova
ou faça sol».
Romeiros, vinde cantar.
Romeiros, vinde rezar.
Termas da Curia, Julho de 1949.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |