A. S. de Sousa Baptista, Pontes de Vouga e do Marnel, Vol. XIII, pp. 81-85

PONTES DE VOUGA

E DO MARNEL

O povo atribui todos os monumentos antigos, de cuja construção se perdeu a memória, aos mouros. Sete séculos de dominação árabe apagaram inteiramente a tradição romana e goda. Pontes, arcos, panos de muralhas dos antigos castros, destas civilizações, carregou-os a tradição popular através vários séculos, para com eles enriquecer o património material e moral dos últimos dominadores. Por outro lado, monumentos de construção relativamente nova foram recuados no tempo para serem atribuídos também à época mourisca. É o que acontece com as pontes de Vouga e do MarneI, que o povo persiste em dizer que vêm do tempo dos mouros como as muralhas do cabeço do MarneI que lhes fica sobranceiro.

Terão realmente sido os árabes os construtores das pontes de Vouga e Marnel? Não me inclino para esta opinião, como também me parece que não têm razão os que as julgam de construção romana.

Os árabes não foram grandes construtores de pontes, sobretudo naquela região que durante muitos anos esteve sujeita às vicissitudes da guerra. A táctica militar condenava essa construção. Os rios, como outros obstáculos naturais, eram mantidos como defesas valiosas numa época em que as incursões em território inimigo, para talagem dos campos e saque dos povoados, eram métodos de guerra invariavelmente seguidos pelos dois combatentes. Não havia exércitos permanentes postados ao longo das fronteiras, de maneira que os obstáculos naturais à passagem eram aproveitados por todos.

O Vouga foi durante mais de um século a linha extrema do domínio efectivo cristão e deverá ter sido transposto centenas de vezes pelos dois exércitos nos estragos que mutuamente se faziam. Nem árabes nem cristãos tinham interesse na construção de pontes. Os romanos, ao contrário dos árabes, tinham como princípio fundamental da sua táctica a facilidade / 82 / de comunicação e foi, por isso, que eles construíram as suas famosas estradas e pontes, das quais ainda algumas estão de pé.

ROCHA MADAHIL, na sua Monografia sobre o cabeço do Vouga, inclina-se para a opinião de que a velha ponte do MarneI é construção medieval sobre outra dos romanos. Desta maneira crê que a estrada romana de Lisboa ao Porto atravessava aí o Marnel. Se assim era, também o Vouga era atravessado pela mesma estrada no mesmo lugar em que o atravessa a actual ponte. E se os romanos fizeram ponte sobre o Marnel, certamente a fizeram, como mais necessária, sobre o Vouga.

Não posso, ao menos por enquanto, aceitar a opinião do douto escritor que tão vastos e relevantes serviços tem prestado à Arqueologia de Aveiro. Não era ali que a estrada romana atravessava o MarneI e o Vouga. Os árabes desviaram, nesta região, o leito romano mais para nascente e, se mais a nascente das actuais pontes outra travessia não houve nem seria fácil, é de presumir que por ali passasse o leito árabe e não o romano.

Há uma tradição no povo da freguesia de Lamas que diz estar a ponte velha assente sobre outra mais antiga, sendo ainda possível encontrar-se o arco desta sob as águas do primeiro olhal do lado Norte. Esta tradição foi iniciada pelos pescadores que em seus mergulhos descobrem realmente pedras sob as águas do olhal referido. Estas pedras têm, porém, outra origem. Noutra oportunidade, quando tratar da estrada romana, procurarei apresentar os apoios desta minha conjectura.

Eu creio que as pontes sobre o Vouga e MarneI são dos fins do século XIII ou princípios do XIV.

Os séculos XII e XIII podem considerar-se como a grande época da elaboração da Beneficência Cristã. S. Francisco de Assis e S. Domingos revolucionaram a cristandade. O amor dos homens, à face do evangelho de Cristo, foi pregado com tanta doçura e humildade pelo grande Santo de Assis, que as suas palavras, como semente divina, por toda a parte germinaram em instituições de ordem privada que atravessaram os séculos e duram ainda como as melhores aflorações da alma beneficente cristã. O século XIII foi o século das confrarias e das Ordens. O seu código foram as Obras de Misericórdia. Cada confraria se propunha uma ou alguma dessas obras. E assim havia confrarias para acudir aos que têm fome, para vestir os nus, para dar de beber a quem tem sede, para dar pousada aos peregrinos, curar os enfermos, para enterrar os mortos, etc. A pousada aos peregrinos era um dever sagrado. Cada um que pudesse os devia receber, dando-lhes a refeição, o fogo e o leito. Mas a protecção / 83 / individual não podia estender-se às longas caminhadas onde o viajante era surpreendido pela noite cheia de perigos das feras e dos ladrões. Desta necessidade nasceram as Albergarias. Obstáculo não menor que as feras e os ladrões, em seus assaltos tão frequentes nesta época em que a miséria redobrava a dureza dos costumes, era a passagem dos rios, sobretudo no inverno. Não havia pontes nem barcos, ou eram poucos. Tamanho era este obstáculo ao necessário trânsito dos homens, tão frequentes os assaltos aos passageiros na margem dos rios onde a noite os surpreendia, que dar esmolas para pontes, barcos e albergarias, era considerado uma das grandes obras de misericórdia. São muitos os documentos medievais em que se conserva memória desta prática e do grande desenvolvimento que ela tomou. Para construir pontes, criaram-se as confrarias dos pontinos. Reis e nobres, em seus testamentos, deixavam grandes legados para construir pontes e estabelecer serviço de passagem em barcos. D. Dinis deixa 4.000 libras em seu primeiro testamento e 10.000 no segundo, para construir pontes.

Nos vários documentos dos séculos IX, X eXI, relativos às regiões de Águeda e Vouga, não há nenhuma indicação da existência de pontes, sobre os seus rios, devendo notar-se que a referência a elas, se existissem, era necessária, como indicação divisória mais ostensiva e persistente que uma simples árvore ou acidente de pequeno valor, como se verifica no doc. CCCLXXVIlI do Port. Mon. Hist. na parte relativa às confrontações de Pedaçães «... quomodo diuide cum lamas per illa coua de illo sauuqueiro»...

A falta de referência às pontes não é argumento decisivo da sua não existência, mas autoriza essa suposição.

Nas inquirições de Afonso lI, que são de 1220, não há também referência às duas pontes. Foram onze as pessoas inquiridas na freguesia de Lamas, entre elas o prelado e um Mourano de que falarei oportunamente. Disseram eles que o rei tinha na rua do Vouga três casais que eram de reguengo e mais vinte e oito casais que lhe pagavam o foro de um capão. Interrogados sobre o chamado Monte MarneI afirmaram que era reguengo e que nele se pagava ao rei a quarta de pão e de vinho.

A este tempo a rua de Vouga corria junto ao sopé do Monte MarneI pelo seu lado Norte, não havendo entre este e ela mais que o espaço de pequenos quintais. A Nascente da rua o monte vinha morrer junto ao rio.

D. Dinis mandou proceder a várias inquirições em 1284-1301-1303 e 1307.

Fez-se uma na terra de Vouga, que parece ser dos primeiros anos do século XIV. Foram inquiridores Martins / 84 / Vicente, tabelião na Terra de Vouga: Ermigo Mendes e Domingos Gonçalves de «A do Fernando». Não se trata de uma inquirição geral relativa a todos os reguengos, foros e direitos do rei, mas tão somente aos «que sã ascõdudos e aleados». Foram interrogados, no Burgo de Vouga − Martim Vilão, Pedro de Cabras, e os dois disseram que «a vinha de Estevam Joanes de apar da ponte e a que aduba Pai galego de apar da ponte são de quarta».

Temos portanto aqui uma referência directa à ponte e a umas vinhas situadas a par dela. A ponte existia no reinado de D. Dinis.

Disse que o Monte Marnel, a Nascente da rua de Vouga, vinha morrer no rio. As vinhas a que se refere a inquirição eram plantadas na encosta que a ponte vem cortar. E porque o Monte Marnel era reguengo e pagava quarta de vinho e pão, aquelas vinhas eram-no também e por isso pagavam quarta. O corte, para a terraplanagem da extremidade Sul da ponte, deixou estas vinhas como que independentes do monte e daí o terem ficado «Ascõdudas».

Se a ponte de Vouga existisse ao tempo das inquirições de Afonso lI, a referência a ela, dada a existência de vinhas, era tão necessária como na inquirição de D. Dinis.

Em 1262 − O Chantre da Sé do Porto, Gonçalo Gonçalves, deixou legados para as pontes de Vouga e Águeda.

Em 1296 o bispo D. Vicente e em 1298 o bispo D. Sancho, da mesma cidade, deixam legados para as mesmas pontes. Acerca do último rei, diz D. RODRIGO DA CUNHA, no Catálogo dos Bispos do Porto:

«Tambem deixou certa contidade para se acabarem as pontes de Canavezes, Vouga e Águeda.»

Estes legados, feitos no decurso de quarenta anos, mostram que as obras se prolongaram por todo ele, não parecendo natural que fossem de simples conservação, mas de construção da ponte, como diz D. RODRIGO DA CUNHA.

Eis os factos que dão ao meu espírito a convicção forte de que as pontes sobre o Vouga e sobre o Águeda tiveram a sua origem rios fins do século XIII.

E como em todos estes documentos se não faz menção da ponte sobre o Marnel, presumimos que a construção desta ainda foi posterior à de aquela. Não era tão grande a necessidade, porque a travessia deste pequeno rio, ainda naquele tempo devia ser fácil, mesmo na época invernosa. A estrada dos Árabes não atravessaria o MarneI pelo lugar da ponte velha, mas em frente à basílica de Santa Maria de Lamas, depois de descer a encosta em direcção a esta, pelo chamado caminho velho do chão da Igreja. Tratarei deste assunto quando tratar das estradas. / 85 /

PINHO LEAL entende que os legados para as pontes de Vouga e Águeda destinavam-se a reconstrução e não a construção, mas não apresenta nenhuma razão da existência de pontes anteriores.

Diz o padre CARVALHO na sua Corografia, que teve licenças de publicação em 1707: «Tem sobre o Vouga uma ponte de pedra de muitos olhais, mas já tão areada que em tempos de cheias se passa em barcos e é estrada pública de Coimbra para o Porto que passa por dentro da vila. Há também outra ponte de arcos sobre o rio MarneI, que no tempo de Inverno e cheias se não passa».

A ponte de Vouga sofreu grandes obras ordenadas por D. João V, em 1703, sendo consideravelmente alteado o seu leito. Nenhuma indicação temos de que o MarneI recebesse qualquer melhoramento, pois em 1707 diz P.e CARVALHO que no Inverno ela se não podia passar, e assim é até hoje.

Rio de Janeiro.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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