Eduardo Cerqueira, Auto de aclamação de D. Maria II, Vol. XIII, pp. 185-193

O AUTO DE ACLAMAÇÃO DE D. MARIA lI E DE JURAMENTO

À CARTA CONSTITUCIONAL DE 1834, EM AVEIRO

SÃO de sobejo conhecidas, para que haja necessidade ou interesse de as rememorar neste ensejo, as fases capitais das lutas civis em que andaram empenhados e fervidamente ardidos os partidários do regime absoluto e os dos credos liberais. Ao iniciar do ano de 1834, o domínio miguelista entrava na agonia. Os apaniguados do absolutismo esgotavam as possibilidades de defesa de uma causa que tinha por si a força de uma tradição fundamente enraizada, e nem a própria defesa individual contra prováveis represálias dos adversários, sujeitos a alguns anos de opressivas intolerâncias e violências, lhes reacendia o fervor combativo. Caíam os últimos baluartes, gerara-se a desorientação e a inquietude, acumulavam-se os erros e desatinos.

Em Janeiro, reconhecido já então o governo de D. Maria II pela França, Inglaterra e Bélgica, Saldanha entra em Leiria; trava-se a batalha de Almoster, um mês depois, e a posição das tropas liberais torna-se nitidamente dominante. O Minho, nos começos da primavera, entra na posse destas, e em 8 de Maio, regista-se a ocupação de Coimbra. A Convenção de Évora Monte não tardaria.

Em Aveiro, a cidade onde eclodira o primeiro brado de revolta contra D. Miguel, o desenrolar da luta era seguido com viva e compreensível ansiedade. Desde 1828, os mais devotados prosélitos do liberalismo tinham abandonado a sua terra. A vindicta absolutista justiçara com a pena última alguns dos mais destacados − Gravito, Magalhães Sertão, Clemente de Morais, Manuel Luís Nogueira, Clemente de / 186 / Melo Soares de Freitas, João Henriques de Oliveira, nomes de idealistas nunca por demais recordados e venerados na terra que lhes guarda as cinzas como uma relíquia inestimável. Outros, dezenas de outros, seguiram o caminho do exílio, e sentiram-lhe as agruras materiais e morais, ou penaram pelas cadeias. O vírus da Liberdade ficara latente entre a população aveirense, aguardando as condições favoráveis para ressurgir, e o humanitário pendor sentimental que irmana os indiferentes com os que sofrem por uma ideia criara novos adeptos. Recalcavam-se os impulsos ante a vigilância rigorosa e atenta das autoridades, mas o intimo alvoroço esperava tão somente a oportunidade propicia para revelar-se.

Com as vitórias sucessivas das hostes constitucionais, já alguns dos emigrados aveirenses haviam tomado o caminho do regresso. Alguns dos presos tinham expiado as penas, ou, à falta de culpas ou de provas concretas de incriminação estavam libertos. A passagem de um contingente militar na cidade, por último, acabou por facilitar, em 12 de Maio, a aclamação de D. Maria II.

Constituiu-se previamente uma nova Câmara. Na ausência do dr. Joaquim António Plácido, que servia de presidente no dia histórico de 16 de Maio de 1828, foi investido naquelas funções o dr. Filipe José Pereira Brandão, que interinamente fora designado para juiz de fora e, com as melhores probabilidades, seria parente daquele outro juiz de fora Caetano Xavier Pereira Brandão, em 1823 afastado do seu cargo pela facciosa sanha dos sustentáculos locais do barão de Vila Pouca, e mais tarde eleito deputado, com José Estêvão, pelo circulo de Aveiro.

Pereira Brandão, tomando a presidência da municipalidade a título provisório, convocou para fiscal o alferes Agostinho José Pinheiro, para primeiro vereador o capitão José da Cunha Guimarães, ambos membros da Câmara naquela memorável data, Jerónimo Ribeiro Dias Guimarães e Francisco José de Fontes, que anteriormente haviam também exercido funções na vereação. Dos quatro membros da edilidade, somente o último, mais comedido e apagado, embora afecto ao liberalismo, não contava serviços de relevo à causa e não sofrera por ela inquietações de monta. Os demais eram reconhecida e comprovadamente constitucionalistas e tinham experimentado as consequências da sua firme dedicação aos ideais que abraçaram.

No próprio dia em que se instalou a nova vereação, procedeu-se nos Paços do Concelho à aclamação de D. Maria II e à ratificação do juramento da Carta Constitucional. Nomes que andavam votados ao ostracismo e de algumas individualidades regressadas pouco antes do exílio ou do cárcere figuram no auto que adiante reproduzimos e cuja publicação nos / 187 / foi sugerida pelo que, nesta revista, efectuou o sr. dr. FERRElRA NEVES de um documento da mesma natureza(1).

Em primeiro lugar, tirante a edilidade e o elemento militar, aparece a assinatura do conselheiro Joaquim José de Queirós, figura proeminente de liberal, que, segundo os próprios termos da sentença da Alçada do Porto que o condenou, mostrara «haver sido não só o mais atrevido e ousado conspirador, cabeça e principal autor das tramas e maquinações que usaram e prepararam o horroroso atentado de 16 de Maio de 1828, nas cidades de Aveiro e Porto, mas também incansável e poderoso agente do seu desenvolvimento e acérrimo mantenedor da sua destruidora persistência e deplorável duração». Homisiara-se e assim se furtara à execução da sentença de rigor extremo que, com exacerbado rancor, contra ele ditara a alçada: − «depois de ter sido conduzido com baraço e pregão, pelas ruas públicas do Porto, ser o seu corpo reduzido a cinzas e depois lançado ao mar, bem como posto o fogo ao cadafalso em que lhe fosse decepada a cabeça desse infame, perverso e façanhoso Joaquim José de Queirós». Andara emigrado pela Inglaterra, França e Bélgica, sujeito aos exílios do patrício e amigo António Barreto Ferraz de Vasconcelos. De volta à Pátria, era no Porto, em 1832, juiz do Tribunal da Guerra e da Justiça, e daí ascenderia à presidência da 2.ª instância. Depois de inúmeros sobressaltos e sacrifícios, regressara à sua terra e não quisera faltar ao acto que simbolizava a restauração dos seus ideais políticos e a satisfação dos seus anseios mais veementes.

Entre os eclesiásticos, vários dos quais assinam indistintamente, com neutro conformismo, qualquer dos repetidos e antagónicos autos de aclamação, saliente-se o nome de José Pereira Bilhano, o futuro e insigne arcebispo de Évora, grande amigo de José Estêvão, que pela primeira vez firma um documento com este carácter; e o prior da freguesia da Glória, padre João José dos Santos, da «Botica» como era geralmente conhecido por se entregar ao exercício das artes galénicas, muito afeiçoado ao conselheiro Queirós e em cuja casa os filhos deste permaneceram durante algum tempo. Também subscrevem o auto de aclamação Frei Alexandre de S. Tomás, que, por suas tendências liberais, estivera alguns meses recluso no convento, e um Frei Joaquim de S. Domingos, que, por idênticas razões, fora compelido a homisiar-se(2).

Vários dos implicados no pronunciamento de Maio ou dos apenas suspeitos de simpatia pelo frustrado movimento / 188 / sedicioso contra o absolutismo encontram-se ainda entre os signatários do auto, como, por exemplo, os negociantes Francisco Henriques da Maia, Pedro José da Cunha e João dos Santos Resende, o empregado comercial José António Gonçalves Lomba e os operários José dos Santos Silva, correeiro, e Manuel de Pinho, carpinteiro. Apenas o quarto, segundo supomos, não chegara a ser pronunciado, e os dois últimos sofreram mesmo longos meses de prisão.

Aclamada a rainha e jurada a carta, principiou a tarefa de depuração nos quadros da administração local. Os mais encarniçados e destacados miguelistas e os colaboracionistas mais em evidência − como hoje se diria − começaram a ser substituídos. Ainda quando em algum caso se tratasse de funcionários do Estado, o município, invadido de diligente zelo, houve por bem adiantar-se às deliberações do poder central.

Logo no dia imediato ao da aclamação, a Câmara, considerando o público mal contente com o administrador do correio, António Rangel de Quadros, «que alem de ter servido o governo da uzurpação e ter sido culpado por erros do dito emprego, tem contra si a queixa geral, nomeou em sua substituição, interinamente, e até definitiva resolução governamental, o «negociante e proprietario alferes Agostinho Jose Pinheiro». E nem se estranhe que a nomeação recaísse num dos vereadores, porque também o funcionário destituído entrara em exercício pouco depois da aclamação de D. João VI como rei absoluto, precisamente em Agosto de 1823, quando igualmente fazia parte da vereação.

No dia 16 de Maio reassumiu a presidência da Câmara o dr. Joaquim António Plácido, entretanto regressado à cidade. Intencionalmente ou por mera coincidência, voltava a ocupar o cargo oito anos exactos após a malograda revolução, que ficaria como um dos mais relevantes e honrosos acontecimentos dos anais aveirenses.

Registou-se a partir dessa data uma série de novas nomeações. São os almotacés, bacharel José Joaquim da Silva Santiago, e António Pereira da Cunha; os membros da Comissão para o alistamento dos dois Batalhões Nacionais, António José Gravito da Veiga, Domingos Carrancho e Francisco Henriques da Maia; o recebedor do direito do papel, António Joaquim da Silva, negociante de panos na rua Direita; e são mais o guarda-mor de saúde, o meirinho e guarda-bandeira, o oficial do juízo, os oficiais de diligências: − toda uma radical mudança de pessoal.

No lugar de carcereiro foi provido Custódio Carneiro, porque, alegava a edilidade, «sendo de toda a consideração e confiança nele se supõe − o q não acontesse a respeito do individuo que se acha servindo o m.mo emprego tendo sido / 189 / nomiado pelo Juis de Fora e Vereadores do tempo da Uzurpação» − a idoneidade requerida para aquelas funções.

Também o piloto mor da barra não merecia a simpatia nem a confiança da vereação. Ela o demonstra inequivocamente no auto relativo à sessão em que o exonera e se lhe refere nos seguintes termos: «visto que o actual que esta servindo o dito emprego M.el J.º de Sz.ª não he capas de o continuar a ser p.r q alem de ser um aserrimo defençor da Uzurpação tendo dado a este respeito as mais decisivas provas, e do q tem sido, e he contrario ao legitimo governo da Rainha S. D. Maria Segd.ª acresce ainda mais a falta de intelig.ª p.ª o dezimpenho das suas funções de hum emprego de tanta consideração, e perjuizo como tem acontecido p.r m.tas vezes, sendo a causa de ter naufragado algumas embarcações, e q alem disto mais acrescia a sua má conduta exigindo dos Capitans, e Mestres de Embarcações salarios que lhe não pertencia, e nem devia exigir, e q por todas estas circunst.as» não se fazia merecedor de permanecer no exercício daquele cargo. Não era irrepreensível, ao que parece, o carácter desse Manuel José de Sousa, piloto que pensaria menos em governar a entrada dos navios do que em governar-se a si próprio, nem os seus conhecimentos náuticos o haveriam acreditado muito solidamente, mas, decerto, o que mais influiria na decisão camarária era o seu apego às instituições absolutistas. Foi nomeado em seu lugar Joaquim Correia de Lemos, atentas «a sua inteligencia e pratica da Barra e (estamos em crer que primando a todos os demais requisitos) os serviços que tem feito à Cauza da Legitim.e».

Durante mais de um mês sucederam-se as novas nomeações. Recrutavam-se entre as pessoas de mais seguras garantias, ainda que não de inteira ortodoxia liberal, como Bento José Mendes Guimarães, a quem foram confiados os lugares de recebedor das sisas e outros direitos municipais e do cofre da barra. Para cabos do mar − ao tempo competia a um a margem de S. Gonçalo e Vera-Cruz, e a um segundo a do Alboi − foram designados um tal Luís Gaspar Chissa, cujo apelido exemplifica tipicamente o pitoresco de alguns sobrenomes da classe piscatória aveirense, e Manuel Pereira.

Manuel Martins de Almeida Coimbra, muito em evidência pelo sectarismo miguelista, e ainda mais, porventura, pela sua paixão partidária do que pelas suas inegáveis qualidades de inteligência, cedeu o lugar de cirurgião partidista ao seu colega João Maria Regala. Almeida Coimbra fora nomeado em 1830, registando a municipalidade dessa data, na acta em que anui à sua escolha, com particular e vivo louvor o facto de «ser dotado de todas (nada menos que todas!) as boas qualidades Civis, Morais e Políticas; de sentimentos, e comportamento Realista, e bons conhecimentos Medicos, / 190 / e Cirurgicos, por cujas circonstancias todas, tem merecido e grangeado a aceitação e Estima desta cidade em geral».

João Maria Regala, concorrente às mesmas vagas, parecera então desprovido de convincentes títulos de proficiência e filantropia. Os seus méritos não mereceram apreço que pudesse ser expresso senão com sofísticas alegações de ignorância: «Quanto a ter curado de graça os Pobres e com grande aceitação dos Povos em razão dos seus conhecimentos, e acertada pratica nada pode a Câmara dizer por ser o Suplicante Cirurgião ahinda ha poucos annos, e de pouca pratica, e ter alem disso estado empregado no Partido de Cirurgia da Villa de Ilhavo ha dois annos pouco mais ou menos, não ter dádo occazião a fazer conhecidos nesta Cidade os seus conhecimentos cirurgicos». A edilidade descartava-se do intrometido concorrente, simulando escrúpulos onde só queria esconder propósitos de preferência pelo correligionário. Agora, os novos ventos voltavam o caso do avesso.

O bondoso e querido Dr. Luís Cipriano, fora alguns dias antes reintegrado no seu lugar de médico do partido. Retirara de Aveiro, segundo a deliberação camarária que o reconduzia, «por cauza da perseguição que os rebeldes lhe ftzerão em 1828». Não deixa de ser curioso observar como foi aplicada a classificação de «rebeldes» àqueles que realmente representavam o poder, e combateram e dominaram a «rebelião» de 16 de Maio. Questão de pontos de vista!... Regressava o conceituado facultativo depois de seis anos de ausência no Porto, onde, como se sabe, lhe dera asilo, seguro e insuspeitado, um dos próprios juízes da famosa alçada, afinal seu padrinho, o desembargador José Patrício de Seixas Denis.

Com o filho primogénito de Luís Cipriano, o egrégio José Estêvão, aconteceria mais tarde um facto idêntico. Durante a perseguição que lhe moveram os «cabrais», procurando teimosa e infatigavelmente forçá-lo a revelar o refúgio, mantido no mais rigoroso sigilo, pontualmente apareceram na Escola Politécnica, por «misteriosas» vias, os atestados médicos justificativos das suas faltas como professor de Economia Política. Só longos meses depois, cansado de viver oculto, o combativo e irrequieto tribuno acabou por indicar a sua morada, um imprevisível asilo com imunidades invioláveis − a residência particular do rei D. Fernando.

E para finalizar este rol de trocas e mudanças, em que tão exuberantemente se justificou o simile dos alcatruzes, e alcançou novos foros de regra nas contingências da política, acrescentem-se ainda mais dois casos: a reintegração de António Marcelino de Sá no exercício da cadeira de mestre das primeiras letras, «em rezão de ter emigrado em 28 e ter sido hum dos Voluntários do Batalhão da Rainha»; e, em expresso reconhecimento da «sua adhezão ao legitimo governo / 191 / de S. M. a Rainha», a nomeação, para recebedores, do capitão José da Cunha Guimarães, Francisco Henriques da Maia e Domingos Carrancho, já anteriormente citados e que, pelos vistos, desfrutavam de especial valimento e consideração. Mesmo incompleta já se mostra esta lista suficientemente elucidativa para se avaliarem as repercussões da restauração da carta nos meios aveirenses e na administração local.

EDUARDO CERQUEIRA

AS PÁGINAS SEGUINTES REPRODUZEM EM IMAGEM O AUTO DE ACLAMAÇÃO
 

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(1)Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XII, pág.  136.

(2)MARQUES GOMES, A Revolução de 16 de Maio de 1828, pág. 20. 

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