SÃO
de sobejo conhecidas, para que haja necessidade ou interesse de as rememorar neste ensejo, as fases capitais das lutas civis em que andaram empenhados e
fervidamente ardidos os partidários do regime absoluto
e os dos credos liberais. Ao iniciar do ano de 1834, o domínio
miguelista entrava na agonia. Os apaniguados do absolutismo esgotavam as
possibilidades de defesa de uma causa que tinha por si a força de uma tradição fundamente enraizada, e nem a
própria defesa individual contra prováveis represálias dos adversários,
sujeitos a alguns anos de opressivas intolerâncias e violências, lhes reacendia o fervor combativo. Caíam os últimos baluartes, gerara-se a desorientação e a
inquietude, acumulavam-se os erros e desatinos.
Em Janeiro, reconhecido já então o governo de D. Maria
II pela França,
Inglaterra e Bélgica, Saldanha entra em Leiria;
trava-se a batalha de Almoster, um mês depois, e a posição
das tropas liberais torna-se nitidamente dominante. O Minho, nos começos
da primavera, entra na posse destas, e em 8 de
Maio, regista-se a ocupação de Coimbra. A Convenção de Évora Monte não
tardaria.
Em Aveiro, a cidade onde eclodira o primeiro brado de revolta contra D.
Miguel, o desenrolar da luta era seguido com viva e compreensível
ansiedade. Desde 1828, os mais devotados prosélitos do liberalismo
tinham abandonado a sua
terra. A vindicta absolutista justiçara com a pena última
alguns dos mais destacados − Gravito, Magalhães Sertão, Clemente de
Morais, Manuel Luís Nogueira, Clemente de
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Melo Soares de Freitas, João Henriques de Oliveira, nomes
de idealistas nunca por demais recordados e venerados na
terra que lhes guarda as cinzas como uma relíquia inestimável. Outros, dezenas de outros, seguiram o caminho do
exílio, e sentiram-lhe as agruras materiais e morais, ou penaram pelas cadeias. O vírus da Liberdade ficara latente entre
a população aveirense, aguardando as condições favoráveis
para ressurgir, e o humanitário pendor sentimental que irmana
os indiferentes com os que sofrem por uma ideia criara novos
adeptos. Recalcavam-se os impulsos ante a vigilância rigorosa e atenta das autoridades, mas o intimo alvoroço esperava tão
somente a oportunidade propicia para revelar-se.
Com as vitórias sucessivas das hostes constitucionais,
já alguns dos emigrados aveirenses haviam tomado o caminho do regresso. Alguns dos presos tinham expiado as
penas, ou, à falta de culpas ou de provas concretas de incriminação
estavam libertos. A passagem de um contingente militar na cidade, por
último, acabou por facilitar, em 12 de
Maio, a aclamação de D. Maria II.
Constituiu-se previamente uma nova Câmara. Na ausência do dr. Joaquim António Plácido, que servia de presidente
no dia histórico de 16 de Maio de 1828, foi investido naquelas
funções o dr. Filipe José Pereira Brandão, que interinamente fora
designado para juiz de fora e, com as melhores probabilidades, seria parente daquele outro juiz de fora Caetano Xavier
Pereira Brandão, em 1823 afastado do seu cargo pela facciosa sanha dos
sustentáculos locais do barão de Vila Pouca, e mais tarde eleito
deputado, com José Estêvão, pelo
circulo de Aveiro.
Pereira Brandão, tomando a presidência da municipalidade a título provisório, convocou para fiscal o alferes Agostinho José Pinheiro, para primeiro vereador o capitão José
da Cunha Guimarães, ambos membros da Câmara naquela memorável data, Jerónimo Ribeiro Dias Guimarães e Francisco José de Fontes, que anteriormente haviam também
exercido funções na vereação. Dos quatro membros da edilidade, somente o último, mais comedido e apagado, embora afecto ao
liberalismo, não contava serviços de relevo à causa
e não sofrera por ela inquietações de monta. Os demais
eram reconhecida e comprovadamente constitucionalistas e
tinham experimentado as consequências da sua firme dedicação aos ideais
que abraçaram.
No próprio dia em que se instalou a nova vereação, procedeu-se
nos Paços do Concelho à aclamação de D. Maria II
e à ratificação do juramento da Carta Constitucional. Nomes
que andavam votados ao ostracismo e de algumas individualidades regressadas pouco antes do exílio ou do cárcere figuram no auto que adiante reproduzimos e cuja publicação nos
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foi sugerida pelo que, nesta revista, efectuou o sr. dr. FERRElRA
NEVES de um documento da mesma natureza(1).
Em primeiro lugar, tirante a edilidade e o elemento militar, aparece a
assinatura do conselheiro Joaquim José de Queirós, figura proeminente de
liberal, que, segundo os próprios termos da sentença da Alçada do Porto
que o condenou, mostrara «haver sido não só o mais atrevido e ousado
conspirador, cabeça e principal autor das tramas e maquinações que
usaram e prepararam o horroroso atentado de 16 de Maio de 1828, nas
cidades de Aveiro e Porto, mas também incansável e poderoso agente do
seu desenvolvimento e acérrimo
mantenedor da sua destruidora persistência e deplorável duração».
Homisiara-se e assim se furtara à execução da sentença de rigor extremo
que, com exacerbado rancor, contra ele ditara a alçada: − «depois de ter
sido conduzido com baraço e pregão, pelas ruas públicas do Porto, ser o
seu corpo reduzido a cinzas e depois lançado ao mar, bem como posto o
fogo ao cadafalso em que lhe fosse decepada a cabeça desse infame,
perverso e façanhoso Joaquim José de Queirós». Andara emigrado pela
Inglaterra, França e Bélgica, sujeito aos exílios do patrício e amigo
António Barreto Ferraz de Vasconcelos. De volta à Pátria, era no Porto,
em 1832, juiz do Tribunal da Guerra e da Justiça, e daí ascenderia à
presidência da 2.ª instância. Depois de inúmeros sobressaltos e
sacrifícios, regressara à sua terra e não quisera faltar ao acto que
simbolizava a restauração dos seus ideais políticos e a satisfação dos
seus anseios mais veementes.
Entre os eclesiásticos, vários dos quais assinam indistintamente, com
neutro conformismo, qualquer dos repetidos e antagónicos autos de
aclamação, saliente-se o nome de José Pereira Bilhano, o futuro e
insigne arcebispo de Évora, grande amigo de José Estêvão, que pela
primeira vez firma um documento com este carácter; e o prior da
freguesia da Glória, padre João José dos Santos, da «Botica» como era
geralmente conhecido por se entregar ao exercício das artes galénicas,
muito afeiçoado ao conselheiro Queirós e em cuja casa os filhos deste
permaneceram durante algum tempo. Também subscrevem o auto de aclamação
Frei Alexandre de S. Tomás, que, por suas tendências liberais, estivera
alguns meses recluso no convento, e um Frei Joaquim de S. Domingos, que,
por idênticas razões, fora compelido a homisiar-se(2).
Vários dos implicados no pronunciamento de Maio ou
dos apenas suspeitos de simpatia pelo frustrado movimento
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sedicioso contra o absolutismo encontram-se ainda entre os signatários
do auto, como, por exemplo, os negociantes Francisco Henriques da Maia,
Pedro José da Cunha e João dos Santos Resende, o empregado comercial
José António Gonçalves Lomba e os operários José dos Santos Silva,
correeiro, e Manuel de Pinho, carpinteiro. Apenas o quarto,
segundo supomos, não chegara a ser pronunciado, e os dois últimos
sofreram mesmo longos meses de prisão.
Aclamada a rainha e jurada a carta, principiou a
tarefa
de depuração nos quadros da administração local. Os mais
encarniçados e destacados miguelistas e os colaboracionistas
mais em evidência − como hoje se diria − começaram a ser substituídos.
Ainda quando em algum caso se tratasse de funcionários do Estado, o
município, invadido de diligente zelo, houve por bem adiantar-se às
deliberações do poder
central.
Logo no dia imediato ao da aclamação, a Câmara, considerando o público mal contente com o administrador do correio, António
Rangel de Quadros, «que alem de ter servido o governo da uzurpação e ter sido culpado por erros
do dito emprego, tem contra si a queixa geral, nomeou em sua
substituição, interinamente, e até definitiva resolução
governamental, o «negociante e proprietario alferes Agostinho Jose Pinheiro». E nem se estranhe que a nomeação recaísse num dos
vereadores, porque também o funcionário destituído entrara em exercício
pouco depois da aclamação de D. João VI como rei absoluto, precisamente
em Agosto de 1823, quando igualmente fazia parte da vereação.
No dia 16 de Maio reassumiu a presidência da Câmara
o dr. Joaquim António Plácido, entretanto regressado à
cidade. Intencionalmente ou por mera coincidência, voltava a ocupar o cargo oito anos exactos após a malograda revolução, que
ficaria como um dos mais relevantes e honrosos acontecimentos dos anais aveirenses.
Registou-se a partir dessa data uma série de novas
nomeações. São os almotacés, bacharel José Joaquim da
Silva Santiago, e António Pereira da Cunha; os membros da Comissão para
o alistamento dos dois Batalhões Nacionais,
António José Gravito da Veiga, Domingos Carrancho e Francisco Henriques da Maia; o recebedor do direito do papel, António
Joaquim da Silva, negociante de panos na rua Direita; e são mais o
guarda-mor de saúde, o meirinho e guarda-bandeira, o oficial do juízo,
os oficiais de diligências: − toda uma radical mudança de pessoal.
No lugar de carcereiro foi provido Custódio Carneiro,
porque, alegava a edilidade, «sendo de toda a consideração
e confiança nele se supõe − o q não acontesse a respeito do individuo que
se acha servindo o m.mo emprego tendo sido
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nomiado pelo Juis de Fora e Vereadores do tempo da Uzurpação» − a idoneidade requerida para aquelas funções.
Também o piloto mor da barra não merecia a simpatia nem a confiança da
vereação. Ela o demonstra inequivocamente no auto relativo à sessão em
que o exonera e se lhe refere nos seguintes termos: «visto que o actual
que esta servindo o dito emprego M.el J.º de Sz.ª não he capas de o continuar a ser p.r q alem de ser um aserrimo defençor da Uzurpação tendo dado a este respeito as mais
decisivas provas, e do q tem sido, e he contrario ao legitimo governo da
Rainha S. D. Maria Segd.ª acresce ainda mais a falta de intelig.ª p.ª o dezimpenho das suas funções de hum emprego
de tanta consideração, e perjuizo como tem acontecido p.r m.tas vezes,
sendo a causa de ter naufragado algumas embarcações, e q alem disto mais
acrescia a sua má conduta exigindo dos Capitans, e Mestres de
Embarcações salarios que lhe não pertencia, e nem devia exigir, e q por
todas estas circunst.as» não se fazia merecedor de permanecer no exercício
daquele cargo. Não era irrepreensível, ao que parece, o carácter desse
Manuel José de Sousa, piloto que pensaria
menos em governar a entrada dos navios do que em governar-se a si
próprio, nem os seus conhecimentos náuticos o haveriam acreditado muito
solidamente, mas, decerto, o que mais influiria na decisão camarária era
o seu apego às instituições absolutistas. Foi nomeado em seu lugar
Joaquim Correia de Lemos, atentas «a sua inteligencia e pratica da Barra
e (estamos em crer que primando a todos os demais requisitos) os
serviços que tem feito à Cauza da Legitim.e».
Durante mais de um mês sucederam-se as novas nomeações. Recrutavam-se
entre as pessoas de mais seguras garantias, ainda que não de inteira
ortodoxia liberal, como Bento
José Mendes Guimarães, a quem foram confiados os lugares de recebedor
das sisas e outros direitos municipais e do cofre da barra. Para cabos
do mar − ao tempo competia a um a margem de S. Gonçalo e Vera-Cruz, e a
um segundo a do Alboi − foram designados um tal Luís Gaspar Chissa, cujo
apelido exemplifica tipicamente o pitoresco de alguns sobrenomes da
classe piscatória aveirense, e Manuel Pereira.
Manuel Martins de Almeida Coimbra, muito em evidência pelo sectarismo
miguelista, e ainda mais, porventura, pela sua paixão partidária do que
pelas suas inegáveis qualidades de inteligência, cedeu o lugar de
cirurgião partidista ao seu colega João Maria Regala. Almeida Coimbra
fora nomeado em 1830, registando a municipalidade dessa data, na acta
em que anui à sua escolha, com particular e vivo louvor o facto de «ser
dotado de todas (nada menos que todas!) as boas qualidades Civis, Morais
e Políticas; de sentimentos, e comportamento Realista, e bons
conhecimentos Medicos,
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e Cirurgicos, por cujas circonstancias todas, tem merecido e grangeado a
aceitação e Estima desta cidade em geral».
João Maria Regala, concorrente às mesmas vagas, parecera então
desprovido de convincentes títulos de proficiência e filantropia. Os
seus méritos não mereceram apreço que pudesse ser expresso senão com
sofísticas alegações de ignorância: «Quanto a ter curado de graça os
Pobres e com grande aceitação dos Povos em razão dos seus conhecimentos,
e acertada pratica nada pode a Câmara dizer por ser o Suplicante
Cirurgião ahinda ha poucos annos, e de pouca pratica, e ter alem disso
estado empregado no Partido de Cirurgia da Villa de Ilhavo ha dois annos
pouco mais ou menos, não ter dádo occazião a fazer conhecidos nesta
Cidade os seus conhecimentos cirurgicos». A edilidade descartava-se do
intrometido concorrente, simulando escrúpulos onde só queria esconder
propósitos de preferência pelo correligionário. Agora, os novos ventos
voltavam o caso do avesso.
O bondoso e querido Dr. Luís Cipriano, fora alguns dias antes
reintegrado no seu lugar de médico do partido. Retirara de Aveiro,
segundo a deliberação camarária que o reconduzia, «por cauza da
perseguição que os rebeldes lhe ftzerão em 1828». Não deixa de ser
curioso observar como foi aplicada a classificação de «rebeldes»
àqueles que realmente representavam o poder, e combateram e dominaram a
«rebelião» de 16 de Maio. Questão de pontos de vista!... Regressava o
conceituado facultativo depois de seis anos de ausência no Porto, onde,
como se sabe, lhe dera asilo, seguro e insuspeitado, um dos próprios
juízes da famosa alçada, afinal seu padrinho, o desembargador José
Patrício de Seixas Denis.
Com o filho primogénito de Luís Cipriano, o egrégio
José Estêvão, aconteceria mais tarde um facto idêntico. Durante a
perseguição que lhe moveram os «cabrais», procurando teimosa e
infatigavelmente forçá-lo a revelar o refúgio, mantido no mais rigoroso
sigilo, pontualmente apareceram na Escola Politécnica, por «misteriosas»
vias, os atestados médicos justificativos das suas faltas como professor
de Economia Política. Só longos meses depois, cansado de
viver oculto, o combativo e irrequieto tribuno acabou por indicar a sua
morada, um imprevisível asilo com imunidades invioláveis − a residência
particular do rei D. Fernando.
E para finalizar este rol de trocas e mudanças, em que tão
exuberantemente se justificou o simile dos alcatruzes, e alcançou novos
foros de regra nas contingências da política, acrescentem-se ainda mais
dois casos: a reintegração de António Marcelino de Sá no exercício da
cadeira de mestre das primeiras letras, «em rezão de ter emigrado em 28
e ter sido hum dos Voluntários do Batalhão da Rainha»; e, em
expresso reconhecimento da «sua adhezão ao legitimo governo
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de S. M. a Rainha», a nomeação, para recebedores, do capitão José da Cunha Guimarães, Francisco Henriques da Maia
e Domingos Carrancho, já anteriormente citados e que, pelos
vistos, desfrutavam de especial valimento e consideração.
Mesmo incompleta já se mostra esta lista suficientemente
elucidativa para se avaliarem as repercussões da restauração da carta
nos meios aveirenses e na administração local.
EDUARDO CERQUEIRA
AS PÁGINAS SEGUINTES
REPRODUZEM EM IMAGEM O AUTO DE ACLAMAÇÃO
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