SERÃO
um dia instaladas(1)
no Museu de Aveiro uma colecção de mobiliário e doutros objectos de
adorno de manufactura oriental, e uma colecção de Numismática também de
países e colónias do Extremo-Oriente.
Constam aqueles artefactos de cerca de 40 peças de
mobiliário de sala e de guarnições parietais em talha doirada, além de
mais de 150 peças de adorno e curiosidades, desde as sedas de homenagem,
de metros de extensão, até aos bibelots de minúsculas proporções.
São quadros em talha e a óleo, aguarelas, kakemonos,
litografias e fotografias; são quadros parietais, onde a paciência
chinesa e o primor de execução estão postos à prova em trabalhos de
cortiça, cujas figuras
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barcos, barqueiros, árvores e pagodes
−
têm detalhes de fracção de milímetro. São bordados, tapeçarias e
objectos de uso pessoal; são vasos, jarrões, taças, estatuetas e outros
objectos, em porcelana, charão, esmalte (cloisonné), madeira,
madrepérola, vidro, pedra, prata, cobre e bronze, da China, do Japão e
de Sião.
Entre as curiosidades vê-se, por exemplo, um objecto
aparentando um leque fechado, mas que na realidade é um afiado punhal,
em sua bainha de charão
−
instrumento de respeito entre os nipões, que o têm de reserva, para
algum possível caso de prática solene do suicídio (hara-kiri).
Mais além, escondidas, aconchegadas em algodão em rama, duas pérolas
vivem e crescem, devido ao contacto entre si e à acção trófica dum pó
(possivelmente da concha donde foram enucleadas).
Quanto à colecção de Numismática, totalizando centenas de
moedas, na maioria chinesas, destacam-se algumas destas pelo seu feitio
exótico, outras pela antiguidade (VI e V séc. A. C.), e ainda outras
pelas suas dimensões e natureza do
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material, pois são tijolos de chá comprimido (chá das caravanas) que,
como moeda, tiveram curso entre as tribos nómadas da Mongólia e da
Sibéria.
Tratando-se, assim, dum conjunto invulgar, não só de
moedas, como também dos outros objectos, parece não serem descabidas (à
medida que estes forem descritos) algumas notas
explicativas acerca do material de fabrico, local de origem, sua
utilização e significado de certos motivos decorativos de vários
exemplares que mais se destacam pela delicadeza dos lavores e pelo
exotismo da sua apresentação.
Serão precedidas dalgumas considerações sobre a decoração
doméstica no Japão e na China, seja para comparação, seja porque daquele
seu meio foi desloca da a maior parte dos objectos.
Em tempos passados, muito antes das duas conflagrações mundiais, eram
manufacturadas no Japão belas peças de mobiliário de sala, delineadas
segundo o estilo europeu e primorosamente ornamentadas com motivos
orientais inspirados pela fantasia e filosofia popular da China e do
Japão, pelo culto dos mitos e do espírito guerreiro, pelos efeitos
cenográficos e paisagísticos, pela significação emblemática das flores,
pela superstição ligada a certos animais e plantas, pelos emblemas
tradicionais e símbolos religiosos
−
tudo artisticamente executado em preciosas madeiras, nas quais os
trabalhos de charão, de escultura e de marchetaria atingiam admirável
expressão de realce, sobretudo aos olhos dos estrangeiros.
Talvez por serem a eles destinadas, convindo atender-se às condições de
transporte, eram esses móveis desmontáveis
−
e de tal arte o sistema de encaixe e fixação das respectivas peças, sem
cola nem prego, que faz lembrar as fases de imobilização dos membros no
sistema de luta japonesa sem armas, como é o Jiu-Jitsu.
Tais mobílias desapareceram há muito do mercado japonês, tendo sido
substituídas por outras mais simples, à moda europeia, não lacadas e de
menor preço, mas já sem interesse para os estrangeiros, por falta de
aliciante exotismo.
Não são propriamente para uso dos japoneses as mobílias no seu país
manufacturadas, como também o não são certos objectos de toilette
ou de escritório e tantos outros daquela mesma origem, mas apenas de uso
pessoal ou de adorno doméstico entre os povos do Ocidente.
Quem visite o Japão sem entrar numa casa tipicamente japonesa não pode
fazer ideia do seu interior apenas pelo
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que se observa nos hotéis de tipo europeu, nos consulados ou na
residência dalguma família estrangeira.
O que logo de entrada nela se nota é a ausência de
mobília, ficando por isso inteiramente expostas as esteiras que cobrem
todo o soalho, esteiras espessas e rígidas, de fibra fina e apertada e
de bordos lisos e rectilíneos (o que lhes permite um perfeito
ajustamento), sempre limpas e brilhantes, pois que não são pisadas pelo
calçado que andou na rua, excepto o dalgum estrangeiro, havendo, porém,
nesse caso o cuidado de se lhe adaptar macias galochas de pano, para
esse fim à vista na soleira da porta.
O tecto é apainelado de madeiras, em geral polidas, e
preferidas aquelas que, pela cor natural dos veios e disposição dos nós,
possam oferecer caprichoso arranjo de efeitos decorativos
−
como também sucede com um ou outro pilar destinado a encaixe de biombos.
Em lugar de cadeiras, há pequenas esteiras quadradas ou
almofadas, sobre as quais as pessoas se sentam ou ajoelham, apoiado o
corpo sobre os calcanhares.
A bem dizer, peças de mobília
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e essas mesmo retiradas quando não estão sendo utilizadas
−
são apenas uma mesinha de palmo e meio de altura, que serve de
secretária, desmontável, e uma espécie de caixa de meio metro quadrado
de face, com gavetas e escaninhos, a servir de toucador, o que aliás se
pode dispensar, bastando então dispor na esteira os artigos de
toilette, em volta da peça principal, em seu suporte articulado, o
tradicional espelho, o «símbolo da alma feminina», segundo o ditado do
país, espelho circular, de pega plana rectangular, todo de metal,
inclusive a superfície reflectora.
Em tamborete ao lado, fica, à guisa de candeeiro, uma
lanterna, de papel ou de seda, de vela ou de lâmpada eléctrica.
Ao fundo da sala, um largo degrau é o lugar reservado a
algum kakemono ou objecto de mais estimação, às tabuletas com os
nomes dos antepassados e às oferendas do seu culto. Não é raro ali
ver-se também um artístico sabre, representando o espírito guerreiro do
adepto da religião sintoista que em vida o encarnou.
Dissimulados por biombos e destinados a armários, são
certos vãos no madeiramento das paredes
−
com os quais já se conta ao fazer-se a casa, pois que ela é de madeira,
não só por ser isso indicado contra os frequentes tremores de terra
naquele país, mas também por lá ser de grande variedade e de baixo preço
aquele material de construção.
Também não há leitos; em seu lugar desenrolam-se na
ocasião própria, sobre as esteiras, largas mantas acolchoadas de algodão
em rama ou sumaúma.
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Os biombos (mesmo os articulados, de pano bordado, seda
pintada ou madeira lisa, lacada ou esculpida) não são lá usados
propriamente como peças de mobília, mas sim como divisórias da
habitação, conseguindo-se com o dispositivo desta espécie de bastidores
alterar em poucos segundos o cenário doméstico, transformando-se quartos
em salas e estas em alcovas, de bastante luz natural, porque as janelas
biombos são, fixos ou susceptíveis de deslizar no interior das paredes.
Em ambos os casos, com quadrículas de papel a servirem de vidros.
Esta ausência de mobília à moda europeia não quer dizer
que ela falte em todas as casas japonesas. Há, sim, em algumas, mas
reservada para as visitas de estrangeiros, sentindo-se os naturais do
país contrafeitos quando dela tenham de fazer uso.
Na China o adorno doméstico é mais complicado. Faz parte
dele a mobília, em geral, de feitio um tanto parecido com o das do
Ocidente.
A par da clássica mobília chinesa, pesada, de ébano liso
ou com incrustações de madrepérola ou marfim, há outra mais leve e mais
moderna, lavrada e com ou sem embutidos, em madeira de tamarindo ou de
teca.
Para as peças decorativas, de aplicação parietal, é
preferida a madeira de cânfora, para a meticulosa execução de admiráveis
trabalhos de talha.
Destacam-se também pelo exotismo artístico:
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as lanternas de vidro pintado ou de seda bordada; os candeeiros de mesa,
de pé e de suspensão; os quadros parietais em talha doirada; as
porcelanas e bordados de Cantão; as tapeçarias e brocados de Pequim; os
trabalhos de charão de Fuchao, etc.
São, pois, peças deste género de arte chinesa juntamente
com uma daquelas mobílias de sala outrora manufacturadas no Japão (em
cerejeira lacada a vermelho e oiro) que, na colecção de que se trata,
constituem a porção de maior vulto.
Lisboa, Março de 1946.
ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO
(Cor.-méd.)
Continua na pág. ??? do vol. ??
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