É
ABUNDANTE a literatura sobre as estradas romanas no distrito de Aveiro.
Infelizmente, a maior parte das conclusões a que se chegou tem o seu apoio em simples conjecturas, faltando-lhes, por consequência, a
força convincente da verdade. A falta de testemunhos arqueológicos ou
documentais, a tradição deturpada e desviada do seu curso natural pela sobreposição de camadas
sociais de culturas inferiores e diversas da romana, a toponímia em obscuro amálgama, como reflexo da multiplicidade
de línguas, crenças, costumes e actividades dos povos que
habitaram o solo pátrio, criaram, naturalmente, ao estudioso, dificuldades insuperáveis que o forçam a buscar na
imaginação os elementos necessários aos seus raciocínios. Daí resultou muita literatura e pouca história.
Poderão dizer que o retorno ao assunto, se prevalecem as causas da dificuldade, nada mais é do que a continuação do mesmo sistema conjectural, sem nenhum proveito para
a verdade ou interesse para os leitores, já cansados de divagações e fantasias. Não deixam estes críticos de ter razão, se bem que a não têm toda; cada um que vem a público com
suas descrições, traz sempre alguns elementos novos, algum
documento, monumento, topónimo, acidente geográfico ou
tradição que interessam à verdade histórica, e é com estas
migalhas, juntas, ordenadas e interpretadas por oficial de ofício
que a mesma verdade terá que ser reconstituída.
O que vou dizer sobre as estradas romanas entre Coimbra e Porto, e especialmente no concelho de
Águeda, tem
o significado de pequena contribuição ou interpretação nova de material velho com apoio num ou noutro elemento ainda
não conhecido, ou, ao menos, não estudado. Ao abordar as opiniões alheias não tenho a pretensão de as combater ou de
as subestimar, senão a de fazer luz à volta delas, para que se
possa ir fixando a distância a que todos estamos da verdade.
/
4 /
Também não é novo o método. AMORIM GIRÃO parte da toponímia à contra
prova pelo exame directo e pelos documentos medievais publicados
(Geografia de Portugal, pág. 365). O Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA (Arq.
do Dist. de Aveiro, n.º 33) e ARLINDO DE SOUSA (Arq. do Dist. de
Aveiro, n.º 31)
seguem a mesma orientação. Também trilho o mesmo caminho, mudando apenas
o sentido: da toponímia documental à toponímia actual e exame local.
Entre os romanos, as vias de comunicação tinham os
seguintes nomes:
VIA
− Termo que, de uma maneira geral, abrangia todos
os meios de comunicação terrestre, mas especialmente só os caminhos
largos não empedrados, que estabeleciam as comunicações entre as
cidades e províncias, e bem assim as ruas das cidades − ltaque ante diem
tertium Idus Novembr. −
cum Sacra Via descenderem (Rua de Roma pelo lado sul)
(CÍCERO, Choix de Lettres, pág. 65).
ITER
− que também se usava genericamente, tinha mais
o significado especial de rumo, orientação, caminho. CÍCERO,
a caminho da sua província, escreve ao irmão, de Tralles: «Nunc iter conficiebamus aestuosa et
pulverulenta via».
ACTUS
− carral − caminho de carro.
SEMITA
− caminho de pé.
TRAMES
− atalho.
STRATA
− era a via empedrada − via pública − lapidibus seu silice munita (DUCANGE); mas nos séculos posteriores o termo
strata adquiriu independência para traduzir por si só as vias
construídas de pedra segundo a arte que os
romanos aprenderam dos cartagineses (... id est lapidibus
strata quam prius Poeni post romani per omnem pene
orbem disposuerunt propter rectitudinem itinerum, et ne
plebs otiosa esset) (Vocabulário de PAPIAS citado por
DUCANGE).
Algumas vezes a estrada era qualificada de régia, certamente para lhe
marcar a excelência sobre todas as outras vias − «Strata publica quae
apellatur via regia».
CÉSAR CANTU descreve assim as estradas romanas
− «As
maiores tinham cinco metros de largura; começava-se por
traçar dois regos que indicavam a largura da estrada; depois
cavavam o intervalo e feita a escavação, enchiam-na com
materiais apropriados, até à altura conveniente; conforme a
estrada atravessava planícies, montanhas, ou terrenos de aluvião.
BESQUER cita estradas romanas em França elevadas do
solo 6,50. A camada inferior (statumen) era formada por pedaços de pedra
ligados com cal e areia; a segunda camada (rudus) era de cascalho
misturado com cal; a terceira
(mulens) compunha-se de uma mistura de cal, argila e terra,
/
5 / e algumas vezes de seixos de cimento; sobre a terceira camada
era disposta a quarta (sumum dorsum−summa crusta) formada de calhaus de pedras chatas cortadas em polígonos
irregulares ou em esquadria. Às vezes, em lugar da quarta camada, havia uma mistura de seixos miúdos e cal. Também substituíam este cimento por argila; empregavam, porém,
sempre o mesmo número de camadas que batiam com massos ferrados, tornando-as por este modo mais sólidas e compactas.
(Hist. Universal, voI. IV, pág. 397, liv. 50),
Ora convém aqui definir, com rigor, o campo do
nosso
trabalho. É destas estradas, isto é, das vias empedradas, e
só destas, que nos ocupamos; estas, sabemos nós que são romanas ou
posteriores ao seu domínio. Quanto às outras vias nada podemos afirmar,
porquanto a maior parte delas
vem do fundo dos tempos, de muitos séculos antes que os
romanos chegassem à Península. Muitos escritores têm feito grande confusão destas vias; atribuindo aos romanos todas
as que, pelos sinais ainda patentes, lhes parecem vir de tempos antigos. E desta forma cada um vai apontando à sua
paróquia ou concelho caminhos velhos pelos quais procura
ligá-los às gloriosas tradições da cultura romana. E procuram firmar-se ainda em dados históricos, pela suposição
de que as numerosas nações que habitavam a Península,
vivendo vida separada ou com poucas relações, não tinham necessidade de vias de comunicação. Penso que a verdade não está com
estes. Embora os povos mantivessem entre si
poucas relações e até se fizessem guerras frequentes, a condição errante destes povos durante muito tempo, as necessidades
impostas pelas mesmas guerras, rasgaram na Península grandes vias de
comunicação que permitiam a deslocação das tropas de um a outro extremo
dela, como se viu com Viriato
e Sertório. Acontecia até o mesmo que sucedia na Gália,
onde Júlio César encontrou caminhos que lhe permitiram
transportar as suas tropas e bagagens até à Bélgica, fazendo por vezes
percursos diários de algumas dezenas de quilómetros em regiões onde os romanos não haviam antes chegado.
Isto só lhe foi possível, sobretudo nas plagas alpinas, por ter
encontrado vias de comunicação já relativamente fáceis.
É, portanto, temerário atribuir aos romanos todas as vias só porque
têm indicações de antiguidade; elas podem vir de
muitos séculos antes deles.
Parece assente que antes de César não havia estradas na
Lusitânia, e que foi este que começou a sua construção nos meados do
último século antes de Cristo. A construção
tomou largo incremento com Augusto quando da sua estada
na Península, em 26.
Outros imperadores, no decorrer do primeiro e segundo
séculos, conservaram e melhoraram as estradas feitas e construíram
/ 6 / muitas novas, mas foi sobretudo com Trajano,
natural
de Córdova, e seu filho Adriano, que a Espanha alcançou o seu apogeu. A
partir do século II a Espanha entrou em decadência. É natural, porém,
que no correr dos dois séculos seguintes até à invasão bárbara, outras
estradas se construíssem, não reclamadas já pelas necessidades da defesa militar, mas pelas do tráfego crescente pelo desenvolvimento
demográfico.
Costumavam os romanos colocar à beira das estradas,
de milha a milha, marcos mostrando o número delas de estação a estação, tal como hoje se faz, mudada apenas a unidade para quilómetro. E chamaram estes marcos
miliários. Muitos chegaram
até nós e são inegavelmente elementos valiosos, ainda que não
absolutamente seguros, na determinação do rumo das estradas.
O Itinerário de Antonino é considerado a obra geográfica mais valiosa
que a antiguidade nos legou. Ainda que simples indicação de lugares e
distâncias, dá-nos, contudo,
o fácies do Império romano e deixa-nos compreender a grandeza do esforço
necessário para o manter. Nele estão indicadas as estradas que sulcavam
o solo do nosso Portugal. Estarão, porém, ali mencionadas todas as
estradas existentes
ao tempo da invasão bárbara no território peninsular? Penso que não. O
Itinerário, ou fosse publicado por Antonino ou
por Marco Aurélio, é obra da segunda metade do século II e
apoiou-se nos comentários de Agripa que, por sua vez, compilava os
resultados dos trabalhos geodésicos ordenados em 44 a. C. e concluídos
na segunda década do século I.
O Itinerário não podia, portanto, inicialmente, referir-se senão às
estradas abertas à data da sua publicação. Fizeram-se
reformas neste Itinerário, sendo a última ordenada por Teodósio, o
grande, em 435 − isto é, quando a Espanha estava
já, na maior parte, sob a denominação bárbara. Qual foi a extensão e
natureza destas reformas? Incluíram todas as estradas abertas depois da
sua publicação? Se atentarmos bem nas que o Itinerário refere e nas
mais que os documentos e vestígios de significado incontroverso nos
revelam,
temos de concluir que o Itinerário só mencionou as que
estavam prontas à data da sua publicação, ou só aquelas cujos estudos
estavam feitos ao tempo em que foi elaborado. Para a reconstituição
actual do trajecto das que refere, o Itinerário é inquestionavelmente um
documento valiosíssimo, não só pelo que directamente dele se infere, mas
ainda pela força que empresta ao argumento deduzido da documentação
medieval, como veremos.
Nenhuma prova se nos apresentou, até hoje, de que os godos se tenham
preocupado muito com as vias de comunicação ou de que tenham feito
alguma construção nova.
/
7 /
No Código Visigótico
apenas descobrimos duas leis de defesa das vias públicas. − Forum Judicum
− Lib. VIII − Tit. IV − Lib. XXIV − «De damnis iter publicum concludentium»
− Lib. XXV − «De servando spatio
justa vias publicas».
Os árabes habitaram o solo português durante séculos. Duvida-se hoje de
que eles tenham construído novas estradas. Para o nosso estudo esta
questão é da máxima importância, pois se nenhumas fizeram, todas as que
nos revelam, os documentos são de origem romana; se construíram, temos
necessidade de saber quais, para atribuir aos romanos as restantes.
Inclino-me para a afirmação que dá aos árabes a autoria de algumas das
estradas antigas e adiante direi porquê.
Na documentação medieval dos séculos IX ao XIII a terminologia das vias
de comunicação terrestre enriqueceu-se de termos novos − além de via
− strata − iter − aparecem-nos, com frequência, entidades novas:
carraria − carral − carril − vereda. Correspondem estes termos, de facto, a entidades novas, ou são apenas novas designações dos caminhos
antigos? Penso que se trata apenas de mudança de nomes.
Carraria − karraria − kararia
− carreira − é o caminho
que dá passagem aos carros e serve também ao trânsito
de peões e cavalgaduras entre povoados ou mesmo entre cidades.
O que distingue a via da
carraria é a largura e a extensão, porque a
via é em geral mais larga e de mais longo
percurso, fazendo a comunicação entre cidades e províncias.
Aí vão alguns exemplos:
933 − «... per carraria maiore que discurrit ad ciuitate
conimbrie...» (P. M. H., Doc. XXXIX).
973 − «... et trauce illa karraria que vadit ad illa
marmeleira usque fer in illa karraria de illa uimeneira...».
(P. M. H., Doc. CVI).
1034 − «... quomodo discurre per illam carrariam antiquam que uadit pro ad illum pontem petrinum...»
(P. M. H.,
Doc. CCLXXXVII).
1036 − Braga − «... in directo et fere in illa carraria de
agro de petro...» (P. M. H., Doc. CCLXXXXI).
1043 − Cerzedo − «... et in illa kararia
que discorre de
illo canbpo... (P. M. H., Doc. CCCXXVM).
1083 − Cinfães − «...ad illa portella iusta kararea que
uadi pro ad riu...» (P. M. H., Doc. DCXV).
1127 − Viana do Castelo − «... per terminum antiquum,
quem vocitant carraria et venit ad Cardos...» (Chanc. de Af. Hen., Doc. n.º
1).
1161 − Gaia − «... fert in carreriam quae venit de Gaya...»
(Chanc. Af. Hen., Doc. 192).
/
8 /
«Estabelecendo que se alguma carreyra publica é destruida na testeyra de
alguma herdade e o senhor da herdade a nom quer
mandar tapar vaan pela herdade sem coomha nenhuma. (L. Af. III P. M.
H.).
Por estes exemplos se verifica que
carraria tanto conduzia à cidade, ao povoado, como ia à ponte, ao rio, ao campo. Nos documentos do século IX, X e XI,
carraria é frequente. Carrale parece ter a mesma significação de carraria, porque, como esta, conduz à cidade, ao povoado, ao
campo, à ponte, etc. Comparando o primeiro exemplo que dou a seguir com o primeiro antes dado para carraria, verifica-se que a carraria que conduz a Coimbra, é a mesma
carrale que conduz à mesma cidade.
968 − Vilela − «...et de alia parte carrale que discurrit
ad ciuitas conimbrie... (P. M. H., doc. XCV).
998 − «...in ripa de mondego de azenia usque in carrale que uadit ad illo barco...» (P. M.
H. doc. CLXXIX).
1047 − Gemunde − (... et lebe se de caral que uai at
ille porto...» (P. M. H., doc. CCCLIX).
1085 − Arouca − «...subtus illa carral que ducit de uilla
sancti petri de arauca in directo ad uilla que dicent uilllare...» (P.
M. H., doc. DCXLVI).
1087 − Arouca − «... in derecto per illa carrale et per
illo uallado...» (P. M. H., doc. DCLXXXIV.
1101 − «...inde per carrale antiqua...» (Doc. Med., doc. n.º
14).
1137 − Tondela − «...et intrat per illud carral que uenit de tondela...» (Chanc. Af. Hen., doc, 76).
De carraria veio carreira que nos séculos XII e XIII quase desaparece
com a significação própria, sendo entretanto frequente com a de peregrinação, viagem, serviço de
transporte que os enfiteutas ou vassalos eram obrigados a fazer para o seu senhor.
Nos forais de Tomar e Ozezar
− 1174 − Pombal, 1176 −
Torres Novas, 1190 − Figueiró − 1204, há uma disposição protectora das vias de comunicação pela qual se proíbe «taliar cum
valIo carreiras vel stratas».
De carral veio o nosso carral de uso ainda frequente
para significar o caminho de carro. Em todos os exemplos
dados, carral é feminino certamente por influência de carraria.
Todavia no documento 1137 «... et intrat per illud carral
que uenit de tondela...» parece haver já uma forma masculina, pois de
outro modo o notário teria escrito illa carral.
Carril é raro, e, embora tivesse primitivamente designado
também o caminho de carro, só se usou, mais tarde, para os caminhos de
pé.
1140 − Santa Marinha de Panoias
− «... per illo caril de
terra freita...» (Chanc. Af. Hen., doc. 95).
/
9 /
1175 − Leiria − «...deinde per uetus carril de cima de
barra... deinde per viam, que uenit de leirena... deinde
per illud carril uetus...» (Chanc. Af. Hen. doc 234).
Via conserva nos séculos da reconquista a mesma significação que tinha entre os romanos e os godos: caminhos longos não empedrados, que punham em comunicação as
cidades e as províncias e também os que nós hoje chamamos ruas.
972 − «... et pergit per montes inter illa uia antiqua et
illo uallo...» (P. M. H., doc. CIV).
974 − Santa Comba − «... per lomba que diuidet com
termino de trexete ubi est uia antiqua...» (P. M. H., doc. CXIV).
1034 − Entre Ave e Cávado − «... et de illa incruziliada
comodo avit illa via ante illa porta de illo kasal de Danila...»
(P. M. H., doc. CCLXXXVI).
1083 − Porto-Coimbra − «...in septemtrione
uia puplica...» (P. M. H., doc. DCXXIV).
Carreira e via não se confundem nos documentos.
1083 − Arouca − «... in uilla minianos et inde diuidet... per carraria antiqua inter iugarios et nouales... et
inde per uia antiqua... (P. M. H., doc. DCXXXIX).
1086 − Rua do centro de Coimbra
− «... emit unam cortem... Ad orientem
atrium australem de sancte marie. Ad occidentem habitationem domini
cipriani Ad meridiem uiam publicam... (P. M. H., doc. DCXXX).
Nos séculos XI e XII, à medida que se refazem as populações ao norte do Mondego, definitivamente livres das guerras da reconquista, novos povoados nascem, restauram-se as cidades e
entre uns e outros se desenvolvem as comunicações, aproveitando-se as antigas e fazendo-se novas. É por
isso que nos documentos destes séculos nos aparecem com
larga frequência − via, via pública, via antiqua, via mourisca, indicando
os caminhos de largo percurso.
1088 − Coimbra − «... terra ex his ultra mondecum flumen que prius tempore maurorum ortus de iben aropolIo uocabatur... Est ei in oriente publica uia que ducit ad sanctaren....»
(P. M. H., doc. DCC).
1088 − Douro − «...per illa uia usque a sancto ioanne...» (P. M. H.,
doc. DCCVII).
1089 − Beira − «... et mons usque ad uiam...
ln meridie
uia puplica» (P. M. H., doc. DCCXXV).
1090 − Coimbra − «... in oriente uia puplica que uacarizam...
ln occidente uia de uimearie... Ad septemtrionem... per illa uia
coua...» (P. M. H., doc. DCCXLI).
1091 − Monte-Mor o Velho − «.. .iuxta uiam que ducit ad ciuitatem...» (P. M.
H., doc. DCCLXIII).
1103 − Águeda − «...de uno talio de uinea que iacet in
villa Recardanes et iacet in loco predicto inter illam uiam que
/
10 /
uadit ad íllam uillam Sautum et alia uia que uadit pro ad ílle rio de
Uauga et concludit inter ambas uias...» (Doc. Med. doc. 102).
1139 − Coimbra − Limitação da Paróquia de Santa Cruz
− «... Ab aquilone uero uersus orientem terminus descendit per uiam
antiquam...» (Chanc. Af. Hen., doc. 90).
1163 − Montemor − «...et uia publica que uadit ad portum de laurizaI...»
Chanc. Af. Hen., doc. 195).
O exame dos documentos medievais mostra que
strata, ao contrário de via,
carreira, só aparece relativamente em poucos deles e estes,
confrontados, revelam ainda que nas regiões atravessadas pelas estradas
mencionadas no Itinerário de Antonino, a palavra strata só é usada
para significar estas
vias e, de tal modo, que esta entidade nos aparece perfeitamente
caracterizada por si só, sem necessidade de qualquer outra indicação.
Em nenhum documento a entidade
strata se confunde
com qualquer das outras, havendo alguns em que concorrem as três − strata
− carraria − via.
Estas circunstâncias levam-me à convicção de que o termo
strata dos documentos compreende apenas as vias calçadas. E se
estas só foram feitas pelos romanos, onde os
documentos mencionarem strata, aí temos um sinal seguro para determinar o
seu rumo.
As vilas, casais, leiras, campos, que figuram nos referidos documentos
podem, ainda hoje, num grande número de casos, ser rigorosamente
identificados e localizados em face
das confrontações que ali lhes são atribuídas. Feito este trabalho, se é realmente certo que a palavra
strata só designa as vias
empedradas, o que creio, está logicamente descoberto o processo para
traçar sobre o mapa actual todo o sistema das estradas romanas ou
árabes.
AMORIM GIRÃO publica na sua
Geografia de Portugal, em desenho sobreposto ao mapa colorido das
modernas vias
de comunicação, o sistema de estradas romanas que ele organizou e assim
justifica: «Sem nos preocuparmos muito com os esquemas já conhecidos e
visivelmente incompletos, baseamos esse traçado da toponímia local
coligindo todos os
nomes de lugar como calçada, estrada velha, estrada mourisca,
estrada, via, corredoura, carreira, carral, carril, e respectivos
compostos e derivados. Procuramos contraprová-lo em numerosos casos com
o que da velha rede de estradas ficou no terreno ou nos documentos
antigos até agora publicados: e num pequeno esboço ao lado mostramos
ainda a maneira como se fazia o entroncamento das suas linhas maiores
com as que cruzavam o solo Ibérico». (Pág. 365).
Com o devido respeito pelo sábio professor, parece-me
que os topónimos via − corredoura − carreira − carral
−
/
11 / são
indicações pouco seguras que podem levar a conclusões menos verdadeiras. Via, abrange caminhos que vêm de tempos anteriores
aos romanos, alguns feitos por estes, e ainda outros feitos
posteriormente. Não pode, portanto, servir para identificar uma
espécie.
Calçada, corredoura, são palavras relativamente
novas, que tanto podem
ter sido aplicadas a factos anteriores como a posteriores ao seu
aparecimento. Por toda a parte se encontram estes topónimos. Se eles realmente tivessem relação com as
velhas estradas romanas, teríamos, sobretudo a região entre Douro e
Mondego, juncada delas.
«Carraria, − ensina SERAFIM NETO,
− com todos os seus derivados vem sem
dúvida de carrus-i ou carrum-i, palavra gaulesa incorporada ao latim e
cedo difundida por todo o Império. Significava o carro de duas ou
quatro rodas, que servia para transporte, de mercadorias e, na guerra,
para transporte de bagagens e máquinas. Os escritores militares usam-na
com frequência. Esta palavra teve larga família de derivados:
I − Carruca − veículo
de luxo com ornamentos de bronze, marfim, prata ou
ouro, onde se podia até dormir. Todavia na lei sálica designa uma
espécie de arado. Não há certeza se se trata duma evolução do sentido,
ou de uma palavra diferente. Deste significado resultou o francês
charrue, donde q português charrua».
II − Carrago-inis −
entrincheiramento feito com carros
de bagagens.
III − Carracutium-ii
− carro de duas rodas muito altas.
IV − Carrucarius-ii − cocheiro da carruca».
Entretanto os vocabulários latinos não documentam carrária, nem a palavra se encontra nos escritores até ao século
V. Esta
circunstância parece-me prova evidente de que a sua formação só se fez
depois daquela data, isto é, depois que os
godos, e sobretudo os suevos, generalizaram na Península, na linguagem
popular, o uso da palavra carrus. É, portanto, uma palavra, posterior à
dominação romana e, por isso, de, pouco valor na identificação das
estradas romanas.
Já dissemos do valor de carraria
− carral − carril, a este respeito.
Passo agora a transcrever as passagens dos documentos relativos à região
de entre Douro e Mondego, ou entre Porto e Coimbra, para em seguida
determinar com
mais precisão o rumo da estrada romana no concelho de
Águeda. O exame geral destes documentos dá-nos o sistema
de estradas de toda a região. Para maior clareza ponho de lado a ordem
cronológica, começando pela estrada Conimbrice − Cale − (Condeixa-Porto).
1079 − Antanhol − «...et cum suo monte per illa strada...». (P. M. H., doc.
DLXVIII).
/
12 /
1080 − Antanhol − «...et cum suo monte per
illa strada...»
(P. M. H., doc. DLXXXVI).
1080 − Antanhol − «...in loco predicto in antoniol in illa strata qui
discurre de sancti iusti pro ad colimbria...»
(P. M. H., doc. DCXXXXI).
Por estas indicações se vê que a estrada romana, partindo de Coimbra
(Condeixa-a-Velha) não seguia o actual curso da estrada n.º 10, mas vinha
pela vertente oposta, de poente, para atravessar o Mondego abaixo da
actual ponte de Santa Clara.
1101 − Coimbra − Vilela − «... ereditate inter Gueifar et Casal de Patre
et de alia parte inter Lauandeira et illa strata maurisca sub illas
mamolas de Uillela...» (Doc. Med. doc. 29).
1018 − Botão − «... et diuidet cum marmeleira per illo kasal de olpinos
et perge ad illa strata que discurre iuxta oleaster et perge per illa
strada usque in illo ribulo...» ( P. M. H., doc. CCXL).
1101 − Mealhada − «... de uilla Moroganus qui est inter Almahala de
Rei et Certame et strema illa uilla per illo porto de Ventosa et ueni
usque ad illa strada maurisca ... ad oriente uilla Aquilin... ad
aquilone uilla Stamengus ad Affrica uilla Canizales (Doc. Med. doc. 17).
1143 − Mogofores − «... et inde per illam stratam mauriscam et inde per
illam lacunam... et inde per illam stratam partiam que uadit ad paredes...» (Chanc.
Af. Hen., doc. 125).
957 − Aguada de Baixo − «... et diuidlt ipsa uilla cum
uilla barriolo per illa lomba inter ambas illas stratas...» (P. M. H.,
doc. LXXIII).
1050 − Lamas − Pedaçães − «... Padazanes ad integro per suos terminos quomodo diuide cum christouannes et cum couellas per illo fontano cum
suo molino et illo fontano discurre pro ad uauga per ut illo diuidiui cum maiorinos de rex domno
fredenando, et de alia parte per estrada maiore
et de alia parte quomodo diuide cum lamas per illa coua de illo sauuqueiro
de ripa de uauga...» (P. M. H.,
doc. CCCLXXVIIl).
1077 − Pedaçães − Lamas − «... padazanes quomodo fui
illa de ille comes
domno didago et diuide per illa strata maiore et de alia parte diuide
per illo termino de sancta maria de lamas...» (P. M. H., doc. DXLIX).
1118 − Albergaria a Velha −
«...deuide sicut currit − strata usque... et inde de ipsa prima fonte de sub strata... in loco
isto de super strata... fonte prima de sub-strata (Doc. pub. por JOÃO
PEDRO RIBEIRO nas Dissertações Cronológicas).
1088 − S. João da Madeira − «...quomodo
conclude per illa strata de justa
illa ecclesia de sancti ioanni...» (P. M. H.,
doc. DCCIV).
/
13 /
1122 − S. João da Madeira − «...desde illa
strada mourisca ata illa ueneiro...» (Arq. de Aveiro, voI. 2, pág. 67).
1145 − Azevedo − «... in villa dicta
azevedo subtus illam stratam mauriscam... (Arq. de Aveiro, voI. 4, pág. 26, cit. por JOÃO
DOMINGUES AREDE).
1148 − Sermonde − Brantães − «... subter illam Stratam
Mouriscam...» (Anais do Município de Oliveira de Azeméis,
págs. 13 e 14, cit. por JOÃO DOMINGUES AREDE no Arq. de Aveiro, voI.
4. pág. 25).
1078 − Paradela − R. Feveros
− «...et deuidit ipsa uilla qum sexo aluuo a
parte mare per strata maiore et alia parte inter acisterio petroso...» − (P.
M. H., doc. DLXIII).
1087 − Pedroso − «...in
viilla billanes subtus castro petroso discurrente
riuulo cerzedo territorio portugalensi sub illa strata propre littus
maris (P. M. H., doc. DCLXXV).
1096 − «...in uilla dicta eldiriz subtus monturelo
discurrente riuulo feuerus... super strata» (P. M. H., doc. DCCCXLIl).
1098 − Pedroso − «... dou atque concedo ad loci illius sancti petri
illas hereditates quantas ganaui cum uiro meo des durio in uauga siue
super strada cornodo subtus illa strada... et habent iacentia in
territorio castro portela et
ciuitas sancta maria...» (P. M. H., doc. DCCCLXX).
1101 − «...ipsa hereditas in Resmaa subtus monte Ordoni discurrente
riuulo Feueros territorio Portugal et est super illam stratam...» (Doc. Med. doc. 48).
1102 − «... in uilla Dragoncelli subtus monte Saxo Albo discurrente
riuulo Feueros... super illam stratam...» (Doc.
Med. doc. 76).
1109 − «... in uilla Ramiri et Ordoni... discurrente
Feueros... super illa strada...» (Doc. Med. doc. 344).
1112 − Pedroso − «... discurrente riuulo Cerzedo... sub illa
strata in uilla Brito... exparte cum Villa Plana et cum Spino et de alia
parte cum Sancto Felice...» (Doc. Med. doc. 403).
1128 − Carta do Conto de Pedroso
− «...dahi a Porto
Carreiro e vai ter a estrada...» (Chanc. Af. Hen. doc. 10).
1147 − Gaia − «... desde o Porto Caneyro e dahy pela
Pena de Corvo e desde ahi pela estrada velha que vae a João Gignes...
até o Porto da Ponte de Valgias c dahy pela mesma
estrada (Chanc. Af. Hen. doc. 144).
Esta série de indicações dá o traçado da estrada entre Condeixa-a-Velha
e o Porto. − O estudioso que queira dar-se ao trabalho de identificar
todos os lugares mencionados nos documentos referidos, poderá traçar
sobre o mapa o rumo
rigoroso da velha estrada romana, e então verá quanta razão há naquelas
palavras atrás referidas em que PAPIAS dá as razões das construções das
estradas: «... propter rectitudinem itinerum...». De facto, colocando a régua sobre Condeixa-a-Velha
− Antanhol (encosta a nascente) − Coimbra −
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14 /
Vilela − Mealhada, Mogofores − Avelãs − Aguada de Baixo − Recardães − Lamas
− Albergaria-a-Velha − Oliveira de Azeméis − S. João da Madeira − Sermonde
− Gaia − não podemos deixar de admirar a
grande aproximação da linha recta. Esta
economia de distância só pôde ser alcançada com o sacrifício da comodidade, com subidas e descidas que os nossos
actuais meios de transporte não suportariam. As pequenas curvas são determinadas apenas pela necessidade de passagens mais fáceis nos rios
ou para evitar vales profundos e encostas abruptas onde a construção
seria impossível ou ao menos excessivamente dispendiosa.
A construção das estradas modernas obedece a princípios muito
diferentes, sacrificando a economia das distâncias à economia dos
gastos e sobretudo às necessidades dos actuais meios de transporte. Não
alcançam as alturas galgando as encostas em linha recta, mas serpenteiam-nas alongando-se em curvas de
inclinação suave. E é por esta razão que será sempre trabalho baldado
procurar os leitos das velhas estradas romanas sob as actuais ou a
correr-lhes sempre paralelas.
Podem seguir a mesma zona, mas aqui se combinam, lá divergem, convergem
ou se cruzam. Entre S. João da Madeira e
Porto é grande o número de documentos em que nos aparece a referência
estrada. Deles resulta alguma confusão, porque
uns só falam em estrada, enquanto outros dizem estrada mourisca e um
estrada maior e outro ainda estrada velha. Quererá esta
divergência significar que os árabes tinham construído alguma estrada
nesta região?
O Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA publica no voI. IX, fasc. 33
do Arquivo de Aveiro, um estudo interessante − De Talábrica a Lancóbriga pela via Militar Romana
− onde diz: «− a propósito
do lugar de Azevedo (S. Vicente de Pereira) deparou-se-nos a primeira
menção de estrada mourisca, em documento de Grijó.»
«Como iremos agora encontrar frequentes alusões a essa
estrada, convém precisar o sentido de tal designação.»
«É bem conhecida a
designação dada por VITERBO: − chamou-se Estrada Mourisca, porque os
Mouros a romperam, deixando, talvez já por
invadiável naquele tempo, a Estrada
Romana, ou Via Militar... Com o rodar dos anos a costa se entupiu, e
alteou por causa das areias, e os rios estagnados não só esterilizaram
os campos, mas também fecharam a
passagem dos caminhos. Daqui se fez indispensável a presente Estrada
Mourisca...»
«Ninguém sabe onde o autor do
Elucidário colheu notícias de semelhante catástrofe, mas é fora de dúvida que ele se
equivocou distinguindo o traçado da via romana do da estrada mourisca. Por um lado, não consta que os Mouros se ocupassem
em trabalhos deste género e, por outro, não
/
15 / se compreende que se abalançassem a obra tão arrojada sem
terem ao norte o domínio de um núcleo importante de população sua, com o
qual fosse indispensável manter ligações.»
«Ainda que pudesse relacionar-se com eles uma porta mourisca em Coimbra
(RUI DE AZEVEDO, Documentos falsos de Santa Cruz de Coimbra, pág. 78) dificilmente se lhes poderia atribuir uma «carraria maurisca» que um
documento de 953 nos dá para os lados de Vila do Conde, em território
onde se não exerceu por muito tempo a ocupação muçulmana. (Dipl., n.º
67).»
«Qualquer que seja a explicação do nome, a estrada que
nesta região se chamava mourisca, era a própria via romana.»
Não posso concordar com o Sr.
P.e MIGUEL DE OLIVEIRA.
Na verdade, não se sabe onde VITERBO foi colher que os árabes construíram nova estrada por estar arruinada a romana e alagados
os terrenos por onde esta passava. O desconhecimento da fonte autoriza a
pôr reservas à afirmação de VITERBO,
mas não autoriza a declará-la falsa, negando assim probidade ao seu
autor.
Eu acredito que VITERBO tivesse lido algures aquela notícia, mas porque
não revelou a fonte, fica-nos apenas o argumento de autoridade, que é
realmente fraco, sem deixar de ser um argumento. Este, com outros
argumentos que facilmente se colhem, se nos não mostram rigorosamente a
verdade, dão-nos, entretanto, uma forte presunção dela.
Não foi tão curto o período da dominação pacífica dos árabes na região
entre Douro e Mondego. Sabemos que em 718, quando se travou a batalha de Covadonga, os árabes eram senhores de toda a Península, com excepção das
Montanhas Asturianas. E esta situação prolongou-se durante os reinados
de Pelágio e seu filho Fafila. Afonso l fez incursões na Galiza até ao Douro, mas estas não lhe deram
nenhuma posse sobre as regiões invadidas. Em tempo de Ordonho l, morto em 866, o poder dos cristãos ainda se não estendia
além do Minho. Só com Afonso III é que o reino cristão se dilatou para
além do Douro, atingindo Coimbra.
Estava-se no fim do século IX. Tinham corrido perto de dois séculos
depois da invasão, e tão longo espaço de tempo foi bastante para que os
árabes nos pudessem deixar traços evidentes não só da sua passagem como
da sua forte ligação à terra. Provam-no as inúmeras povoações que
conservaram nomes seus. Não há, pois, razão para que o culto sacerdote
estranhe o aparecimento da carraria maurisca num documento de 953, de
Vila do Conde. Testemunha nesse documento Jaffar Sarraciniz, 'que
certamente não era godo.
Também não me parece muito acertado dizer-se que os árabes não teriam
grande interesse em conservar, melhorar, ou substituir, o velho leito
romano, por não terem, ao norte,
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16 /
povoações importantes a servir. A invasão árabe pouco teve de semelhante
com a invasão bárbara. Esta foi a ocupação efectiva da terra por uma
nova nação, a partilha violenta dela, foi a tomada pela força, foi a destruição e a morte; aquela, nas terras que pacificamente lhe
entregaram, foi a simples ocupação militar; o povo que tinha a posse da terra, nela se
manteve em geral. Só mudaram os governantes. As gentes ismaelitas, que
depois vieram, entraram pacificamente e pacificamente se estabeleceram na terra habitada. Centros de
população, havia-os ao norte do Douro e por toda a Galiza e as suas
comunicações com o Sul faziam-se
essencialmente pela velha estrada romana que vinha de Braga
ao Porto e daqui por Coimbra a Lisboa. Foi natural, portanto, que esta lhe merecesse alguns cuidados.
O qualificativo mourisca atribuído à estrada nalguns documentos
medievais, não pode ter a origem que algumas
vezes se lhe dá: tendência geral do povo para atribuir aos mouros os
monumentos que vêm de tempos imemoriais.
Em 953 os mouros, se já não dominavam na região de Vila do Conde, poucos
anos havia que ali tinham perdido a sua soberania. A «Carraria Maurisca»
não podia assim ser-lhes atribuída só porque era tão antiga que se lhe
não conhecia o autor. Se a razão de mourisca fosse essa natural
tendência, do povo para assim chamar a todas as obras que ultrapassam
a sua memória, porque não abrange essa designação todos
os documentos de Pedroso, mas só uma parte deles?
Além dos documentos relativos à região entre S. João da Madeira e Porto,
conheço ainda mais dois, já atrás referidos, em que a estrada é
qualificada de mourisca: 1 − de
Vilela-Coimbra «...ereditate inter Gueifar et Casal de Patre e de alia
parte inter Lauandeira et illa strata maurisca sub illas mamolas de
Uilella...» − 2 − Mogofores «...et inde per illam stratam mauriscam et
inde per illam lacunam et
inde ad illos pozos et inde ad aliam lacunam et inde per illam stratam
paruam que uadit ad paredes...»
Ora deste último documento infere-se que perto de Mogofores havia duas
estradas, uma maior e outra menor, (paruam) sendo a maior a mourisca. E
isto está de acordo com os documentos de Pedazanes (Pedaçães − junto do
Vouga) P. M. H. − em que se fala em estrada maior «... et de alia
parte per estrata maiore − Doc. CCCLXXVIII − «...et diuide per illa strata maiore...»: Doc. DXLIX.
Também precisamente na região de Pedroso, em que os
documentos falam em estrada mourisca, diz-se «... et deuidit ipsa
uilla qum sexo aluuo a parte mare per strata maiore et alia parte inter
acisterio petroso...» (P. M. H., doc. DLXIII). A qualificação de maior
seria incompreensível se não houvesse no lugar outra menor. Qualquer
dúvida, entretanto,
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17 /
[Vol. XIV -
N.º 53 - 1948]
desaparece em face do documento de Aguada de Baixo:
«... et diuidit ipsa uilla cum uilla barriolo per illa lomba inter
ambas illas stratas...» (P. M. H., doc. LXXIII). Neste documento estão
marcadas todas as confrontações de Aguada de Baixo, que são ainda as que esta freguesia tem hoje. Pelo
Nascente, a linha divisória segue pela encosta de Barrô, até perto desta
aldeia, cortando depois em linha recta através do campo até ao Cértima.
Era pois nesta pequena encosta de Barrô que passavam duas estradas,
seguindo quase no mesmo sentido com pequena divergência entre si. Os
romanos não iriam construir duas estradas no mesmo lugar e com o mesmo
fim. Uma, certamente, fora feita pelos árabes. Adiante
veremos porquê...
Estou convencido de que VITERBO está com a verdade; os árabes em vários
lugares modificaram os rumos da estrada construindo partes novas e foram
estas que se chamaram mouriscas. Bem sei que logo me surge este embaraço: se assim é, se
neste ou naquele ponto existiram duas estradas, como em Aguada e Lamas
se encontram vestígios das duas, assim se devem encontrar nessa
região entre S. João da Madeira e Gaia. E assim é. Creio que não será
difícil ao estudioso encontrar nos documentos e no exame local dados
seguros sobre as duas estradas. Já ARMANDO DE MATOS na monografia «As
Estradas Romanas no concelho de Gaia» diz o seguinte:
«Têm partido sempre os nossas arqueólogos, que ao Concelho de Gaia
dedicam a sua atenção e com este assunto se ocuparam, do princípio da
existência de uma só via romana. Devo dizer que, já há muito, desde que,
um dia, marquei numa carta do concelho todos os pontos de interesse
arqueológico, de que tinha conhecimento, relativos ou relacionados com a
época em estudo e que atentei na distribuição da população nestas
paragens, me convenci, julgando-a quase
indispensável, da existência de diversas vias de comunicação.
Para a política de atracção, desenvolvida pelas romanos, a fim de
provocar a vinda dos habitantes dos pontos elevados para a planície,
esta só por meio de uma boa e orientada rede de caminhos era possível,
enquanto, inicialmente, a sua finalidade imediata fosse de ordem
estratégica.
«De resto, tendo presente que os romanos tinham vários
tipos de caminhos, distintos pela sua largura e acabamento, como actus,
iter, semita, callis, destinados respectivamente à passagem de carros,
de cavalos, de peões e de rebanhos,
além de tramas e de ambitus, não é descabida esta minha
observação.»
«Embora difícil de encontrar, tive a sorte de me vir às mãos uma valiosa
planta de todo o concelho, levantada em 1848 por Manuel José do Couto
Guimarães...»
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18 /
«Começando a examinar então atentamente tão interessante documento...
decidi-me abertamente por uma outra solução, que fortemente se arreigou
no meu espírito: não estávamos em frente só de uma estrada importante,
mas pelo
resultado a que cheguei, tínhamos para já, não uma, senão pelo menos
três estradas». E enumera-as:
1.ª − Vinda de Riba UI por Arrifana.
2.ª − Vinda de Brito por Golpelhares, Valadares, Monte,
Lameiro.
3.ª − Partia de Pedroso, atravessava a Farrapa, Freitas e Gralheira, e
seguia por Santa Cruz da Trapa, S. Pedro do Sul, para Viseu.
Ainda que o rumo dado à segunda estrada não me pareça
ajustado à verdade, nalguma coisa o Dr. ARMANDO DE MATOS
parece estar certo: a presença, num ou noutro ponto do concelho de Gaia, de duas estradas conduzindo do Sul para o
Porto.
O Dr. ARMANDO DE MATOS entende que o grande critério que presidiu à
construção das estradas romanas foi o de atender às necessidades dos
castros ou centros populacionais e que por virtude dele as estradas,
então como hoje, contornavam as montanhas e serpeavam a planície, de
modo a servir o maior número. Já disse anteriormente que os romanos
procuravam sempre a economia da distância; e o supremo interesse que se propunham servir era o de Roma. Quando as estradas
romanas
começaram a ser construídas, em tempo de César, a República, agonizante,
precisava de todos os recursos do Império para alimentar a corrupção de
Roma, a maior que
a Humanidade jamais conheceu. As estradas cómodas e rápidas tornaram-se
necessárias para conduzir a força que impunha e mantinha a autoridade
«central» e levar à grande cidade contribuições e produtos que
alimentavam a sua voracidade. A esse tempo já os castros, batidos e
humilhados, espreitavam por entre as ruínas das suas muralhas os aldeamentos
que os seus antigos habitantes iam semeando pela planície e onde
durante quatro séculos vieram a receber todos os influxos da civilização
romana.
Quanto à terceira estrada, a que de Pedroso ia a Viseu, através da
Gralheira, referir-me-ei mais tarde, quando tratar doutras dentre Douro
e Mondego.
O Sr. Dr. AMORIM GIRÃO, no mapa de viação antiga que traz sobreposto ao
mapa das Vias de Comunicação e Postos Marítimos (Geografia de Portugal,
págs. 366-367) afasta o rumo da estrada antiga, a partir de Coimbra,
para ocidente, fazendo-a passar ao poente de Albergaria, em curva leve
até
Espinho e daí quase pela costa até ao Porto. Não sei em
que elementos se estribou. Aqueles que deixo aqui indicados dão-lhe
orientação diferente, afastando-a da costa e aproximando-a
/
19 / do rio Feveros que vai confluir no Douro quase em frente a
Valbom.
Vamos agora ver com mais precisão qual o rumo que tinha a estrada
romana no concelho de Águeda, ou melhor, entre Mogofores e Albergaria.
Vemos pelo documento de 1143 que em Mogofores havia duas estradas, a
Mourisca e a estrada pequena que ia a Paredes. Estas estradas ficavam entre
as actuais povoações de Ancas, Mogofores e Avelãs de
Baixo «....In oriente quomodo... uertit aquam per illud suber forcatum
et inde per illam stratam mauriscam et inde per illam lacunam et inde ad
illos pozos et inde ad aliam lacunam et inde per illam stratam paruam
que uadit ad paredes...». Este mesmo documento dá a razão das duas
estradas: zona de lagoas e poços.
A partir de Aguada de Baixo encontramos ainda as duas
estradas «...et diuidit ipsa uilla cum uilla barriolo per illa lomba inter ambas illas stratas»... Já disse que a confrontação das duas freguesias, Aguada de Baixo e Barrô é ainda hoje a
mesma, do alto da encosta que sobe do campo para esta última. As duas estradas passavam, por consequência,
uma a norte e outra a sul deste ponto. Quer dizer, duas
estradas: a romana e a mourisca.
Entre Avelãs de Caminho e Aguada, a estrada mourisca
ou voltava a seguir o leito romano, ou dele se afastava pouco.
Em Aguada de Baixo começava nova divergência: as duas estradas, atravessando o rio
Águeda aproximadamente no local em que
hoje está a ponte de Ladiosa, seguiam pela encosta de Barrô: a árabe
para Randam, Sardão, Águeda e
Mourisca, a velha romana pelo norte de Barrô e Recardães, atravessando o
Águeda na direcção de Paredes e daí a Crastovães, Covelas, Lamas, a nascente da ponte velha do
MarneI, no local onde foi a velha igreja. Daí ao Vouga, a
mais ou menos cem metros a jusante da ponte actual, onde atravessava o
rio em direcção à Gândara de Serem. As duas estradas juntavam-se ao meio da lavoura entre Pedaçães e Mourisca. Se
os árabes, nos séculos VIII e IX, tiveram de abrir novos leitos em zonas
em que a velha estrada estava em más condições, imagine-se como não estaria no século XII.
É possível que a calçada, em muitas das partes em que era
ainda aproveitada para o trânsito, já tivesse desaparecido, falando os
documentos em vias, pela confusão com estas. E só assim se explica o
documento de Recardães de 1103 − «... de uno talio de uinea que iacet in uilla Recardanes et iacet in loco predicto inter illam uiam Sautum et alia uia que
uadit pro ad ille rio de Uauga et concludit inter ambas uias (Doc. Med.,
doc. 102). Esta via que ia ao rio Vouga era certamente a velha estrada
romana que de Recardães atravessava o rio para Paredes e daí, galgando a
encosta, ia a
/
20 /
Crastovães − Vouga. A outra via, que se dirigia ao Souto,
no Caramulo, era a que, seguindo a margem esquerda do Águeda, ia a
Viseu.
O falecido CONDE DA BORRALHA publicou no
Arquivo de
Aveiro, vol. 5.º, pág. 121, uma lenda sobre a passagem da Rainha Santa
Isabel por Águeda, no regresso da sua peregrinação a S. Tiago de Compostela, que encontrou no velho
Tombo do Hospital. Diz a lenda: «Esta terra (uma propriedade do Hospital) está na várzea de Recardães pegada ao cômoro de João
Tavares, digo, ao cômoro do capitão João Tavares da ponte; arrenda-a o
Hospital pelo preço que lhe parece (?). Parte do norte com o rio e do
sul com a estrada
que vem do Sardão para Recardães e tem dízima a Deus e
foi dada pela Rainha Sarna ao Hospital da largura do coche em que vinha
de S. Tiago pela estrada do cruzeiro de Paredes por ser naquele tempo a
melhor, e passando pela estrada das laranjeiras defronte do dito
Hospital, no tempo do estio, em direitura ao Campo limpo já dos
frutos até à estrada da Corga, tempo em que não havia quintal de Miguel
Henriques da Ponte».
Pondo de parte as inexactidões e ingenuidade da lenda, uma verdade,
entretanto, ela contém: Havia uma estrada
que do Norte vinha ao Cruzeiro de Paredes, e, se a Rainha Santa Isabel
preferiu esta por ser então a melhor é porque havia outra em piores
condições. Eram as duas estradas, a velha romana e a árabe, de
construção muito posterior. E também na lenda há a referência à estrada que de Recardães
ia ao
Sardão e de lá ao Souto, como antes disse.
Não tive ainda oportunidade de examinar bem a zona entre Paredes e Crastovães, parecendo-me, entretanto, que, o revolvimento das terras
pela cultura e a mão do tempo,
apagaram nela todos os vestígios da estrada romana. De Crastovães a
Santa Maria de Lamas, na encosta que da estrada de
Pedaçães, antes do Mato Crespo, vai à Volta Grande e daí
ao velho passal, há ainda vestígios seguros da sua passagem.
Era mesmo junto da casa que serviu de residência paroquial, que a
estrada atravessava o rio Buoca e o que vinha do Beco, agora reunidos,
na vala central. Na margem direita a estrada
dobrava a ponte em direcção à Ponte Velha. Neste espaço,
o ponto em que a estrada alcançava a margem direita e a
ponte, quem se der ao trabalho de sondar a chamada Vala
Velha nela encontrará a calçada antiga. Esta vala, na parte próxima à
ponte, já desapareceu sob a compressão das terras
de arroz marginais, mas a calçada lá está debaixo delas. Ainda nos
princípios do século XVI esta calçada estava livre das águas e servia de
trânsito aos que desciam de Carvalhal.
Diz um documento de 1751 (Tombo do Duque de Lafões) referido a outro documento de 1530, que o reguengo confrontava com a vala velha que
corria pela estrada antiga e do
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21 / Aguião com as paredes velhas. Esta calçada tem sobre si uma
pequena camada de terra que vai de 0,30 a 1,50 aproximadamente, e no Verão as águas não têm mais que um metro de profundidade,
sendo assim relativamente fácil a sondagem. Precisamente nesta zona, do
lado direito, ergue-se o Cabeço
do Vouga, terminado por dois cones truncados, o Cabeço Redondo e o
Cabeço da Mina, sobre os quais outrora se levantaram as muralhas da
Alcáçova Maior e da Alcáçova
Menor, como ainda lhe chamavam no século XVI. E o povoado luso-romano
estendia-se pela encosta, até mesmo junto da
estrada onde tinha o seu porto. Muitos alicerces, mós e outros utensílios foram já arrancados, mas lá estão ainda algumas paredes a desafiar a curiosidade dos arqueólogos.
Da ponte, a estrada ia ao Vouga, passando o seu leito por sob as casas
dalém da Ponte Velha, seguindo a alguns metros a nascente da estrada n.º
10. A travessia do rio fazia-se, como já disse, abaixo da actual
ponte e na margem direita a estrada subia a encosta em recta até à Mala
Posta. Nessa zona os vestígios da estrada são evidentes. Na encosta há
cortes profundos na pedra. As valetas ainda perfeitas dão-nos a estrada ainda
em toda a sua largura. Perto do rio, a ponte, construída no século XIII a nascente, fez desviar um
pouco a estrada neste sentido, ficando abandonada pequena faixa a
alguns metros da velha estrada até à beira do rio, hoje já tomada pelas
terras adjacentes.
De igual modo, na margem esquerda, a estrada vinha,
no lugar de Vouga, até à velha casa dos Melos e daí ao rio.
Da Mala Posta a Albergaria o leito da estrada seguia paralelo ao actual
leito da estrada n.º 10, um pouco a norte. Aquém
e além, na depressão do terreno, parece ainda descobrir-se o rumo dela.
Voltemos a Barrô a procurar a estrada árabe, a
mourisca maior, como lhe
chamam os documentos. Ela vinha pelo alto da encosta ao Randam e daí ao
Sardão atravessando o rio no lugar onde foi a ponte velha, para seguir
pela Venda
Nova à Mourisca. Era em Águeda à estrada das Laranjeiras, como lhe chama
o anónimo da lenda de Santa Isabel, atrás referida. A Rainha desceu
pela estrada que vinha ao Cruzeiro de Paredes, passou em frente ao
Hospital, junto da praça no lugar hoje ocupado pela estrada n.º 10, e
dai à estrada das Laranjeiras para atravessar o rio em direcção à
estrada dos Corgos, que era a que vinha de Randam.
Aceito a hipótese de Mourisca ser o nome da estrada feita pelos árabes,
em oposição à romana que lhe passava perto, pelo noroeste. Mais tarde,
quando se formou o povoado, o nome passou a este, desligando-se da
estrada, que passou a chamar-se Coimbrã. Era este o seu nome, ao menos no principio do
século XVI. (Tombo dos Lemos da Trofa − inédito).
/
22 /
Da Mourisca, a estrada, a norte da actual rua, ia encontrar a romana, antes de Pedaçães, por
alturas do Serrado da
Gata, onde acabava. A estrada velha, que neste lugar ia pelas
Covas à Ponte Velha, deve ser de construção posterior, talvez coeva da
construção da ponte.
Nos documentos já referidos, de
1050 e 1077, são dadas
a Pedaçães as seguintes confrontações: «Padazanes ad integro
per suos terminos quomodo diuide cum christouannes et cum couellas per
illo fontano cum suo molino et illo fontano discurre pro ad uauga per ut
illo diuidiui cum maiorinos de rex
domno fredenando et de alia parte per estrata maiore. et de alia parte
quomodo diuide cum lamas per illa coua de illo sauuqueiro de ripa de
uauga» (Doc. de 1050) − «...padazanes
quomodo fui illa de ille comes domno didago et diuida per illa
strata maiore et de alia parte diuide per illo termino de sancta maria de
lamas e de alia parte cum crestoualanes et cum
couelas per illo fontano que discurri pro ad uauga cum suo molino sic
ganaui eam ad integro. et de auolengo medietate de sancta maria de
lamas quomodo diuide cum padazanes...».
(Doc. de 1077).
Quer dizer: Pedaçães confrontava com Crastovães,
Covelas e o Ribeiro que corre para o Vouga. Estes lugares ficam pelo sul
e poente. Doutra parte confrontava com Lamas ou com o termo de Santa
Maria de Lamas. Esta povoação fica
ao norte. Por outro lado confrontava com a estrada maior. Esta só podia
passar pelo nascente. E assim era. Correndo
a sul da actual rua da Mourisca, além do largo da capela, ia
encontrar o velho leito romano, no meio da actual lavoura,
que naquele tempo era floresta e mato, onde viviam tranquilos os lobos e os ursos.
A vila de Pedaçães antiga teve o seu assento a norte das actuais terras
do Agro, constituindo este campo a sua principal zona de cultura. Neste mesmo lugar ainda hoje se encontra a
principal parte do povoado. A estrada velha que
ia a Vouga não pode ser a estrada maior, pois servindo esta de limite à
vila não pode atravessá-la.
O Sr. JOAQUIM DE SOUSA BAPTISTA, da Arrancada, fez um estudo sobre as
estradas romanas no concelho de Águeda. As estradas que refere serão,
umas, as antigas vias pre-romanas, e outras, mais recentes, virão da
dominação árabe ou já
dós primeiros tempos da monarquia. Havemos de abordar
este assunto, depois de tratarmos das outras estradas romanas que vinham entroncar com a de Coimbra ao
Porto.
Rio de Janeiro.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |