I
EÇA DE QUEIRÓS tem sido e continua a ser apontado, mormente por escritores católicos, como declarado
inimigo da Igreja. Há nisso muito exagero e paixão. Que ele não era católico militante e que a sua veia humorística e sarcástica não poupava coisas e pessoas do
catolicismo, toda a gente o sabe, e fácil seria documentá-lo; mas daí
até se concluir que a Igreja Católica teve nele um inimigo intolerante e
faccioso vai, segundo nos parece, grande distância.
Os principais corpos de delito que contra
ele se costumam apresentar são
− O Crime do Padre Amaro − e − A Relíquia −, romances cuja acção se passa em meios
devotos, ou, para melhor dizer, em meios beatos. Discute-se se essas
duas obras − em que, diga-se de passagem, se nos revela uma das mais
características facetas do escritor − terão, em última análise, um fim
morigerador, ou se nelas o autor apenas se comprouve em votar à
execração dos leitores uns tantos caracteres mais ou menos repelentes.
A paixão, aqui como em tudo, leva aos maiores exageros. Tais obras
devemo-las olhar no seu conjunto, no seu aspecto geral; e assim,
quer-nos parecer que, fundamentalmente, se apresenta, no primeiro dos
romances, e implicitamente se castiga, o mau padre, e no segundo se
condena o tartufismo de uma personagem − Teodorico, sobrinho da
fanática D. Patrocínio −, embora, por vezes, com seu traço caricatural.
Observadas doutro modo essas obras, podemos ser conduzidos a
erro ou
a injustiça. Lemos há tempos, no
/
291 / volume
XXX da revista «Brotéria», um estudo, intitulado − O Padre em Eça −, no qual o autor, depois de percorrer
toda a obra do romancista, reconhece vários tipos de padres,
que assim cataloga: o padre-sensual [Amaro, Dias, Natário
e Brito, de «O Crime»; Ferrão, Casimiro e Pinheiro, de
«A Relíquia»]; o padre-funcionário [Salgueiro, da «Correspondência de Fradique Mendes»]; o
padre-boa-pessoa [Augusto, de «O Conde de Abranhos»; o abade Custódio,
de «Os Maias»; Soeiro, de «A Ilustre Casa de Ramires»;
abade de S. José, de «A Cidade e as Serras»]; e, finalmente,
o padre ideal, e com ideais, de que declara só conhecer o
«frade de Varatojo» a que Eça se refere na «Correspondência
de Fradique Mendes».
No final do seu estudo, se
bem que procure ser justo
para com o nosso escritor, o autor do citado artigo está bastante longe de atingir, não diremos a justiça absoluta, mas
uma justiça que possamos classificar de razoável. Diz ele: − «Eça de
Queirós tinha da missão do padre uma ideia muito
elevada, embora ainda imperfeita, ideia que é tanto mais para
admirar, quanto são bem conhecidas as deficiências profundas
das suas crenças religiosas. − Esta elevação de ideais, em
relação ao sacerdócio, concorreu poderosamente, embora não exclusiva nem predominantemente, para provocar, da sua
parte, críticas mordazes e caricaturais ao padre-sensual e ao
padre-funcionário. − Não se pode, contudo, admitir, sem
exame prévio, a objectividade histórica e psicológica das
figuras sacerdotais que surgem ao longo dos seus romances,
e isto pelos motivos que acima indicamos e pela falta de
inteira compreensão da verdadeira missão religiosa do padre. − Em todo o caso, julgamos não terá sido de todo inútil
chamar a atenção para o que de positivo se nos depara em
relação à figura do sacerdote católico, na sua vasta e valiosa
produção literária. − Eça de Queirós, felizmente, não é
apenas o autor de «O Crime do Padre Amaro»... ».
Ora na primeira versão de «O Crime» figura um padre
− o cónego Silva −, que bem pode servir para contrariar
certas afirmações do autor que citámos e para mostrar quanto
estão sujeitos a erro os que só reconhecem em Eça o escritor
iconoclasta e irreverente. Contrapondo-o aos maus padres
do seu romance, que sem dúvida copiou do natural, Eça
pinta desta forma o mencionado cónego: -« O cónego Silva
era um homem alto e gordo, todo branco já, extremamente
asseado. Era filho de um negociante. Uma pessoa tranquila,
benévola, paciente. Punha nos seus deveres uma minuciosidade regular e
fiel. Tinha uma natureza delicada e consoladora, gostando de aconselhar,
de proteger. Havia um tacto feminino, quase maternal, nos seus modos.
Era exclusivamente padre, e a sua conezia, cujo recato tranquilo ele amava,
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292 /
isolava-o das cousas da cidade e dos interesses civis. Tinha
a paixão do latim; possuía uma livraria inteligente e valiosa,
e dizia-se em Leiria que traduzira o livro de Tácito − De Germania −; mas, vivendo num meio espesso, iletrado e plebeu, não falava
dos seus trabalhos: somente às nove horas da noite, recolhia,
agasalhando-se cuidadosamente na capa, e os
padres e as devotas que o conheciam diziam: − «Vai-se agarrar aos calhamaços». O cónego Silva estava em Leiria,
esquecido no coro dos cónegos, havia vinte anos. Os outros
padres não o estimavam, e a sua clareza de costumes, límpida e honesta,
irritava aqueles temperamentos carnais.
As devotas voltavam escandalizadas das suas palavras risonhas, ditas em
voz alta, com um senso lúcido e um vago colorido irónico. Mas a sua
ciência e os seus talentos jurídicos, o seu amor aos pobres e uma grande
decisão davam-lhe uma autoridade vitoriosa. Diante dele, os outros
padres viam-se obrigados a conservar o recato eclesiástico».
Esta figura fê-la o autor desaparecer, não se sabe porquê, na segunda
redacção da obra, em que somente aparecem os citados padres-sensuais,
pertencentes à primeira das categorias fixadas pelo articulista da «Brotéria»,
na qual o melhor de todos talvez seja, apesar de tudo, o Padre Amaro!
Na última redacção, porém, ou seja naquela que o vulgar dos leitores
conhece, vemos um tipo de bom padre que o articulista mencionado, ou de
propósito − o que não é sério −, ou por muito lamentável esquecimento, não
incluiu no seu catálogo: é o do simpático e bondosíssimo padre Ferrão −
«abade Ferrão» escreveu EÇA, à francesa −, confessor e director
espiritual de Amélia, quando esta foi levada para a quinta de D. Josefa,
na Ricoça.
Esta figura de sacerdote, simples desenvolvimento da
do cónego Silva da primeira versão, consideramo-la o melhor argumento que se pode invocar a favor de EÇA DE QUEIRÓS.
E o padre-ideal do escritor, para quem, com certeza, nem todos os padres
eram Amaros, nem Dias, nem Natários, nem Britos... O que Eça tacitamente nos
quer sugerir é que o número dos
maus padres superava o dos padres ideais, dos padres cônscios da sua
missão e das suas responsabilidades. E... devemos convir que o
romancista talvez tivesse razão. Tê-la-ia no seu tempo; por certo a não
teria hoje, pois como há pouco acentuou o Sr. António Eça de Queirós,
filho do escritor, defendendo-o de acusações de um jornal católico, é de
crer que «O Crime do Padre Amaro», castigando o mau clero, haja
contribuído para a diminuição do número dos maus pastores...
Mas quem era o padre Ferrão? Vejamo-lo, através das palavras do
romancista. Escreve EÇA DE QUEIRÓS: − «Havia muitos anos que ali era abade. Os bispos tinham-se sucedido na
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293 / diocese, e
ele ali ficara esquecido naquela freguesia
pobre, de côngrua atrasada, numa residência onde chovia
pelos telhados... − Ali ficara, entre gente pobre, numa aldeia
de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chávena de leite, com uma batina onde os remendos faziam um
mapa, precipitando-se a uma meia légua de distância por um temporal
desfeito, se um paroquiano tinha uma dor de dentes,
passando uma hora a consolar uma velha a quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com
um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma necessidade do seu vizinho, grande amigo de todos os rapazitos, a
quem fazia botes de cortiça, e não duvidando parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguesia, e exclamar:
«Linda moça! Deus a abençoe!» − E todavia, a
pureza dos seus costumes era tão célebre, que lhe chamavam
«a donzela». − De resto, padre perfeito no zelo da Igreja,
passando horas de estação aos pés do Santíssimo Sacramento, cumprindo
com uma felicidade fervente as maiores práticas
da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia com
uma profunda oração mental, uma meditação de fé, donde a
sua alma saía mais ágil, como de um banho fortificante; preparando-se para o sono com um destes longos e piedosos
exames de consciência, tão úteis, que Santo Agostinho e
S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarco e Séneca,
e que são a correcção laboriosa e subtil dos pequenos defeitos,
o aperfeiçoamento da virtude activa, empreendido com um
fervor de poeta que revê um poema querido. .. E todo o
tempo que tinha vago, abismava-se num caos de livros.
Tinha só um defeito o abade Ferrão: gostava de
caçar!»
Confessor de D. Josefa, que aliás o não estimava e até
por fim o repelia, o padre Ferrão passou a interessar-se por
Amélia, tão infeliz! Conversava com ela, dava-lhe conselhos, guiava-a. Depois, foi seu confessor.
Entrando em relações com João Eduardo, outra vítima
de Amaro e agora mestre dos filhos de Morgado de Poiais,
«encontrara − diz Eça − um pobre moço sensível, com uma
religião sentimental, ambições de paz doméstica e prezando
muito o trabalho. Então viera-lhe uma ideia que, sobretudo
por lhe ter acudido um dia que saía das suas devoções ao
Santíssimo, lhe pareceu descida de cima, da vontade do Senhor: era
casá-lo com Amélia. Não seria difícil levar aquele coração fraco e
terno a perdoar o erro dela; e a
pobre rapariga, depois de tantos transes, extinta aquela
paixão que lhe entrara na alma como um sopro do demónio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor de empurrão
para o abismo, encontraria na companhia de João Eduardo
todo um resto de vida calmo e contente, um canto suave de
interior,
/ 294 / refúgio doce e purificação do passado. Não falou a um nem a
outro nesta ideia, que o enternecia. Não era
o momento, agora que ela trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia
preparando com amor aquele resultado, sobretudo quando estava com
Amélia, contando-lhe as suas conversas com João Eduardo, algum dito muito sensato que
ele
tivera, os bons cuidados de preceptor, que estava desenvolvendo na
educação dos morgaditos.
− É um bom rapaz!. − dizia −. Homem de família... Destes a quem uma
mulher pode realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu
pertencesse ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lha...
Amélia não respondia, corando. Já não podia objectar àqueles elogios
persuasivos a antiga, a grande objecção − o comunicado, a impiedade! O
abade Ferrão destruíra-lha um dia com uma palavra:
− Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não escreveu
contra os sacerdotes: escreveu contra os fariseus!
E, para atenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera havia muitos anos, acrescentou:
− Enfim, foi uma falta grave... Mas está muito arrependido. Pagou-o com lágrimas, e com fome.
E isto enternecia Amélia».
«Não escreveu contra os sacerdotes: escreveu contra
os fariseus...». Estas palavras do padre Ferrão podemos
também julgá-las proferidas pelo próprio EÇA contra os seus detractores. EÇA não escreveu
contra os padres, em geral:
escreveu contra os maus padres!
Concluindo: EÇA DE QUEIRÓS esboçou, na primeira redacção de «O Crime»,
um tipo de sacerdote modelo. Na edição de 1876, não encontramos essa
figura; mas na redacção definitiva, certamente com o intuito de não
poder continuar a ser acusado de parcial ou faccioso para com o clero
português, ofereceu aos leitores essa bondosa figura de sacerdote a que
chamou «abade Ferrão». Para isso, para ser verdadeiro e justo, não
era essencial que possuísse profunda cultura religiosa ou sólida
formação católica: bastou-lhe transportar para o seu romance um tipo de
padre conhecido, talvez um pouco retocado para que o seu ideal de
sacerdote fosse atingido.
II
Outra acusação que é vulgar fazer-se ao escritor é a do seu
antipatriotismo. «Ler os livros de EÇA − escreveu um publicista, dos
mais ferrenhos e facciosos inimigos de EÇA − é descrer da pátria e da
família».
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295 /
'Isto não é verdade! Isto é mais uma prova da parcialidade de certa crítica, que se entrega com satisfação à rebusca,
na larga obra do imortal romancista, de alguma coisa que lhe possa
obscurecer ou diminuir a glória.
Ora, a respeito de Portugal, EÇA tomou uma de três
posições: ou pôs na boca de personagens dos seus romances
palavras ou frases que traduzem o ambiente de indiferença e
cepticismo pela marcha dos negócios públicos, da falta de
confiança nos destinos do país, quando se não trate de simples manifestação de snobismo; ou se deixou levar nessa
onda de desconfiança, manifestando também o seu desânimo;
ou afirma, com segurança e firmeza, um patriotismo, que,
apesar de diferente do dos seus inimigos, não deixa por isso
de ser digno de respeito.
Vários exemplos, que vamos extrair da obra queirosiana,
valerão mais, para o defender, do que o mais ardoroso dos elogios.
Vejamos primeiro alguns passos de uma cena de
«Os Maias». Assistimos, com o autor, a um jantar de rapazes
no Hotel Central, em Lisboa:
«Ega, porém, incorrigível nesse dia, soltou outra enormidade:
− Portugal não necessita de reformas, Cohen; Portugal
o que precisa é a invasão espanhola!
Alencar, patriota à antiga, indignou-se. O Cohen, com
aquele sorriso indulgente de homem superior, que lhe mostrava os bonitos dentes, viu ali apenas «um dos paradoxos
do nosso Ega». Mas o Ega falava com seriedade, cheio de
razões. Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda
absoluta de independência. Um receio tão estúpido é digno
só de uma sociedade tão estúpida como a do Primeiro de Dezembro. Não
havia exemplo de seis milhões de habitantes
serem engolidos, de um só trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois, ninguém consentiria
em deixar cair nas mãos da Espanha, nação militar e marítima, esta bela linha de costa de Portugal. Sem contar com
as alianças que teríamos a troco das colónias, como a prata
de família aos morgados arruinados, para ir empenhando em
casos de crise... Não havia perigo: o que nos aconteceria,
dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria
levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas províncias, ver talvez a
Galiza estendida até ao Douro...
− Poulet aux champignons
− murmurava o criado,
apresentando-lhe a travessa.
E, enquanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados
onde via ele a salvação do país, nessa catástrofe que tornaria povoação espanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico,
berço de heróis, berço dos Egas...
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296 /
− Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio
português! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados,
tínhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em
que bela situação nos achávamos! Sem monarquia, sem essa caterva de políticos, sem
esse tortulho da inscrição, porque tudo
desaparecia, estávamos novos em folha, limpos, escarolados, como se
nunca tivéssemos servido. E recomeçava-se uma história nova, um outro
Portugal, um Portugal sério e
inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo
civilização como outrora. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . .
E, no silêncio que se fez, Dâmaso..., ocupado a observar Carlos com
religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com ar de bom senso e de
finura:
− Se as cousas chegassem a
esse ponto, se pusessem assim feias, eu cá, à cautela, ia-me raspando
para Paris...
Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de
Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar-se,
pirar-se!... Era assim que, de alto a baixo, pensava a sociedade de
Lisboa, a malta constitucional, desde El-rei, nosso senhor, até aos
cretinos da secretaria!
− Meninos, ao primeiro soldado espanhol que apareça à fronteira, o
país em massa foge como uma lebre! Vai ser uma debandada única na
História!
Houve uma indignação; Alencar gritou:
− Abaixo o traidor!»
Não é de admirar, portanto, que EÇA DE QUEIRÓS, aqui, neste tão pungente
quadro, 'simples cronista do descrédito a que as instituições haviam
chegado, tenha também escrito aquelas palavras de descrença e desânimo,
com que lhe aprouve fechar o derradeiro capítulo de «O Crime do Padre Amaro»:
− «E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha,
junto às grades do monumento (de Camões), gozavam de cabeça alta esta
certeza gloriosa da grandeza do seu país, − ali, ao pé daquele pedestal,
sob
o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus
largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada
firme, cercado dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria −
pátria para sempre passada, memória quase perdida!»
Falta de patriotismo? Não, por certo!
No admirável conto de − «A Catástrofe»
−, publicado
em 1925 apenso ao «Conde de Abranhos», o autor, depois de pintar as
misérias de uma suposta invasão do nosso país, termina assim: − «...
todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e
mostro-lhes a sentinela.
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297 /
Mostro-lha passeando devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o
edifício ao cálido sol de Julho, e embebo-os do
horror, do ódio daquele soldado estrangeiro... Conto-lhes
então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história...
Depois, aponto-lhes o futuro e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta casa em que habitam, desta janela,
vejam sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E, para isso, mostro-lhes o caminho seguro
− aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer; e,
sendo pequenos pelo território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força
de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a
desprezarem, como nós fizéramos outrora. − Como me lembro! Íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna e,
entre duas fumaças, dizer indolentemente:
− Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui,
está nas mãos dos outros!
... ... ...
... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ...
... ... ...
Ah, geração covarde! Foste bem castigada!»
Agora, um trecho em que amplamente se manifesta o patriotismo activo,
forte, inteligente, do grande escritor.
Pertence ao artigo − «Brasil e Portugal» −, dirigido, em
forma de carta, a Pinheiro Chagas, em Dezembro de 1880 − vinte anos antes de falecer.
Ei-lo:
«É que há duas espécies de patriotismo, meu caro Chagas.
Há, em primeiro lugar, o nobre patriotismo dos patriotas: esses amam a Pátria, não dedicando-lhe estrofes, mas com a
serenidade grave e profunda dos corações fortes. Respeitam
a tradição, mas o seu esforço vai todo para a nação viva, a
que em torno deles trabalha, produz, pensa e sofre; e, deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas,
ocupam-se da Pátria contemporânea, cujo coração bate ao
mesmo tempo que o seu, procurando perceber-lhe as aspirações, dirigir-lhe as forças, torná-la mais livre, mais forte,
mais culta, mais sábia, mais próspera, e, por todas estas
nobres qualidades, elevá-la entre as nações. Nada do que
pertence à Pátria lhes é estranho: admiram, decerto, D. Afonso
Henriques, mas não ficam para todo o sempre petrificados
nessa admiração; vão por entre o povo, educando-o e melhorando-o, procurando-lhe mais trabalho e organizando-lhe mais
instrução, promovendo sem descanso os dois bens supremos − Ciência e Justiça. Põem a Pátria acima do interesse, da ambição e
da gloríola; e, se têm por vezes um patriotismo
estreito, a sua mesma paixão diviniza-os. Tudo o que é seu
dão à Pátria; sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força.
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298 /
Dão-lhe sobretudo o que as nações necessitam mais e o que
só as faz grandes: dão-lhe a verdade. A verdade em tudo: em História, em Arte, em política, nos costumes. Não a adulam, não a iludem:
não lhe dizem que ela é grande porque
tomou Calicut; dizem-lhe que é pequena porque não tem
escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: − «Tu
és pobre: trabalha; tu és ignorante: estuda; tu és fraca: arma-te! E,
quando tiveres trabalhado, estudado; quando te tiveres armado, eu, se necessário for, saberei
morrer contigo». Eis o nobre patriotismo dos patriotas.
O outro patriotismo é diferente. Para quem o sente, a Pátria não é a
multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna, mas a outra
Pátria, a que há trezentos anos
embarcou para a índia, ao repicar dos sinos, entre as bênçãos
dos frades... Esse... a sua maneira de amar a Pátria é tomar
a lira e dar-lhe lânguidas serenadas».
Era deste quilate o patriotismo de EÇA.
Erro grosseiro,
portanto, e grande injustiça, o avaliá-lo pelas palavras de desânimo ou
de cepticismo, ou pelas manifestações de humorismo ou ironia − tão vincadas características do
escritor −, que os
homens − ele próprio incluído − ou os acontecimentos por vezes lhe
mereceram.
FIDELINO DE FIGUEIREDO escreveu há pouco,
em prefácio que corre à frente
de uma obra de crítico argentino(1), palavras das mais penetrantes e
argutas que se têm publicado sobre o glorioso romancista e inexcedível
artista da palavra
escrita, cujo primeiro centenário natalício este ano se comemorou. Depois de afirmar que «EÇA DE QUEIRÓS, como o
grupo glorioso de artistas em que se enquadra, representa, mesmo nos
seus momentos de mais impiedosa sátira, a verdadeira tradição literária
dos portugueses − o espírito de universalidade», e que «a curiosidade
aventureira dos portugueses
e essa amplitude de espírito da sua literatura, sob a forma
lírica de sondagem profunda do drama íntimo de cada um, o seu descontentamento indefinido e a sua aspiração indefinida»,
nunca se haviam apagado através dos tempos, o ilustre autor citado traça
estas palavras lapidares: − «É do puro domínio da inteligência a
inquietação de EÇA DE QUEIRÓS, que varejava tipos e recantos sociais para lhes incutir o
descontentamento e lhes criar a necessidade do grande ar e do ar novo. E
fê-lo de longe, porque Portugal só se entende bem de longe; e voltou,
pelo menos em espírito, porque os
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299 /
portugueses voltam sempre. É, por isso, com seus francesismos e tudo, profundamente português e profundamente
humano».
NOTA − A nossa colaboração deste volume do
Arquivo (Fascículos n.os 41,43 e 14) sobre o autor de
«O Crime do Padre Amaro» constituiu o
essencial da conferência que sob o titulo de − Alguns aspectos da obra de
Eça
de Queirós − fizemos no Ginásio do Liceu de José Estêvão, na noite
de 24 de Novembro, na sessão comemorativa do 1.º centenário queirosiano,
presidida pelo Governador do Distrito (Dr. Cirne de Castro),
secretariado
pelo Comandante de Infantaria n.º 10 (Coronel Amaral) e pelo Presidente
da Câmara (Dr. Álvaro Sampaio). Terminou a sessão com a apresentação
de um arranjo cénico do conto de EÇA − O Tesouro −, interpretado por alunos do 7.º ano e pelo ensaiador, professor de ensino primário José
Duarte
Simão; e, seguidamente, na biblioteca do Liceu esteve patente uma exposição bibliográfica e iconográfica de EÇA DE QUEIRÓS, da iniciativa da
Direcção do Clube Beira-Mar.
Nisso se cifrou a
colaboração de Aveiro nas comemorações do 1.º centenário do neto de
Joaquim José de Queirós.
Aveiro, Novembro de 1945
JOSÉ PEREIRA TAVARES |