A. Nascimento Leitão, Uma secção oriental no Museu de Aveiro, Vol. XII, pp. 76-79

UMA SECÇÃO ORIENTAL

NO MUSEU DE AVEIRO

SERÃO um dia instaladas(1) no Museu de Aveiro uma colecção de mobiliário e doutros objectos de adorno de  manufactura oriental, e uma colecção de Numismática também de países e colónias do Extremo-Oriente.

Constam aqueles artefactos de cerca de 40 peças de mobiliário de sala e de guarnições parietais em talha doirada, além de mais de 150 peças de adorno e curiosidades, desde as sedas de homenagem, de metros de extensão, até aos bibelots de minúsculas proporções.

São quadros em talha e a óleo, aguarelas, kakemonos, litografias e fotografias; são quadros parietais, onde a paciência chinesa e o primor de execução estão postos à prova em trabalhos de cortiça, cujas figuras barcos, barqueiros, árvores e pagodes têm detalhes de fracção de milímetro. São bordados, tapeçarias e objectos de uso pessoal; são vasos, jarrões, taças, estatuetas e outros objectos, em porcelana, charão, esmalte (cloisonné), madeira, madrepérola, vidro, pedra, prata, cobre e bronze, da China, do Japão e de Sião.

Entre as curiosidades vê-se, por exemplo, um objecto aparentando um leque fechado, mas que na realidade é um afiado punhal, em sua bainha de charão instrumento de respeito entre os nipões, que o têm de reserva, para algum possível caso de prática solene do suicídio (hara-kiri). Mais além, escondidas, aconchegadas em algodão em rama, duas pérolas vivem e crescem, devido ao contacto entre si e à acção trófica dum pó (possivelmente da concha donde foram enucleadas).

Quanto à colecção de Numismática, totalizando centenas de moedas, na maioria chinesas, destacam-se algumas destas pelo seu feitio exótico, outras pela antiguidade (VI e V séc. A. C.), e ainda outras pelas suas dimensões e natureza do / 77 / material, pois são tijolos de chá comprimido (chá das caravanas) que, como moeda, tiveram curso entre as tribos nómadas da Mongólia e da Sibéria.

Tratando-se, assim, dum conjunto invulgar, não só de moedas, como também dos outros objectos, parece não serem descabidas (à medida que estes forem descritos) algumas notas
explicativas acerca do material de fabrico, local de origem, sua utilização e significado de certos motivos decorativos de vários exemplares que mais se destacam pela delicadeza dos lavores e pelo exotismo da sua apresentação.

Serão precedidas dalgumas considerações sobre a decoração doméstica no Japão e na China, seja para comparação, seja porque daquele seu meio foi desloca da a maior parte dos objectos.

Em tempos passados, muito antes das duas conflagrações mundiais, eram manufacturadas no Japão belas peças de mobiliário de sala, delineadas segundo o estilo europeu e primorosamente ornamentadas com motivos orientais inspirados pela fantasia e filosofia popular da China e do Japão, pelo culto dos mitos e do espírito guerreiro, pelos efeitos cenográficos e paisagísticos, pela significação emblemática das flores, pela superstição ligada a certos animais e plantas, pelos emblemas tradicionais e símbolos religiosos tudo artisticamente executado em preciosas madeiras, nas quais os trabalhos de charão, de escultura e de marchetaria atingiam admirável expressão de realce, sobretudo aos olhos dos estrangeiros.

Talvez por serem a eles destinadas, convindo atender-se às condições de transporte, eram esses móveis desmontáveis e de tal arte o sistema de encaixe e fixação das respectivas peças, sem cola nem prego, que faz lembrar as fases de imobilização dos membros no sistema de luta japonesa sem armas, como é o Jiu-Jitsu.

Tais mobílias desapareceram há muito do mercado japonês, tendo sido substituídas por outras mais simples, à moda europeia, não lacadas e de menor preço, mas já sem interesse para os estrangeiros, por falta de aliciante exotismo.

Não são propriamente para uso dos japoneses as mobílias no seu país manufacturadas, como também o não são certos objectos de toilette ou de escritório e tantos outros daquela mesma origem, mas apenas de uso pessoal ou de adorno doméstico entre os povos do Ocidente.

Quem visite o Japão sem entrar numa casa tipicamente japonesa não pode fazer ideia do seu interior apenas pelo / 78 / que se observa nos hotéis de tipo europeu, nos consulados ou na residência dalguma família estrangeira.

O que logo de entrada nela se nota é a ausência de mobília, ficando por isso inteiramente expostas as esteiras que cobrem todo o soalho, esteiras espessas e rígidas, de fibra fina e apertada e de bordos lisos e rectilíneos (o que lhes permite um perfeito ajustamento), sempre limpas e brilhantes, pois que não são pisadas pelo calçado que andou na rua, excepto o dalgum estrangeiro, havendo, porém, nesse caso o cuidado de se lhe adaptar macias galochas de pano, para esse fim à vista na soleira da porta.

O tecto é apainelado de madeiras, em geral polidas, e preferidas aquelas que, pela cor natural dos veios e disposição dos nós, possam oferecer caprichoso arranjo de efeitos decorativos como também sucede com um ou outro pilar destinado a encaixe de biombos.

Em lugar de cadeiras, há pequenas esteiras quadradas ou almofadas, sobre as quais as pessoas se sentam ou ajoelham, apoiado o corpo sobre os calcanhares.

A bem dizer, peças de mobília e essas mesmo retiradas quando não estão sendo utilizadas são apenas uma mesinha de palmo e meio de altura, que serve de secretária, desmontável, e uma espécie de caixa de meio metro quadrado de face, com gavetas e escaninhos, a servir de toucador, o que aliás se pode dispensar, bastando então dispor na esteira os artigos de toilette, em volta da peça principal, em seu suporte articulado, o tradicional espelho, o «símbolo da alma feminina», segundo o ditado do país, espelho circular, de pega plana rectangular, todo de metal, inclusive a superfície reflectora.

Em tamborete ao lado, fica, à guisa de candeeiro, uma lanterna, de papel ou de seda, de vela ou de lâmpada eléctrica.

Ao fundo da sala, um largo degrau é o lugar reservado a algum kakemono ou objecto de mais estimação, às tabuletas com os nomes dos antepassados e às oferendas do seu culto. Não é raro ali ver-se também um artístico sabre, representando o espírito guerreiro do adepto da religião sintoista que em vida o encarnou.

Dissimulados por biombos e destinados a armários, são certos vãos no madeiramento das paredes com os quais já se conta ao fazer-se a casa, pois que ela é de madeira, não só por ser isso indicado contra os frequentes tremores de terra naquele país, mas também por lá ser de grande variedade e de baixo preço aquele material de construção.

Também não há leitos; em seu lugar desenrolam-se na ocasião própria, sobre as esteiras, largas mantas acolchoadas de algodão em rama ou sumaúma. / 79 /

Os biombos (mesmo os articulados, de pano bordado, seda pintada ou madeira lisa, lacada ou esculpida) não são lá usados propriamente como peças de mobília, mas sim como divisórias da habitação, conseguindo-se com o dispositivo desta espécie de bastidores alterar em poucos segundos o cenário doméstico, transformando-se quartos em salas e estas em alcovas, de bastante luz natural, porque as janelas biombos são, fixos ou susceptíveis de deslizar no interior das paredes. Em ambos os casos, com quadrículas de papel a servirem de vidros.

Esta ausência de mobília à moda europeia não quer dizer que ela falte em todas as casas japonesas. Há, sim, em algumas, mas reservada para as visitas de estrangeiros, sentindo-se os naturais do país contrafeitos quando dela tenham de fazer uso.

Na China o adorno doméstico é mais complicado. Faz parte dele a mobília, em geral, de feitio um tanto parecido com o das do Ocidente.

A par da clássica mobília chinesa, pesada, de ébano liso ou com incrustações de madrepérola ou marfim, há outra mais leve e mais moderna, lavrada e com ou sem embutidos, em madeira de tamarindo ou de teca.

Para as peças decorativas, de aplicação parietal, é preferida a madeira de cânfora, para a meticulosa execução de admiráveis trabalhos de talha.

Destacam-se também pelo exotismo artístico: as lanternas de vidro pintado ou de seda bordada; os candeeiros de mesa, de pé e de suspensão; os quadros parietais em talha doirada; as porcelanas e bordados de Cantão; as tapeçarias e brocados de Pequim; os trabalhos de charão de Fuchao, etc.

São, pois, peças deste género de arte chinesa juntamente com uma daquelas mobílias de sala outrora manufacturadas no Japão (em cerejeira lacada a vermelho e oiro) que, na colecção de que se trata, constituem a porção de maior vulto.

Lisboa, Março de 1946.

ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO
(Cor.-méd.)

Continua na pág. ??? do vol. ?? − ►►►

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(1) Por futura doação do signatário destas linhas.

 

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