A. S. de Sousa Baptista, Estradas romanas no concelho de Águeda, Vol. XIV, pp. 3-22

ESTRADAS ROMANAS

NO CONCELHO DE ÁGUEDA

É ABUNDANTE a literatura sobre as estradas romanas no distrito de Aveiro. Infelizmente, a maior parte das conclusões a que se chegou tem o seu apoio em simples conjecturas, faltando-lhes, por consequência, a força convincente da verdade. A falta de testemunhos arqueológicos ou documentais, a tradição deturpada e desviada do seu curso natural pela sobreposição de camadas sociais de culturas inferiores e diversas da romana, a toponímia em obscuro amálgama, como reflexo da multiplicidade de línguas, crenças, costumes e actividades dos povos que habitaram o solo pátrio, criaram, naturalmente, ao estudioso, dificuldades insuperáveis que o forçam a buscar na imaginação os elementos necessários aos seus raciocínios. Daí resultou muita literatura e pouca história.

Poderão dizer que o retorno ao assunto, se prevalecem as causas da dificuldade, nada mais é do que a continuação do mesmo sistema conjectural, sem nenhum proveito para a verdade ou interesse para os leitores, já cansados de divagações e fantasias. Não deixam estes críticos de ter razão, se bem que a não têm toda; cada um que vem a público com suas descrições, traz sempre alguns elementos novos, algum documento, monumento, topónimo, acidente geográfico ou tradição que interessam à verdade histórica, e é com estas migalhas, juntas, ordenadas e interpretadas por oficial de ofício que a mesma verdade terá que ser reconstituída.

O que vou dizer sobre as estradas romanas entre Coimbra e Porto, e especialmente no concelho de Águeda, tem o significado de pequena contribuição ou interpretação nova de material velho com apoio num ou noutro elemento ainda não conhecido, ou, ao menos, não estudado. Ao abordar as opiniões alheias não tenho a pretensão de as combater ou de as subestimar, senão a de fazer luz à volta delas, para que se possa ir fixando a distância a que todos estamos da verdade. / 4 /

Também não é novo o método. AMORIM GIRÃO parte da toponímia à contra prova pelo exame directo e pelos documentos medievais publicados (Geografia de Portugal, pág. 365). O Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA (Arq. do Dist. de Aveiro, n.º 33) e ARLINDO DE SOUSA (Arq. do Dist. de Aveiro, n.º 31) seguem a mesma orientação. Também trilho o mesmo caminho, mudando apenas o sentido: da toponímia documental à toponímia actual e exame local.

Entre os romanos, as vias de comunicação tinham os seguintes nomes:

VIA − Termo que, de uma maneira geral, abrangia todos os meios de comunicação terrestre, mas especialmente só os caminhos largos não empedrados, que estabeleciam as comunicações entre as cidades e províncias, e bem assim as ruas das cidades − ltaque ante diem tertium Idus Novembr. − cum Sacra Via descenderem (Rua de Roma pelo lado sul) (CÍCERO, Choix de Lettres, pág. 65).

ITER − que também se usava genericamente, tinha mais o significado especial de rumo, orientação, caminho. CÍCERO, a caminho da sua província, escreve ao irmão, de Tralles: «Nunc iter conficiebamus aestuosa et pulverulenta via».

ACTUS − carral − caminho de carro.

SEMITA − caminho de pé.

TRAMES − atalho.

STRATA − era a via empedrada − via pública − lapidibus seu silice munita (DUCANGE); mas nos séculos posteriores o termo strata adquiriu independência para traduzir por si só as vias construídas de pedra segundo a arte que os romanos aprenderam dos cartagineses (... id est lapidibus strata quam prius Poeni post romani per omnem pene orbem disposuerunt propter rectitudinem itinerum, et ne plebs otiosa esset) (Vocabulário de PAPIAS citado por DUCANGE).

Algumas vezes a estrada era qualificada de régia, certamente para lhe marcar a excelência sobre todas as outras vias − «Strata publica quae apellatur via regia».

CÉSAR CANTU descreve assim as estradas romanas − «As maiores tinham cinco metros de largura; começava-se por traçar dois regos que indicavam a largura da estrada; depois cavavam o intervalo e feita a escavação, enchiam-na com materiais apropriados, até à altura conveniente; conforme a estrada atravessava planícies, montanhas, ou terrenos de aluvião. BESQUER cita estradas romanas em França elevadas do solo 6,50. A camada inferior (statumen) era formada por pedaços de pedra ligados com cal e areia; a segunda camada (rudus) era de cascalho misturado com cal; a terceira (mulens) compunha-se de uma mistura de cal, argila e terra, / 5 / e algumas vezes de seixos de cimento; sobre a terceira camada era disposta a quarta (sumum dorsum−summa crusta) formada de calhaus de pedras chatas cortadas em polígonos irregulares ou em esquadria. Às vezes, em lugar da quarta camada, havia uma mistura de seixos miúdos e cal. Também substituíam este cimento por argila; empregavam, porém, sempre o mesmo número de camadas que batiam com massos ferrados, tornando-as por este modo mais sólidas e compactas. (Hist. Universal, voI. IV, pág. 397, liv. 50),

Ora convém aqui definir, com rigor, o campo do nosso trabalho. É destas estradas, isto é, das vias empedradas, e só destas, que nos ocupamos; estas, sabemos nós que são romanas ou posteriores ao seu domínio. Quanto às outras vias nada podemos afirmar, porquanto a maior parte delas vem do fundo dos tempos, de muitos séculos antes que os romanos chegassem à Península. Muitos escritores têm feito grande confusão destas vias; atribuindo aos romanos todas as que, pelos sinais ainda patentes, lhes parecem vir de tempos antigos. E desta forma cada um vai apontando à sua paróquia ou concelho caminhos velhos pelos quais procura ligá-los às gloriosas tradições da cultura romana. E procuram firmar-se ainda em dados históricos, pela suposição de que as numerosas nações que habitavam a Península, vivendo vida separada ou com poucas relações, não tinham necessidade de vias de comunicação. Penso que a verdade não está com estes. Embora os povos mantivessem entre si poucas relações e até se fizessem guerras frequentes, a condição errante destes povos durante muito tempo, as necessidades impostas pelas mesmas guerras, rasgaram na Península grandes vias de comunicação que permitiam a deslocação das tropas de um a outro extremo dela, como se viu com Viriato e Sertório. Acontecia até o mesmo que sucedia na Gália, onde Júlio César encontrou caminhos que lhe permitiram transportar as suas tropas e bagagens até à Bélgica, fazendo por vezes percursos diários de algumas dezenas de quilómetros em regiões onde os romanos não haviam antes chegado. Isto só lhe foi possível, sobretudo nas plagas alpinas, por ter encontrado vias de comunicação já relativamente fáceis. É, portanto, temerário atribuir aos romanos todas as vias só porque têm indicações de antiguidade; elas podem vir de muitos séculos antes deles.

Parece assente que antes de César não havia estradas na Lusitânia, e que foi este que começou a sua construção nos meados do último século antes de Cristo. A construção tomou largo incremento com Augusto quando da sua estada na Península, em 26.

Outros imperadores, no decorrer do primeiro e segundo séculos, conservaram e melhoraram as estradas feitas e construíram / 6 / muitas novas, mas foi sobretudo com Trajano, natural de Córdova, e seu filho Adriano, que a Espanha alcançou o seu apogeu. A partir do século II a Espanha entrou em decadência. É natural, porém, que no correr dos dois séculos seguintes até à invasão bárbara, outras estradas se construíssem, não reclamadas já pelas necessidades da defesa militar, mas pelas do tráfego crescente pelo desenvolvimento demográfico.

Costumavam os romanos colocar à beira das estradas, de milha a milha, marcos mostrando o número delas de estação a estação, tal como hoje se faz, mudada apenas a unidade para quilómetro. E chamaram estes marcos miliários. Muitos chegaram até nós e são inegavelmente elementos valiosos, ainda que não absolutamente seguros, na determinação do rumo das estradas.

O Itinerário de Antonino é considerado a obra geográfica mais valiosa que a antiguidade nos legou. Ainda que simples indicação de lugares e distâncias, dá-nos, contudo, o fácies do Império romano e deixa-nos compreender a grandeza do esforço necessário para o manter. Nele estão indicadas as estradas que sulcavam o solo do nosso Portugal. Estarão, porém, ali mencionadas todas as estradas existentes ao tempo da invasão bárbara no território peninsular? Penso que não. O Itinerário, ou fosse publicado por Antonino ou por Marco Aurélio, é obra da segunda metade do século II e apoiou-se nos comentários de Agripa que, por sua vez, compilava os resultados dos trabalhos geodésicos ordenados em 44 a. C. e concluídos na segunda década do século I.

O Itinerário não podia, portanto, inicialmente, referir-se senão às estradas abertas à data da sua publicação. Fizeram-se reformas neste Itinerário, sendo a última ordenada por Teodósio, o grande, em 435 − isto é, quando a Espanha estava já, na maior parte, sob a denominação bárbara. Qual foi a extensão e natureza destas reformas? Incluíram todas as estradas abertas depois da sua publicação? Se atentarmos bem nas que o Itinerário refere e nas mais que os documentos e vestígios de significado incontroverso nos revelam, temos de concluir que o Itinerário só mencionou as que estavam prontas à data da sua publicação, ou só aquelas cujos estudos estavam feitos ao tempo em que foi elaborado. Para a reconstituição actual do trajecto das que refere, o Itinerário é inquestionavelmente um documento valiosíssimo, não só pelo que directamente dele se infere, mas ainda pela força que empresta ao argumento deduzido da documentação medieval, como veremos.

Nenhuma prova se nos apresentou, até hoje, de que os godos se tenham preocupado muito com as vias de comunicação ou de que tenham feito alguma construção nova. / 7 /

No Código Visigótico apenas descobrimos duas leis de defesa das vias públicas. − Forum Judicum − Lib. VIII − Tit. IV − Lib. XXIV − «De damnis iter publicum concludentium» − Lib. XXV − «De servando spatio justa vias publicas».

Os árabes habitaram o solo português durante séculos. Duvida-se hoje de que eles tenham construído novas estradas. Para o nosso estudo esta questão é da máxima importância, pois se nenhumas fizeram, todas as que nos revelam, os documentos são de origem romana; se construíram, temos necessidade de saber quais, para atribuir aos romanos as restantes. Inclino-me para a afirmação que dá aos árabes a autoria de algumas das estradas antigas e adiante direi porquê.

Na documentação medieval dos séculos IX ao XIII a terminologia das vias de comunicação terrestre enriqueceu-se de termos novos − além de viastrataiter − aparecem-nos, com frequência, entidades novas: carrariacarralcarrilvereda. Correspondem estes termos, de facto, a entidades novas, ou são apenas novas designações dos caminhos antigos? Penso que se trata apenas de mudança de nomes.

Carraria − karraria − kararia − carreira − é o caminho que dá passagem aos carros e serve também ao trânsito de peões e cavalgaduras entre povoados ou mesmo entre cidades.

O que distingue a via da carraria é a largura e a extensão, porque a via é em geral mais larga e de mais longo percurso, fazendo a comunicação entre cidades e províncias. Aí vão alguns exemplos:

933 − «... per carraria maiore que discurrit ad ciuitate conimbrie...» (P. M. H., Doc. XXXIX).

973 − «... et trauce illa karraria que vadit ad illa marmeleira usque fer in illa karraria de illa uimeneira...». (P. M. H., Doc. CVI).

1034 − «... quomodo discurre per illam carrariam antiquam que uadit pro ad illum pontem petrinum...» (P. M. H., Doc. CCLXXXVII).

1036 − Braga − «... in directo et fere in illa carraria de agro de petro...» (P. M. H., Doc. CCLXXXXI).

1043 − Cerzedo − «... et in illa kararia que discorre de illo canbpo... (P. M. H., Doc. CCCXXVM).

1083 − Cinfães − «...ad illa portella iusta kararea que uadi pro ad riu...» (P. M. H., Doc. DCXV).

1127 − Viana do Castelo − «... per terminum antiquum, quem vocitant carraria et venit ad Cardos...» (Chanc. de Af. Hen., Doc. n.º 1).

1161 − Gaia − «... fert in carreriam quae venit de Gaya...» (Chanc. Af. Hen., Doc. 192). / 8 /

«Estabelecendo que se alguma carreyra publica é destruida na testeyra de alguma herdade e o senhor da herdade a nom quer mandar tapar vaan pela herdade sem coomha nenhuma. (L. Af. III P. M. H.).

Por estes exemplos se verifica que carraria tanto conduzia à cidade, ao povoado, como ia à ponte, ao rio, ao campo. Nos documentos do século IX, X e XI, carraria é frequente. Carrale parece ter a mesma significação de carraria, porque, como esta, conduz à cidade, ao povoado, ao campo, à ponte, etc. Comparando o primeiro exemplo que dou a seguir com o primeiro antes dado para carraria, verifica-se que a carraria que conduz a Coimbra, é a mesma carrale que conduz à mesma cidade.

968 − Vilela − «...et de alia parte carrale que discurrit ad ciuitas conimbrie... (P. M. H., doc. XCV).

998 − «...in ripa de mondego de azenia usque in carrale que uadit ad illo barco...» (P. M. H. doc. CLXXIX).

1047 − Gemunde − (... et lebe se de caral que uai at ille porto...» (P. M. H., doc. CCCLIX).

1085 − Arouca − «...subtus illa carral que ducit de uilla sancti petri de arauca in directo ad uilla que dicent uilllare...» (P. M. H., doc. DCXLVI).

1087 − Arouca − «... in derecto per illa carrale et per illo uallado...» (P. M. H., doc. DCLXXXIV.

1101 − «...inde per carrale antiqua...» (Doc. Med., doc. n.º 14).

1137 − Tondela − «...et intrat per illud carral que uenit de tondela...» (Chanc. Af. Hen., doc, 76).

De carraria veio carreira que nos séculos XII e XIII quase desaparece com a significação própria, sendo entretanto frequente com a de peregrinação, viagem, serviço de transporte que os enfiteutas ou vassalos eram obrigados a fazer para o seu senhor.

Nos forais de Tomar e Ozezar − 1174 − Pombal, 1176 − Torres Novas, 1190 − Figueiró − 1204, há uma disposição protectora das vias de comunicação pela qual se proíbe «taliar cum valIo carreiras vel stratas».

De carral veio o nosso carral de uso ainda frequente para significar o caminho de carro. Em todos os exemplos dados, carral é feminino certamente por influência de carraria. Todavia no documento 1137 «... et intrat per illud carral que uenit de tondela...» parece haver já uma forma masculina, pois de outro modo o notário teria escrito illa carral.

Carril é raro, e, embora tivesse primitivamente designado também o caminho de carro, só se usou, mais tarde, para os caminhos de pé.

1140 − Santa Marinha de Panoias − «... per illo caril de terra freita...» (Chanc. Af. Hen., doc. 95). / 9 /

1175 − Leiria − «...deinde per uetus carril de cima de barra... deinde per viam, que uenit de leirena... deinde per illud carril uetus...» (Chanc. Af. Hen. doc 234).

Via conserva nos séculos da reconquista a mesma significação que tinha entre os romanos e os godos: caminhos longos não empedrados, que punham em comunicação as cidades e as províncias e também os que nós hoje chamamos ruas.

972 − «... et pergit per montes inter illa uia antiqua et illo uallo...» (P. M. H., doc. CIV).

974 − Santa Comba − «... per lomba que diuidet com termino de trexete ubi est uia antiqua...» (P. M. H., doc. CXIV).

1034 − Entre Ave e Cávado − «... et de illa incruziliada comodo avit illa via ante illa porta de illo kasal de Danila...» (P. M. H., doc. CCLXXXVI).

1083 − Porto-Coimbra − «...in septemtrione uia puplica...» (P. M. H., doc. DCXXIV).

Carreira e via não se confundem nos documentos.

1083 − Arouca − «... in uilla minianos et inde diuidet... per carraria antiqua inter iugarios et nouales... et inde per uia antiqua... (P. M. H., doc. DCXXXIX).

1086 − Rua do centro de Coimbra − «... emit unam cortem... Ad orientem atrium australem de sancte marie. Ad occidentem habitationem domini cipriani Ad meridiem uiam publicam... (P. M. H., doc. DCXXX).

Nos séculos XI e XII, à medida que se refazem as populações ao norte do Mondego, definitivamente livres das guerras da reconquista, novos povoados nascem, restauram-se as cidades e entre uns e outros se desenvolvem as comunicações, aproveitando-se as antigas e fazendo-se novas. É por isso que nos documentos destes séculos nos aparecem com larga frequência − via, via pública, via antiqua, via mourisca, indicando os caminhos de largo percurso.

1088 − Coimbra − «... terra ex his ultra mondecum flumen que prius tempore maurorum ortus de iben aropolIo uocabatur... Est ei in oriente publica uia que ducit ad sanctaren....» (P. M. H., doc. DCC).

1088 − Douro − «...per illa uia usque a sancto ioanne...» (P. M. H., doc. DCCVII).

1089 − Beira − «... et mons usque ad uiam... ln meridie uia puplica» (P. M. H., doc. DCCXXV).

1090 − Coimbra − «... in oriente uia puplica que uacarizam... ln occidente uia de uimearie... Ad septemtrionem... per illa uia coua...» (P. M. H., doc. DCCXLI).

1091 − Monte-Mor o Velho − «.. .iuxta uiam que ducit ad ciuitatem...» (P. M. H., doc. DCCLXIII).

1103 − Águeda − «...de uno talio de uinea que iacet in villa Recardanes et iacet in loco predicto inter illam uiam que / 10 / uadit ad íllam uillam Sautum et alia uia que uadit pro ad ílle rio de Uauga et concludit inter ambas uias...» (Doc. Med. doc. 102).

1139 − Coimbra − Limitação da Paróquia de Santa Cruz − «... Ab aquilone uero uersus orientem terminus descendit per uiam antiquam...» (Chanc. Af. Hen., doc. 90).

1163 − Montemor − «...et uia publica que uadit ad portum de laurizaI...» Chanc. Af. Hen., doc. 195).

O exame dos documentos medievais mostra que strata, ao contrário de via, carreira, só aparece relativamente em poucos deles e estes, confrontados, revelam ainda que nas regiões atravessadas pelas estradas mencionadas no Itinerário de Antonino, a palavra strata só é usada para significar estas vias e, de tal modo, que esta entidade nos aparece perfeitamente caracterizada por si só, sem necessidade de qualquer outra indicação.

Em nenhum documento a entidade strata se confunde com qualquer das outras, havendo alguns em que concorrem as três − strata − carraria − via.

Estas circunstâncias levam-me à convicção de que o termo strata dos documentos compreende apenas as vias calçadas. E se estas só foram feitas pelos romanos, onde os documentos mencionarem strata, aí temos um sinal seguro para determinar o seu rumo.

As vilas, casais, leiras, campos, que figuram nos referidos documentos podem, ainda hoje, num grande número de casos, ser rigorosamente identificados e localizados em face das confrontações que ali lhes são atribuídas. Feito este trabalho, se é realmente certo que a palavra strata só designa as vias empedradas, o que creio, está logicamente descoberto o processo para traçar sobre o mapa actual todo o sistema das estradas romanas ou árabes.

AMORIM GIRÃO publica na sua Geografia de Portugal, em desenho sobreposto ao mapa colorido das modernas vias de comunicação, o sistema de estradas romanas que ele organizou e assim justifica: «Sem nos preocuparmos muito com os esquemas já conhecidos e visivelmente incompletos, baseamos esse traçado da toponímia local coligindo todos os nomes de lugar como calçada, estrada velha, estrada mourisca, estrada, via, corredoura, carreira, carral, carril, e respectivos compostos e derivados. Procuramos contraprová-lo em numerosos casos com o que da velha rede de estradas ficou no terreno ou nos documentos antigos até agora publicados: e num pequeno esboço ao lado mostramos ainda a maneira como se fazia o entroncamento das suas linhas maiores com as que cruzavam o solo Ibérico». (Pág. 365).

Com o devido respeito pelo sábio professor, parece-me que os topónimos viacorredouracarreiracarral / 11 / são indicações pouco seguras que podem levar a conclusões menos verdadeiras. Via, abrange caminhos que vêm de tempos anteriores aos romanos, alguns feitos por estes, e ainda outros feitos posteriormente. Não pode, portanto, servir para identificar uma espécie.

Calçada, corredoura, são palavras relativamente novas, que tanto podem ter sido aplicadas a factos anteriores como a posteriores ao seu aparecimento. Por toda a parte se encontram estes topónimos. Se eles realmente tivessem relação com as velhas estradas romanas, teríamos, sobretudo a região entre Douro e Mondego, juncada delas.

«Carraria, − ensina SERAFIM NETO, − com todos os seus derivados vem sem dúvida de carrus-i ou carrum-i, palavra gaulesa incorporada ao latim e cedo difundida por todo o Império. Significava o carro de duas ou quatro rodas, que servia para transporte, de mercadorias e, na guerra, para transporte de bagagens e máquinas. Os escritores militares usam-na com frequência. Esta palavra teve larga família de derivados:

I − Carruca − veículo de luxo com ornamentos de bronze, marfim, prata ou ouro, onde se podia até dormir. Todavia na lei sálica designa uma espécie de arado. Não há certeza se se trata duma evolução do sentido, ou de uma palavra diferente. Deste significado resultou o francês charrue, donde q português charrua».

II − Carrago-inis − entrincheiramento feito com carros de bagagens.

III − Carracutium-ii − carro de duas rodas muito altas.

IV − Carrucarius-ii − cocheiro da carruca».

Entretanto os vocabulários latinos não documentam carrária, nem a palavra se encontra nos escritores até ao século V. Esta circunstância parece-me prova evidente de que a sua formação só se fez depois daquela data, isto é, depois que os godos, e sobretudo os suevos, generalizaram na Península, na linguagem popular, o uso da palavra carrus. É, portanto, uma palavra, posterior à dominação romana e, por isso, de, pouco valor na identificação das estradas romanas.

Já dissemos do valor de carraria − carral − carril, a este respeito. Passo agora a transcrever as passagens dos documentos relativos à região de entre Douro e Mondego, ou entre Porto e Coimbra, para em seguida determinar com mais precisão o rumo da estrada romana no concelho de Águeda. O exame geral destes documentos dá-nos o sistema de estradas de toda a região. Para maior clareza ponho de lado a ordem cronológica, começando pela estrada Conimbrice − Cale − (Condeixa-Porto).

1079 − Antanhol − «...et cum suo monte per illa strada...». (P. M. H., doc. DLXVIII). / 12 /

1080 − Antanhol − «...et cum suo monte per illa strada...» (P. M. H., doc. DLXXXVI).

1080 − Antanhol − «...in loco predicto in antoniol in illa strata qui discurre de sancti iusti pro ad colimbria...» (P. M. H., doc. DCXXXXI).

Por estas indicações se vê que a estrada romana, partindo de Coimbra (Condeixa-a-Velha) não seguia o actual curso da estrada n.º 10, mas vinha pela vertente oposta, de poente, para atravessar o Mondego abaixo da actual ponte de Santa Clara.

1101 − Coimbra − Vilela − «... ereditate inter Gueifar et Casal de Patre et de alia parte inter Lauandeira et illa strata maurisca sub illas mamolas de Uillela...» (Doc. Med. doc. 29).

1018 − Botão − «... et diuidet cum marmeleira per illo kasal de olpinos et perge ad illa strata que discurre iuxta oleaster et perge per illa strada usque in illo ribulo...» ( P. M. H., doc. CCXL).

1101 − Mealhada − «... de uilla Moroganus qui est inter Almahala de Rei et Certame et strema illa uilla per illo porto de Ventosa et ueni usque ad illa strada maurisca ... ad oriente uilla Aquilin... ad aquilone uilla Stamengus ad Affrica uilla Canizales (Doc. Med. doc. 17).

1143 − Mogofores − «... et inde per illam stratam mauriscam et inde per illam lacunam... et inde per illam stratam partiam que uadit ad paredes...» (Chanc. Af. Hen., doc. 125).

957 − Aguada de Baixo − «... et diuidlt ipsa uilla cum uilla barriolo per illa lomba inter ambas illas stratas...» (P. M. H., doc. LXXIII).

1050 − Lamas − Pedaçães − «... Padazanes ad integro per suos terminos quomodo diuide cum christouannes et cum couellas per illo fontano cum suo molino et illo fontano discurre pro ad uauga per ut illo diuidiui cum maiorinos de rex domno fredenando, et de alia parte per estrada maiore et de alia parte quomodo diuide cum lamas per illa coua de illo sauuqueiro de ripa de uauga...» (P. M. H., doc. CCCLXXVIIl).

1077 − Pedaçães − Lamas − «... padazanes quomodo fui illa de ille comes domno didago et diuide per illa strata maiore et de alia parte diuide per illo termino de sancta maria de lamas...» (P. M. H., doc. DXLIX).

1118 − Albergaria a Velha − «...deuide sicut currit − strata usque... et inde de ipsa prima fonte de sub strata... in loco isto de super strata... fonte prima de sub-strata (Doc. pub. por JOÃO PEDRO RIBEIRO nas Dissertações Cronológicas).

1088 − S. João da Madeira − «...quomodo conclude per illa strata de justa illa ecclesia de sancti ioanni...» (P. M. H., doc. DCCIV). / 13 /

1122 − S. João da Madeira − «...desde illa strada mourisca ata illa ueneiro...» (Arq. de Aveiro, voI. 2, pág. 67).

1145 − Azevedo − «... in villa dicta azevedo subtus illam stratam mauriscam... (Arq. de Aveiro, voI. 4, pág. 26, cit. por JOÃO DOMINGUES AREDE).

1148 − Sermonde − Brantães − «... subter illam Stratam Mouriscam...» (Anais do Município de Oliveira de Azeméis, págs. 13 e 14, cit. por JOÃO DOMINGUES AREDE no Arq. de Aveiro, voI. 4. pág. 25).

1078 − Paradela − R. Feveros − «...et deuidit ipsa uilla qum sexo aluuo a parte mare per strata maiore et alia parte inter acisterio petroso...» − (P. M. H., doc. DLXIII).

1087 − Pedroso − «...in viilla billanes subtus castro petroso discurrente riuulo cerzedo territorio portugalensi sub illa strata propre littus maris (P. M. H., doc. DCLXXV).

1096 − «...in uilla dicta eldiriz subtus monturelo discurrente riuulo feuerus... super strata» (P. M. H., doc. DCCCXLIl).

1098 − Pedroso − «... dou atque concedo ad loci illius sancti petri illas hereditates quantas ganaui cum uiro meo des durio in uauga siue super strada cornodo subtus illa strada... et habent iacentia in territorio castro portela et ciuitas sancta maria...» (P. M. H., doc. DCCCLXX).

1101 − «...ipsa hereditas in Resmaa subtus monte Ordoni discurrente riuulo Feueros territorio Portugal et est super illam stratam...» (Doc. Med. doc. 48).

1102 − «... in uilla Dragoncelli subtus monte Saxo Albo discurrente riuulo Feueros... super illam stratam...» (Doc. Med. doc. 76).

1109 − «... in uilla Ramiri et Ordoni... discurrente Feueros... super illa strada...» (Doc. Med. doc. 344).

1112 − Pedroso − «... discurrente riuulo Cerzedo... sub illa strata in uilla Brito... exparte cum Villa Plana et cum Spino et de alia parte cum Sancto Felice...» (Doc. Med. doc. 403).

1128 − Carta do Conto de Pedroso − «...dahi a Porto Carreiro e vai ter a estrada...» (Chanc. Af. Hen. doc. 10).

1147 − Gaia − «... desde o Porto Caneyro e dahy pela Pena de Corvo e desde ahi pela estrada velha que vae a João Gignes... até o Porto da Ponte de Valgias c dahy pela mesma estrada (Chanc. Af. Hen. doc. 144).

Esta série de indicações dá o traçado da estrada entre Condeixa-a-Velha e o Porto. − O estudioso que queira dar-se ao trabalho de identificar todos os lugares mencionados nos documentos referidos, poderá traçar sobre o mapa o rumo rigoroso da velha estrada romana, e então verá quanta razão há naquelas palavras atrás referidas em que PAPIAS dá as razões das construções das estradas: «... propter rectitudinem itinerum...». De facto, colocando a régua sobre Condeixa-a-Velha − Antanhol (encosta a nascente) − Coimbra − / 14 / Vilela − Mealhada, Mogofores − Avelãs − Aguada de Baixo − Recardães − Lamas − Albergaria-a-Velha − Oliveira de Azeméis − S. João da Madeira − Sermonde − Gaia − não podemos deixar de admirar a grande aproximação da linha recta. Esta economia de distância só pôde ser alcançada com o sacrifício da comodidade, com subidas e descidas que os nossos actuais meios de transporte não suportariam. As pequenas curvas são determinadas apenas pela necessidade de passagens mais fáceis nos rios ou para evitar vales profundos e encostas abruptas onde a construção seria impossível ou ao menos excessivamente dispendiosa.

A construção das estradas modernas obedece a princípios muito diferentes, sacrificando a economia das distâncias à economia dos gastos e sobretudo às necessidades dos actuais meios de transporte. Não alcançam as alturas galgando as encostas em linha recta, mas serpenteiam-nas alongando-se em curvas de inclinação suave. E é por esta razão que será sempre trabalho baldado procurar os leitos das velhas estradas romanas sob as actuais ou a correr-lhes sempre paralelas. Podem seguir a mesma zona, mas aqui se combinam, lá divergem, convergem ou se cruzam. Entre S. João da Madeira e Porto é grande o número de documentos em que nos aparece a referência estrada. Deles resulta alguma confusão, porque uns só falam em estrada, enquanto outros dizem estrada mourisca e um estrada maior e outro ainda estrada velha. Quererá esta divergência significar que os árabes tinham construído alguma estrada nesta região?

O Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA publica no voI. IX, fasc. 33 do Arquivo de Aveiro, um estudo interessante − De Talábrica a Lancóbriga pela via Militar Romana − onde diz: «− a propósito do lugar de Azevedo (S. Vicente de Pereira) deparou-se-nos a primeira menção de estrada mourisca, em documento de Grijó.»

«Como iremos agora encontrar frequentes alusões a essa estrada, convém precisar o sentido de tal designação.»

«É bem conhecida a designação dada por VITERBO: − chamou-se Estrada Mourisca, porque os Mouros a romperam, deixando, talvez já por invadiável naquele tempo, a Estrada Romana, ou Via Militar... Com o rodar dos anos a costa se entupiu, e alteou por causa das areias, e os rios estagnados não só esterilizaram os campos, mas também fecharam a passagem dos caminhos. Daqui se fez indispensável a presente Estrada Mourisca...»

«Ninguém sabe onde o autor do Elucidário colheu notícias de semelhante catástrofe, mas é fora de dúvida que ele se equivocou distinguindo o traçado da via romana do da estrada mourisca. Por um lado, não consta que os Mouros se ocupassem em trabalhos deste género e, por outro, não / 15 / se compreende que se abalançassem a obra tão arrojada sem terem ao norte o domínio de um núcleo importante de população sua, com o qual fosse indispensável manter ligações.»

«Ainda que pudesse relacionar-se com eles uma porta mourisca em Coimbra (RUI DE AZEVEDO, Documentos falsos de Santa Cruz de Coimbra, pág. 78) dificilmente se lhes poderia atribuir uma «carraria maurisca» que um documento de 953 nos dá para os lados de Vila do Conde, em território onde se não exerceu por muito tempo a ocupação muçulmana. (Dipl., n.º 67).»

«Qualquer que seja a explicação do nome, a estrada que nesta região se chamava mourisca, era a própria via romana.»

Não posso concordar com o Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA.

Na verdade, não se sabe onde VITERBO foi colher que os árabes construíram nova estrada por estar arruinada a romana e alagados os terrenos por onde esta passava. O desconhecimento da fonte autoriza a pôr reservas à afirmação de VITERBO, mas não autoriza a declará-la falsa, negando assim probidade ao seu autor.

Eu acredito que VITERBO tivesse lido algures aquela notícia, mas porque não revelou a fonte, fica-nos apenas o argumento de autoridade, que é realmente fraco, sem deixar de ser um argumento. Este, com outros argumentos que facilmente se colhem, se nos não mostram rigorosamente a verdade, dão-nos, entretanto, uma forte presunção dela.

Não foi tão curto o período da dominação pacífica dos árabes na região entre Douro e Mondego. Sabemos que em 718, quando se travou a batalha de Covadonga, os árabes eram senhores de toda a Península, com excepção das Montanhas Asturianas. E esta situação prolongou-se durante os reinados de Pelágio e seu filho Fafila. Afonso l fez incursões na Galiza até ao Douro, mas estas não lhe deram nenhuma posse sobre as regiões invadidas. Em tempo de Ordonho l, morto em 866, o poder dos cristãos ainda se não estendia além do Minho. Só com Afonso III é que o reino cristão se dilatou para além do Douro, atingindo Coimbra.

Estava-se no fim do século IX. Tinham corrido perto de dois séculos depois da invasão, e tão longo espaço de tempo foi bastante para que os árabes nos pudessem deixar traços evidentes não só da sua passagem como da sua forte ligação à terra. Provam-no as inúmeras povoações que conservaram nomes seus. Não há, pois, razão para que o culto sacerdote estranhe o aparecimento da carraria maurisca num documento de 953, de Vila do Conde. Testemunha nesse documento Jaffar Sarraciniz, 'que certamente não era godo.

Também não me parece muito acertado dizer-se que os árabes não teriam grande interesse em conservar, melhorar, ou substituir, o velho leito romano, por não terem, ao norte, / 16 / povoações importantes a servir. A invasão árabe pouco teve de semelhante com a invasão bárbara. Esta foi a ocupação efectiva da terra por uma nova nação, a partilha violenta dela, foi a tomada pela força, foi a destruição e a morte; aquela, nas terras que pacificamente lhe entregaram, foi a simples ocupação militar; o povo que tinha a posse da terra, nela se manteve em geral. Só mudaram os governantes. As gentes ismaelitas, que depois vieram, entraram pacificamente e pacificamente se estabeleceram na terra habitada. Centros de população, havia-os ao norte do Douro e por toda a Galiza e as suas comunicações com o Sul faziam-se essencialmente pela velha estrada romana que vinha de Braga ao Porto e daqui por Coimbra a Lisboa. Foi natural, portanto, que esta lhe merecesse alguns cuidados.

O qualificativo mourisca atribuído à estrada nalguns documentos medievais, não pode ter a origem que algumas vezes se lhe dá: tendência geral do povo para atribuir aos mouros os monumentos que vêm de tempos imemoriais.

Em 953 os mouros, se já não dominavam na região de Vila do Conde, poucos anos havia que ali tinham perdido a sua soberania. A «Carraria Maurisca» não podia assim ser-lhes atribuída só porque era tão antiga que se lhe não conhecia o autor. Se a razão de mourisca fosse essa natural tendência, do povo para assim chamar a todas as obras que ultrapassam
a sua memória, porque não abrange essa designação todos os documentos de Pedroso, mas só uma parte deles?

Além dos documentos relativos à região entre S. João da Madeira e Porto, conheço ainda mais dois, já atrás referidos, em que a estrada é qualificada de mourisca: 1 − de Vilela-Coimbra «...ereditate inter Gueifar et Casal de Patre e de alia parte inter Lauandeira et illa strata maurisca sub illas mamolas de Uilella...» − 2 − Mogofores «...et inde per illam stratam mauriscam et inde per illam lacunam et inde ad illos pozos et inde ad aliam lacunam et inde per illam stratam paruam que uadit ad paredes...»

Ora deste último documento infere-se que perto de Mogofores havia duas estradas, uma maior e outra menor, (paruam) sendo a maior a mourisca. E isto está de acordo com os documentos de Pedazanes (Pedaçães − junto do Vouga) P. M. H. − em que se fala em estrada maior «... et de alia parte per estrata maiore − Doc. CCCLXXVIII − «...et diuide per illa strata maiore...»: Doc. DXLIX.

Também precisamente na região de Pedroso, em que os documentos falam em estrada mourisca, diz-se «... et deuidit ipsa uilla qum sexo aluuo a parte mare per strata maiore et alia parte inter acisterio petroso...» (P. M. H., doc. DLXIII). A qualificação de maior seria incompreensível se não houvesse no lugar outra menor. Qualquer dúvida, entretanto, / 17 / [Vol. XIV - N.º 53 - 1948] desaparece em face do documento de Aguada de Baixo:

«... et diuidit ipsa uilla cum uilla barriolo per illa lomba inter ambas illas stratas...» (P. M. H., doc. LXXIII). Neste documento estão marcadas todas as confrontações de Aguada de Baixo, que são ainda as que esta freguesia tem hoje. Pelo Nascente, a linha divisória segue pela encosta de Barrô, até perto desta aldeia, cortando depois em linha recta através do campo até ao Cértima. Era pois nesta pequena encosta de Barrô que passavam duas estradas, seguindo quase no mesmo sentido com pequena divergência entre si. Os romanos não iriam construir duas estradas no mesmo lugar e com o mesmo fim. Uma, certamente, fora feita pelos árabes. Adiante veremos porquê...

Estou convencido de que VITERBO está com a verdade; os árabes em vários lugares modificaram os rumos da estrada construindo partes novas e foram estas que se chamaram mouriscas. Bem sei que logo me surge este embaraço: se assim é, se neste ou naquele ponto existiram duas estradas, como em Aguada e Lamas se encontram vestígios das duas, assim se devem encontrar nessa região entre S. João da Madeira e Gaia. E assim é. Creio que não será difícil ao estudioso encontrar nos documentos e no exame local dados seguros sobre as duas estradas. Já ARMANDO DE MATOS na monografia «As Estradas Romanas no concelho de Gaia» diz o seguinte:

«Têm partido sempre os nossas arqueólogos, que ao Concelho de Gaia dedicam a sua atenção e com este assunto se ocuparam, do princípio da existência de uma só via romana. Devo dizer que, já há muito, desde que, um dia, marquei numa carta do concelho todos os pontos de interesse arqueológico, de que tinha conhecimento, relativos ou relacionados com a época em estudo e que atentei na distribuição da população nestas paragens, me convenci, julgando-a quase indispensável, da existência de diversas vias de comunicação.

Para a política de atracção, desenvolvida pelas romanos, a fim de provocar a vinda dos habitantes dos pontos elevados para a planície, esta só por meio de uma boa e orientada rede de caminhos era possível, enquanto, inicialmente, a sua finalidade imediata fosse de ordem estratégica.

«De resto, tendo presente que os romanos tinham vários tipos de caminhos, distintos pela sua largura e acabamento, como actus, iter, semita, callis, destinados respectivamente à passagem de carros, de cavalos, de peões e de rebanhos, além de tramas e de ambitus, não é descabida esta minha observação.»

«Embora difícil de encontrar, tive a sorte de me vir às mãos uma valiosa planta de todo o concelho, levantada em 1848 por Manuel José do Couto Guimarães...» / 18 /

«Começando a examinar então atentamente tão interessante documento... decidi-me abertamente por uma outra solução, que fortemente se arreigou no meu espírito: não estávamos em frente só de uma estrada importante, mas pelo resultado a que cheguei, tínhamos para já, não uma, senão pelo menos três estradas». E enumera-as:

1.ª − Vinda de Riba UI por Arrifana.

2.ª − Vinda de Brito por Golpelhares, Valadares, Monte, Lameiro.

3.ª − Partia de Pedroso, atravessava a Farrapa, Freitas e Gralheira, e seguia por Santa Cruz da Trapa, S. Pedro do Sul, para Viseu.

Ainda que o rumo dado à segunda estrada não me pareça ajustado à verdade, nalguma coisa o Dr. ARMANDO DE MATOS parece estar certo: a presença, num ou noutro ponto do concelho de Gaia, de duas estradas conduzindo do Sul para o Porto.

O Dr. ARMANDO DE MATOS entende que o grande critério que presidiu à construção das estradas romanas foi o de atender às necessidades dos castros ou centros populacionais e que por virtude dele as estradas, então como hoje, contornavam as montanhas e serpeavam a planície, de modo a servir o maior número. Já disse anteriormente que os romanos procuravam sempre a economia da distância; e o supremo interesse que se propunham servir era o de Roma. Quando as estradas romanas começaram a ser construídas, em tempo de César, a República, agonizante, precisava de todos os recursos do Império para alimentar a corrupção de Roma, a maior que a Humanidade jamais conheceu. As estradas cómodas e rápidas tornaram-se necessárias para conduzir a força que impunha e mantinha a autoridade «central» e levar à grande cidade contribuições e produtos que alimentavam a sua voracidade. A esse tempo já os castros, batidos e humilhados, espreitavam por entre as ruínas das suas muralhas os aldeamentos que os seus antigos habitantes iam semeando pela planície e onde durante quatro séculos vieram a receber todos os influxos da civilização romana.

Quanto à terceira estrada, a que de Pedroso ia a Viseu, através da Gralheira, referir-me-ei mais tarde, quando tratar doutras dentre Douro e Mondego.

O Sr. Dr. AMORIM GIRÃO, no mapa de viação antiga que traz sobreposto ao mapa das Vias de Comunicação e Postos Marítimos (Geografia de Portugal, págs. 366-367) afasta o rumo da estrada antiga, a partir de Coimbra, para ocidente, fazendo-a passar ao poente de Albergaria, em curva leve até Espinho e daí quase pela costa até ao Porto. Não sei em que elementos se estribou. Aqueles que deixo aqui indicados dão-lhe orientação diferente, afastando-a da costa e aproximando-a / 19 / do rio Feveros que vai confluir no Douro quase em frente a Valbom.

Vamos agora ver com mais precisão qual o rumo que tinha a estrada romana no concelho de Águeda, ou melhor, entre Mogofores e Albergaria. Vemos pelo documento de 1143 que em Mogofores havia duas estradas, a Mourisca e a estrada pequena que ia a Paredes. Estas estradas ficavam entre as actuais povoações de Ancas, Mogofores e Avelãs de Baixo «....In oriente quomodo... uertit aquam per illud suber forcatum et inde per illam stratam mauriscam et inde per illam lacunam et inde ad illos pozos et inde ad aliam lacunam et inde per illam stratam paruam que uadit ad paredes...». Este mesmo documento dá a razão das duas estradas: zona de lagoas e poços.

A partir de Aguada de Baixo encontramos ainda as duas estradas «...et diuidit ipsa uilla cum uilla barriolo per illa lomba inter ambas illas stratas»... Já disse que a confrontação das duas freguesias, Aguada de Baixo e Barrô é ainda hoje a mesma, do alto da encosta que sobe do campo para esta última. As duas estradas passavam, por consequência, uma a norte e outra a sul deste ponto. Quer dizer, duas estradas: a romana e a mourisca.

Entre Avelãs de Caminho e Aguada, a estrada mourisca ou voltava a seguir o leito romano, ou dele se afastava pouco. Em Aguada de Baixo começava nova divergência: as duas estradas, atravessando o rio Águeda aproximadamente no local em que hoje está a ponte de Ladiosa, seguiam pela encosta de Barrô: a árabe para Randam, Sardão, Águeda e Mourisca, a velha romana pelo norte de Barrô e Recardães, atravessando o Águeda na direcção de Paredes e daí a Crastovães, Covelas, Lamas, a nascente da ponte velha do MarneI, no local onde foi a velha igreja. Daí ao Vouga, a mais ou menos cem metros a jusante da ponte actual, onde atravessava o rio em direcção à Gândara de Serem. As duas estradas juntavam-se ao meio da lavoura entre Pedaçães e Mourisca. Se os árabes, nos séculos VIII e IX, tiveram de abrir novos leitos em zonas em que a velha estrada estava em más condições, imagine-se como não estaria no século XII.

É possível que a calçada, em muitas das partes em que era ainda aproveitada para o trânsito, já tivesse desaparecido, falando os documentos em vias, pela confusão com estas. E só assim se explica o documento de Recardães de 1103 − «... de uno talio de uinea que iacet in uilla Recardanes et iacet in loco predicto inter illam uiam Sautum et alia uia que uadit pro ad ille rio de Uauga et concludit inter ambas uias (Doc. Med., doc. 102). Esta via que ia ao rio Vouga era certamente a velha estrada romana que de Recardães atravessava o rio para Paredes e daí, galgando a encosta, ia a / 20 / Crastovães − Vouga. A outra via, que se dirigia ao Souto, no Caramulo, era a que, seguindo a margem esquerda do Águeda, ia a Viseu.

O falecido CONDE DA BORRALHA publicou no Arquivo de Aveiro, vol. 5.º, pág. 121, uma lenda sobre a passagem da Rainha Santa Isabel por Águeda, no regresso da sua peregrinação a S. Tiago de Compostela, que encontrou no velho Tombo do Hospital. Diz a lenda: «Esta terra (uma propriedade do Hospital) está na várzea de Recardães pegada ao cômoro de João Tavares, digo, ao cômoro do capitão João Tavares da ponte; arrenda-a o Hospital pelo preço que lhe parece (?). Parte do norte com o rio e do sul com a estrada que vem do Sardão para Recardães e tem dízima a Deus e foi dada pela Rainha Sarna ao Hospital da largura do coche em que vinha de S. Tiago pela estrada do cruzeiro de Paredes por ser naquele tempo a melhor, e passando pela estrada das laranjeiras defronte do dito Hospital, no tempo do estio, em direitura ao Campo limpo já dos frutos até à estrada da Corga, tempo em que não havia quintal de Miguel Henriques da Ponte».

Pondo de parte as inexactidões e ingenuidade da lenda, uma verdade, entretanto, ela contém: Havia uma estrada que do Norte vinha ao Cruzeiro de Paredes, e, se a Rainha Santa Isabel preferiu esta por ser então a melhor é porque havia outra em piores condições. Eram as duas estradas, a velha romana e a árabe, de construção muito posterior. E também na lenda há a referência à estrada que de Recardães ia ao Sardão e de lá ao Souto, como antes disse.

Não tive ainda oportunidade de examinar bem a zona entre Paredes e Crastovães, parecendo-me, entretanto, que, o revolvimento das terras pela cultura e a mão do tempo, apagaram nela todos os vestígios da estrada romana. De Crastovães a Santa Maria de Lamas, na encosta que da estrada de Pedaçães, antes do Mato Crespo, vai à Volta Grande e daí ao velho passal, há ainda vestígios seguros da sua passagem. Era mesmo junto da casa que serviu de residência paroquial, que a estrada atravessava o rio Buoca e o que vinha do Beco, agora reunidos, na vala central. Na margem direita a estrada dobrava a ponte em direcção à Ponte Velha. Neste espaço, o ponto em que a estrada alcançava a margem direita e a ponte, quem se der ao trabalho de sondar a chamada Vala Velha nela encontrará a calçada antiga. Esta vala, na parte próxima à ponte, já desapareceu sob a compressão das terras de arroz marginais, mas a calçada lá está debaixo delas. Ainda nos princípios do século XVI esta calçada estava livre das águas e servia de trânsito aos que desciam de Carvalhal. Diz um documento de 1751 (Tombo do Duque de Lafões) referido a outro documento de 1530, que o reguengo confrontava com a vala velha que corria pela estrada antiga e do / 21 / Aguião com as paredes velhas. Esta calçada tem sobre si uma pequena camada de terra que vai de 0,30 a 1,50 aproximadamente, e no Verão as águas não têm mais que um metro de profundidade, sendo assim relativamente fácil a sondagem. Precisamente nesta zona, do lado direito, ergue-se o Cabeço do Vouga, terminado por dois cones truncados, o Cabeço Redondo e o Cabeço da Mina, sobre os quais outrora se levantaram as muralhas da Alcáçova Maior e da Alcáçova Menor, como ainda lhe chamavam no século XVI. E o povoado luso-romano estendia-se pela encosta, até mesmo junto da estrada onde tinha o seu porto. Muitos alicerces, mós e outros utensílios foram já arrancados, mas lá estão ainda algumas paredes a desafiar a curiosidade dos arqueólogos.

Da ponte, a estrada ia ao Vouga, passando o seu leito por sob as casas dalém da Ponte Velha, seguindo a alguns metros a nascente da estrada n.º 10. A travessia do rio fazia-se, como já disse, abaixo da actual ponte e na margem direita a estrada subia a encosta em recta até à Mala Posta. Nessa zona os vestígios da estrada são evidentes. Na encosta há cortes profundos na pedra. As valetas ainda perfeitas dão-nos a estrada ainda em toda a sua largura. Perto do rio, a ponte, construída no século XIII a nascente, fez desviar um pouco a estrada neste sentido, ficando abandonada pequena faixa a alguns metros da velha estrada até à beira do rio, hoje já tomada pelas terras adjacentes.

De igual modo, na margem esquerda, a estrada vinha, no lugar de Vouga, até à velha casa dos Melos e daí ao rio. Da Mala Posta a Albergaria o leito da estrada seguia paralelo ao actual leito da estrada n.º 10, um pouco a norte. Aquém e além, na depressão do terreno, parece ainda descobrir-se o rumo dela.

Voltemos a Barrô a procurar a estrada árabe, a mourisca maior, como lhe chamam os documentos. Ela vinha pelo alto da encosta ao Randam e daí ao Sardão atravessando o rio no lugar onde foi a ponte velha, para seguir pela Venda Nova à Mourisca. Era em Águeda à estrada das Laranjeiras, como lhe chama o anónimo da lenda de Santa Isabel, atrás referida. A Rainha desceu pela estrada que vinha ao Cruzeiro de Paredes, passou em frente ao Hospital, junto da praça no lugar hoje ocupado pela estrada n.º 10, e dai à estrada das Laranjeiras para atravessar o rio em direcção à estrada dos Corgos, que era a que vinha de Randam.

Aceito a hipótese de Mourisca ser o nome da estrada feita pelos árabes, em oposição à romana que lhe passava perto, pelo noroeste. Mais tarde, quando se formou o povoado, o nome passou a este, desligando-se da estrada, que passou a chamar-se Coimbrã. Era este o seu nome, ao menos no principio do século XVI. (Tombo dos Lemos da Trofa − inédito).
/ 22 / Da Mourisca, a estrada, a norte da actual rua, ia encontrar a romana, antes de Pedaçães, por alturas do Serrado da Gata, onde acabava. A estrada velha, que neste lugar ia pelas Covas à Ponte Velha, deve ser de construção posterior, talvez coeva da construção da ponte.

Nos documentos já referidos, de 1050 e 1077, são dadas a Pedaçães as seguintes confrontações: «Padazanes ad integro per suos terminos quomodo diuide cum christouannes et cum couellas per illo fontano cum suo molino et illo fontano discurre pro ad uauga per ut illo diuidiui cum maiorinos de rex domno fredenando et de alia parte per estrata maiore. et de alia parte quomodo diuide cum lamas per illa coua de illo sauuqueiro de ripa de uauga» (Doc. de 1050) − «...padazanes quomodo fui illa de ille comes domno didago et diuida per illa strata maiore et de alia parte diuide per illo termino de sancta maria de lamas e de alia parte cum crestoualanes et cum couelas per illo fontano que discurri pro ad uauga cum suo molino sic ganaui eam ad integro. et de auolengo medietate de sancta maria de lamas quomodo diuide cum padazanes...». (Doc. de 1077).

Quer dizer: Pedaçães confrontava com Crastovães, Covelas e o Ribeiro que corre para o Vouga. Estes lugares ficam pelo sul e poente. Doutra parte confrontava com Lamas ou com o termo de Santa Maria de Lamas. Esta povoação fica ao norte. Por outro lado confrontava com a estrada maior. Esta só podia passar pelo nascente. E assim era. Correndo a sul da actual rua da Mourisca, além do largo da capela, ia encontrar o velho leito romano, no meio da actual lavoura, que naquele tempo era floresta e mato, onde viviam tranquilos os lobos e os ursos.

A vila de Pedaçães antiga teve o seu assento a norte das actuais terras do Agro, constituindo este campo a sua principal zona de cultura. Neste mesmo lugar ainda hoje se encontra a principal parte do povoado. A estrada velha que ia a Vouga não pode ser a estrada maior, pois servindo esta de limite à vila não pode atravessá-la.

O Sr. JOAQUIM DE SOUSA BAPTISTA, da Arrancada, fez um estudo sobre as estradas romanas no concelho de Águeda. As estradas que refere serão, umas, as antigas vias pre-romanas, e outras, mais recentes, virão da dominação árabe ou já dós primeiros tempos da monarquia. Havemos de abordar este assunto, depois de tratarmos das outras estradas romanas que vinham entroncar com a de Coimbra ao Porto.

Rio de Janeiro.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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