As ligações de EÇA DE QUEIRÓS com Aveiro, já pelos
laços familiares, já pela marca que dos tempos da infância aqui vividos se lhe imprimiu, não devem
considerar-se circunstâncias somenos na gestação da
personalidade do artista nem, sobretudo, no inventário dos
valores espirituais da região e dos motivos de ufania bairrista.
Apressada refundição de prosa antes dirigida à atenção
fugaz dos leitores de um diário, preito embora de um devoto
em constante enlevo, fruidor das belezas da sua obra quase
de todo destituído de dons críticos que destrincem do conjunto os pecadilhos ou aquilatem os graus de perfeição,
este
artigo representa apenas um depoimento aveirense nas homenagens do
centenário.
EÇA DE QUEIRÓS viveu sucessivos anos da sua infância
em Verdemilho, a pitoresca povoação arrabaldina de Aveiro,
na companhia dos avós − o conselheiro Joaquim José de Queirós e
Almeida, «infame, perverso e façanhoso» chefe
da revolução de 16 de Maio de 1828, e sua esposa D. Teodora Joaquina, a moça de Fornos de Algodres que de
Mangualde acompanhara o magistrado para o Brasil e durante o
período do domínio miguelista haveria algum tempo de expiar
no cárcere a irrequietude do marido, detestado cabeça de
motim, lutador impenitente e voluntarioso.
A tradição local e as menções dos biógrafos, todas
concordes e sem omissão, não permitem dúvidas de que
o pequeno José Maria ali residiu alguns anos da idade
/
317 /
tenra em que as impressões mais profundamente se gravam e se firmam, indeléveis, os primeiros traços do
carácter.
Na casa apalaçada de Verdemilho ouviu narrar os
episódios salientes das lutas políticas em que o avô andou envolvido e os exemplos de sacrifício pela Liberdade. Escutou
repetidas alusões à conspiração, com estritas cautelas maquinada no prédio
ermo da Quinta dos Santos Mártires − «loja»
maçónica olhada pela gente ingénua com prevenção e horror
que na tradição ficou por longo prazo como teatro de nefandas acções
sacrílegas. O local, na extrema da cidade e ao
termo da viela da D. Jerónima, velha azinhaga tortuosa e
sombria − considerado pela crendice popular «sítio pesado», onde não era
extraordinário, ao que se dizia, aparecerem
bruxas hediondas ou surgirem terríficos lobisomens − inspirava também
desconfiança e pavor.
O pequeno, de seu natural propenso às superstições,
povoava a imaginação de seres fantásticos e malfazejos e no
seu discernimento não atentava no destemor do conselheiro
Queirós, atravessando resoluto e despreocupado, pelas noites negras, tão
mal afamados caminhos. As audaciosas peripécias do avô perseguido, os perigos transpostos para escapar
à sanha dos adversários intolerantes e crus, obstinados como
mastins, ora escondido com a benévola conivência da boa
gente da terra na mina da Arregaça, ali a dois passos, ora
procurando o salvatério sob uma carga de bajunça e fugindo
com esta precaução imprevista numa bateira que o conduziu
a Ovar, tudo eram motivos para excitar a infantil imaginação,
que começava a abrir. Estimulavam-na os contos fantasiosos e estranhos
dos dois pretos, Pedro e Mateus, vindos da Baía
com o avô e de fresca data tornados cristãos na pia baptismal dalguma igreja das cercanias. E eram as lendas de
Carlos Magno e dos Doze de Inglaterra e as aventuras de
João de Calais, histórias de maravilhar, escutadas no conforto carinhoso dos joelhos do negro... Então, esgrouviado, macilento e enfermiço
− padre José parece que lhe chamava José Estêvão em tom
familiar e folgazão, para frisar a sua
palidez doentia − tentava por seu pé indeciso as primeiras
«explorações do mundo», hauria pelos sentidos plenos de
acuidade as novidades que lhe trazia a vida, e de alguma
eminência próxima tomaria contacto com os extensos horizontes que se alargavam à ria e ao mar, o mar para além do
qual nascera seu pai e ficavam as terras longínquas de que
lhe falavam os dedicados servos, humildes e pacientes, nas suas
narrativas ingénuas.
«Também o meu preto lia contos tristes das águas do
mar» recordará mais tarde. «As naus afundavam-se, os
gageiros gritavam terra»...
/
318 /
E o mesmo paladar de futuro «gourmet» afinava-se-lhe, saboreando com
delícia as cozinhadas da mulata Laureana, cujas iguarias, muitos anos
decorridos, foram ainda gulosamente apreciadas nas bodas festivas da
gente abastada do lugar.
Se na ascendência paterna se filia correntemente a
compleição débil do romancista, não será ousado procurar fundas influências
psicológicas na convivência travada em Verdemilho. A timidez que o
manteve apagado durante o tempo de Coimbra e o levaria a esconder a
qualidade de escritor por onde quer que viesse a exercer as funções
consulares, em larga medida poderá ter resultado de cuidados excessivos
dos avós, conservando-o em constante vigilância e entregando à criadagem fiel todo o esforço de vencer os obstáculos
e de aliviar-lhe qualquer sorte de tarefas. Os temores supersticiosos
do sobrenatural radicaram-se então na intimidade
dos negros crédulos, à evocação repetida de sortilégios e macabras
aparições.
O «snobismo» aristocrático não deixara já o avô
esquecer, apesar da humildade de nascimento e de recursos e das condições
subalternas em que acompanhou para a Universidade os filhos do fidalgo Casimiro Barreto, da Granja da Oliveirinha,
seus futuros companheiros de exílio na Inglaterra, os direitos à sua
carta de nobreza. O culto das letras encontrou-o no pai, o bardo
malogrado do Castelo do Lago e de outros poemas ultra-românticos,
dispersos e esquecidos, e já na geração anterior se manifestara em seu
tio avô, Fernando José de Queirós, comediante e autor teatral aplaudido, alvo de diatribes despeitadas do rancoroso padre
JOSÉ AGOSTINHO DE
MACEDO, e que, antes de superintendente dos tabacos, desempenhara,
segundo INOCÊNCIO, as mais modestas funções de carcereiro da comarca de
Aveiro.
A simpatia pelas classes populares, que haveria de cristalizar num vago
socialismo sentimental, vinha-lhe no sangue, por via paterna, e no trato
da gente humilde se acentuou.
O alheamento da acção política, transitoriamente desmentido nos entusiasmos moços que o levariam até à filiação na
Internacional e durariam os primeiros tempos de Lisboa, demonstrariam
ainda uma influência da idade infantil, embora
negativa − que o vírus político era causa de sobressaltos e
riscos, danos e sofrimentos, perspectivas indesejáveis para o futuro de
uma criança com inclinação para a serenidade, para placidez
sem história e para as despreocupações de outras lutas que não fossem as
espirituais.
E quantos, quantos mais traços de carácter se lhe
vincaram nestes anos de infância!
/
319 /
A casa de Verdemilho, única citada a propósito dos
tempos em que na região viveu o insuperável artista da prosa
portuguesa, sobressaliente pelo seu aspecto e grandeza das
demais construções da povoação, foi praticamente abandonada após a morte de D. Teodora Joaquina e entrou em
progressiva ruína. O dr. José Maria de Almeida Teixeira
de Queirós, pai do genial romancista, mostrou ainda o propósito de restaurá-la e com
esse intuito consultou um mestre
de obras aveirense. Os estragos, porém, atingiam já enormes proporções e, ante um orçamento incompatível com
as
suas reduzidas disponibilidades, viu-se forçado a desistir da
projectada obra e abandonar de vez o magnífico prédio. Desses
factos dava testemunho ainda há pouco mais de um ano, o
irmão do famoso panfletário do Povo de Aveiro, Manuel Homem Cristo,
por aquele tempo já homem feito e assalariado do construtor cuja estimativa fora solicitada.
|
Casa do avô de EÇA DE QUEIRÓS em Verdemilho. Grav. da "Revista
Ilustrada" de 30 de Setembro de 1890. |
O portal de granito com uma pequena escadaria de
acesso, desmantelados já os tectos e pavimentos, destruídas
as caixilharias, desaparecido o jardim que se estendia ao
longo da fachada e continuava por uma vasta propriedade
confinante com a estrada posteriormente aberta de Aveiro
/
320 /
para Ílhavo, perdurou intacto largo tempo, com o aspecto da conhecida
gravura que ilustrou, em 1890, o artigo do dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS,
na Revista Ilustrada, sobre a
«Casa do avô de Eça de Queirós em Verdemilho»(1). Só já
neste século, quando novos proprietários levantaram um
segundo pavimento e retiraram o brasão de armas − por iniciativa do sr. Acácio Rosa oferecido então ao Museu Regional
de Aveiro − desapareceram os degraus, e o prédio tomou a feição actual
quando nele se instalou a fábrica de serração que lá se encontra hoje.
Antes do estabelecimento industrial funcionou também nas ruínas da casa,
sujeitas a uma ligeira adaptação prévia, um teatrinho de aldeia, onde se
exibia o corpo cénico de um grupo recreativo local.
Esta era a casa a que habitualmente se alude nas referências à infância
do autor de Os Maias. Com as mais seguras probabilidades, porém, o
pequeno José Maria,
enquanto entregue aos cuidados da família paterna, não residiu só em Verdemilho, mas na própria cidade de Aveiro.
Ele mesmo, como
se revela numa carta dirigida a Oliveira Martins, se considerava
precisamente «filho de Aveiro», «quase peixe da ria», numa evocação
evidente aos tempos de criança que passara na cidade. Nessa carta mostra iniludível familiaridade com a região e o qualificativo de peixe da ria
parece indicar não apenas o contacto com a laguna nos períodos estivais
passados na Costa Nova ou a malhada do Ourô, a dois passos da casa dos
avós, onde as águas vão morrer, mas antes os canais que sulcam a cidade e
a envolvem, mais movimentados e vivos. Demais, não apresenta foros de
novidade a afirmação de ter vivido a família paterna na antiga rua Larga
até, pelo menos, ao falecimento de D. Ana Libânia (ou Ana Emília?), tia
do escritor, em Junho de 1852(2).
A vizinhança da residência de Mendes Leite, insinuante e galharda figura
aureolada por valorosa participação nas lutas da liberdade, tão firme
nos ideais políticos como versátil nas inclinações amorosas, não
explica por si só a romântica paixão que despertou em D. Ana Libânia.
Mas o dramático desfecho, esse, atribuiu-o o sentimento popular
/
321 /
[Vol. XI -
N.º 44 - 1945]
a que do caramanchão de sua casa, quase fronteira, se houvesse dolorosamente
certificado de que fora menosprezado
e traído o seu amor ardente, amor obsessivo que lentamente
consumiu a formosíssima senhora(3).
O domicílio da família Queirós era pois, por essa data,
e, como atesta o Dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS, no preciso
local onde, haverá meio século, esteve instalada a esquadra
de polícia e mais tarde o visconde de Valdemouro fez construir o
palacete hoje ocupado pelo Governo Civil. Lá morou,
certamente, o pai do insigne escritor, quando em 1852 fundou o Campeão do
Vouga com José Luciano de Castro e Manuel
Firmino de Almeida Maia, e na cidade, já então casado há
cerca de três anos, se conservou durante largos meses; pois
já no ano anterior toma parte nos preparativos para a saída
do periódico e nele figura como redactor principal de 14 de
Fevereiro a 17 de Abril, altura em que foi reintegrado na
magistratura.
Manteria a família Queirós duas casas: uma na aldeia,
outra na cidade? Parece verosímil que assim sucedesse,
pois D. Ana Libânia, segundo a tradição encontrava-se em
Aveiro quando, por volta de 1846, Manuel José Mendes Leite
regressou de França, do exílio, com a senhora francesa com
quem casou. E, no entanto, a morte do conselheiro Queirós ocorreu em
1850, na casa de Verdemilho.
Anteriormente residira também na Vera Cruz, no prédio
actualmente habitado pelo sr. dr. Manuel Pereira da Cruz,
outro tio do escritor, Bernardo de Almeida Teixeira de Queirós, que
dirigiu a repartição local dos correios e, segundo
parece, veio a falecer em consequência de uma vida
desregrada, com pouco mais de trinta anos(4). Não se afigura
natural estar um prédio tão amplo ocupado apenas por um
homem solteiro e antes parece de admitir que já então residisse em Aveiro toda a
família. Pouco importa que assim sucedesse, neste caso hipotético.
O que não pode logicamente deixar de aceitar-se é que
EÇA DE QUEIRÓS − «um pobre homem da Póvoa do Varzim» que se declarava
«filho de Aveiro» − viveu com a família no prédio da rua Larga.
/
322 /
*
* *
Talvez o desejo de evitar a lembrança, sempre zelosamente evitada, do
seu nascimento rodeado de anormais circunstâncias, talvez o pudor de associar aos seus sarcasmos as esfumadas
recordações de criança, poetizadas pelo tempo na sua perspectiva
deformadora e valorizadora e, assim, deslocadas na galeria de tipos
rasteiros, chochos e grotescos que criou, tivessem levado EÇA DE QUEIRÓS
a quase omitir na sua obra de ficção as referências a Aveiro.
Em A Capital aparece uma simples menção ao
Campeão de Aveiro, reminiscência flagrante do jornal fundado pelo pai. Além desta apenas em
Os Maias se encontram alusões aos ovos moles, a especialidade afamada
−
«doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro é que tem chic»..., elucida hiperbolicamente o fátuo pateta do
Damasosinho − e ao gabão, agasalho então em voga por todo o país, dentro
do qual se encolhia o «famoso Craveiro» enquanto meditava a «Morte de
Satanás», e que o próprio Carlos da
Maia, elegante e rico, não desdenhava de encafuar nas suas visitas à
«Toca», para mais fácil dissimulação.
Lembranças propriamente de Aveiro, só naquela carta a Oliveira Martins,
que vale, por assim dizer, como um pedido de naturalização − «filho de Aveiro, educado na Costa Nova,
quase peixe da ria»... Os aveirenses, com
efeito, consideraram-no sempre quase como conterrâneo, quase como uma
glória da sua terra, embora os acasos do nascimento o fizessem
poveiro. Por muito tempo acalentaram mesmo a esperança − duas vezes
gorada − de guardar os seus restos mortais.
Em 1900, após uma reunião efectuada a 28 de Agosto no Grémio Aveirense,
chegou a constituir-se uma comissão sob o entusiástico impulso do dr.
Joaquim de Melo Freitas, para organizar as cerimónias da trasladação,
então anunciada, para o cemitério do Outeirinho. E mais tarde, em 1932,
como já recordou nesta revista(5) o sr. ACÁCIO ROSA, a viúva do grande
escritor manifestou de novo esse propósito. Soçobraram já todas as
esperanças de conseguir essa suprema honra.
Notemos todavia que um único documento oficial aponta EÇA DE QUEIRÓS
como natural de Aveiro... a sua certidão de óbito. E há coincidências
que representam indesvendáveis desígnios.
EDUARDO CERQUEIRA |