Soares da Graça, Curia, Vol. XI, pp. 62-77

CURIA

SUA ESTÂNCIA E ARO TURÍSTICO

JÁ bem conhecida de nacionais e estrangeiros, a Curia, tornou-se um belo centro de atracção mundana, e tem visto crescer, dia a dia, o número dos seus admiradores, que ali acorrem não só para passar por lá umas horas fugidias de recreio, mas também para se fixarem em estadias mais ou menos longas, de salutar repouso; ela é sem dúvida alguma, hoje, um marco bem saliente no turismo nacional. A fisionomia característica da paisagem que a rodeia dá-lhe um cunho de beleza muito especial, e da amenidade do solo em que assenta, na fértil campina do Cértima, que lhe corre perto, refrescada por abundantes águas que por ali brotam a cada passo, tendo em redor tufos verdes de pinheiros e encostas revestidas de vinhedos − resulta a pujança da vegetação que envolve a estância, com as suas agradáveis e apetecidas sombras. Razão tinha um conceituado e antigo escritor para escrever, referindo-se à Bairrada, no coração da qual está incrustado este formoso recanto da Curta: terreno fecundo e abundante de tudo o preciso para a vida e regalo do homem(1).

Justas palavras estas, pois ali está-se, na verdade, em presença dum solo rico e ameno, e dum dos mais lindos pedaços de terra portuguesa.

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A estância da Curia tem progredido notavelmente nos últimos anos, mercê do interesse que as sucessivas Direcções da Empresa lhe têm dispensado, embelezando cada vez mais o Parque, dotando as várias instalações como conforto e / 63 / aparelhagens necessárias, etc., tendo sido simultaneamente acompanhadas pelo esforço particular, numa ânsia persistente de renovação. Ali há já também, devidamente instalados, os serviços de Turismo, iniciativa que se ficou devendo a um ilustre filho da terra, que às coisas da Curia e da região consagra vivo e apaixonado culto(2). Era uma lacuna que estava em aberto, e, mercê destes serviços, o estudo e a propaganda da região, tendentes a um melhor e mais dilatado conhecimento dela, hão-de fazer-se; o pequeno trabalho que segue, cuja publicação é promovida pelo Departamento do Turismo local, é o primeiro passo dado neste sentido.

CURIA − Edifício onde se encontra a nascente e onde se tomam as águas.
Postal ilustrado editado pelo Bazar Soares, Porto, com as dimensões de 91x137 mm e fotografia da autoria de Soares Leitão. Da colecção A. Simões, no espaço «Aveiro e Cultura»

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Como surgiu a estância da Curia? Como nos aparece ali este nome? Comecemos por aqui.

Curia, é nome que os documentos antigos não referem. O nosso primeiro rei − D. Afonso Henriques − coutou várias / 64 / terras das redondezas pelos anos de 1178, como a Orta, Mata, Aguim e Tameagos(3), hoje sede da freguesia; mas da Curia não se fala, e este silêncio continua, por muitas dezenas de anos; nos velhos tombos do registo paroquial de Tamengos, que alcançam os meados do século XVII, também aquela designação não aparece, embora dali constem nomes de pequenas povoações hoje já desaparecidas. Nessa época, havia os lugares de Aguim, Orta, Espinhal, Mata, Vendas, Vila Franca, Vale de Cid, Alpalhão e Corga, não existindo hoje destes, Vila Franca, Vale de Cid e Corga, embora estes nomes ficassem na toponímia local a designar prédios rústicos ali existentes; de algumas das povoações extintas ainda há quem se recorde(4). Curia é nome que surge mais tarde, e não se sabe ao certo a sua origem. Duas versões se apresentam para a explicar: uma delas era perfilhada pelo falecido médico Dr. Luís Navega, que durante cerca de 40 anos foi director clínico da estância, a cujo desenvolvimento e progresso ligou o seu nome. Era ele de opinião que a palavra Curia, derivava de curaria ou curtimento do linho, e baseava-se para isso no facto de ali muito próximo haver grande afluência de águas, que irrigavam toda a várzea, o que facilitaria o curtimento dos linhos, cuja cultura era feita na região, ligando ainda isto à circunstância de existirem numerosas tecedeiras nos lugares limítrofes da Curia.
Se bem que pouco consistente, é uma hipótese que se regista; mas há uma outra versão −  a que devemos classificar de técnica, ou erudita
(5).

Admite o ilustre filólogo − que não conhece referências ao nome «Curia», antes de 1863, −  que a palavra possa derivar da forma feminina de qualquer nome de relação arábica, tendo em vista que o apelido Curí, foi usado entre os moçárabes de Toledo no século XII, estando talvez representado em Portugal no topónimo Corim (freg.ª de Águas Santas − Maia), e o seu feminino seria Curia, aplicado a nome de mulher... Seja porém como for, o que é certo é que o nome aí está, ligado à formosa estância, e, ou ele venha de curaria, palavra que fazia recordar a tarefa do linho, outrora tão nos hábitos do nosso povo, ou tenha a sua origem no nome de alguma dama célebre que por ali passasse em épocas recuadas − a verdade é que, para nós, a terra tem o mesmo valor e os mesmos encantos... / 65 / [Vol. XI - N.º 41 - 1945]

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Não conta a estância muitas décadas de existência.

Foi no último quartel do século passado que se começou a falar das qualidades terapêuticas da água da Curia, relacionando-a com certos casos de cura que se operaram, mas nada de definitivo se fixara cientificamente; iam-se entretanto verificando curas extraordinárias, que a certa gente mais crédula chegaram a parecer milagres, e daí começar o local onde existia um poço de águas lamacentas a ser frequentado, não só por pessoas da região, mas até de pontos muito distantes, que ali acorriam na ânsia de obter remédio para seus males(6).

Com a invasão da filoxera na Bairrada, pelos anos de 1884 a 1885, desapareceram as vinhas existentes à volta da nascente, e passados alguns anos, «a Curia era simplesmente um ermo. Lá estava, porém, no seu abandono de sempre, um enorme veio de água a borbulhar numa poça de aspecto repelente, uma espécie de lameiro, ou, antes, um charco cheio de lodos, limos e ervas parasitárias que causava náuseas, e até pavor»(7).

Nestas ligeiras palavras fica traçado o quadro que se oferecia à vista de quem daquele local se aproximava, sem decerto poder futurar em face dele a mudança acelerada que veio a ter a sua fisionomia.

Em 1863, época da construção da linha férrea do Norte nas proximidades da Curia, espalhou-se por toda a parte a notícia da cura de um empreiteiro francês que veio trabalhar nas obras ali em curso, pois que tendo ele feito aplicação daquelas águas a umas chagas que há muitos anos tinha numa perna, conseguiu curar-se delas: foi isto causa da maior sensação, e as atenções começaram a convergir para a nascente até ali quase desconhecida. É certo que o povo daquele sítio já de há muito tempo tinha a crença de que a água era curativa, mas nada de concreto havia a tal respeito, e foi o caso do empreiteiro francês que, por assim dizer, deu o primeiro sinal de alarme... A este, seguiu-se o do professor primário de S. Lourenço do Bairro, Sebastião dos Santos Patoilo, que se curou completamente duma teimosa doença de pele.

Entre os anos de 1890 e 1900, começou o local a ser visitado e frequentado por pessoas de terras distantes, e ao passo / 66 / que se iam divulgando alguns casos de cura verificados, maior era a concorrência, começando a prática dos banhos na poça da água, sem a mais ligeira comodidade; citam-se como primeiros frequentadores daquela original piscina, o já mencionado professor Patoilo, o Dr. Luís Navega, o Dr. Batista Leitão, António Calheiros, Antero Duarte, Aniano de Carvalho, Dr. Manuel Luís e António Luís Ferreira Tavares; companheiros deles foram também o Dr. José Xavier Cerveira e Sousa e Luís Ruivo de Figueiredo, «sendo eles, com o Dr. Luís Navega, António Calheiros e Antero Duarte, os precursores, por assim dizer, da organização da empresa que, em 24 de Janeiro de 1900, se constituíu, por escritura pública, sob o nome de Sociedade das Águas da Curia.(8)

Assinalada esta data de 1900, recuemos alguns anos para anotar mais alguns pormenores acerca dos princípios da estância, bem curiosos para a sua história(9).

No ano de 1892, matriculou-se na Universidade de Coimbra o falecido médico Dr. Luís Navega, que, conhecedor do que se passava na Bairrada, e entusiasmado com a ideia da criação duma estância balnear na sua terra, quis conhecer a composição química das águas; tal ideia tornou-se nele um pensamento dominante, mesmo absorvente, o que o levou
a inscrever-se como aluno da Escola de Brotero, em Coimbra, onde ao tempo era professor o conhecido homem de ciência e grande Mestre Charles Lepierre, para se aperfeiçoar nos trabalhos práticos de análises; Luís Navega não descansou enquanto não adquiriu a certeza das propriedades terapêuticas da água. A primeira diligência feita nesse sentido teve um insucesso, que por ser um curioso incidente, merece ser anotado. Fez-se ele acompanhar de um aluno daquela Escola, muito competente na prática de análises laboratoriais, e, chegados ao local, foi Luís Navega quem se aprontou para colocar o termómetro no local preciso, mas, quando procedia a essa operação inicial, partiu-o. O termómetro, e outra aparelhagem adequada, tinham ido da Escola Brotero, e o Mestre C. Lepierre, sabedor do que se tinha passado, mandou logo vir um termómetro novo de Paris, que importou em 5 libras, que foi pago por Luís Ruivo, de Tamengos, tio de L. Navega, e que mais tarde foi o 1.º Tesoureiro das Águas da Curia.

O incidente não fez desanimar, e antes aqueceu mais a vontade de ver o problema resolvido; análises sobre análises, / 67 / e chegou-se enfim à conclusão de que a água da Curia era sulfatada, cálcica, bicarbonatada e magnesiana.

CURIA − Casino da estância
Postal ilustrado editado por Alexandre de Almeida, Lx, com as dimensões de 90x138 mm, circulado em 1934, pertencente à colecção A. Simões, no espaço «Aveiro e Cultura».

Ainda se pretendeu analisá-la quantitativamente, mas o laboratório escolar não tinha aparelhagem necessária para isso. Conhecido este resultado, cuja notícia, como é de calcular, despertou o maior interesse, procedeu-se em 1897 a uma análise ainda mais rigorosa, convidando-se para a fazer o Professor Lepierre, o qual veio a verificar que a água da Curia era do grupo das sulfatadas cálcicas, qualidade que serviu de base para formular o pedido da concessão. Estava desbravado o caminho: constituiu-se a Sociedade, como já ficou referido, fazendo-se uma primeira emissão de títulos que quase se limitou à gente bairradina, iniciaram-se os trabalhos de captação, construindo-se também o modesto edifício que, ainda não acabado, abriu ao público em 1 de Junho de 1902(10).

Do que se passou de então para cá, dão-nos conta os relatórios da Gerência das empresas, e o resto está aí bem patente à vista de todos. Ninguém decerto, − e aproveitando palavras de um publicista da região − deixará de ver hoje na / 68 / Curia a estância por excelência − «de belos arredores, sem elevações que fatiguem, cheia de arvoredo com sombras deliciosas; de ar bom e seco; a dois passos de Coimbra, do Buçaco, da linda vila de Anadia e servida pela linha da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses; com um grande parque, encantador e bem cuidado...»(11).

Mas se assim é quanto ao lugar da Curia propriamente dito, o mesmo não sucede relativamente aos povoados que lhe ficam mais próximos, como já deixámos dito, e nalguns deles ficou do Passado rasto bem nítido e brilhante. Impõe-se historiar o que de mais relevo se prende à vida dessas terras, lembrando nomes de vultos notáveis da região, ou que por qualquer motivo lhe estão ligados, referindo lendas que chegaram a nossos dias, cheias ainda de penetrante encanto, e reunindo tudo, enfim, que seja tocado de interesse, nos domínios da Natureza, da História e da Arte. De facto, por ali andaram Poetas, passaram Artistas, jornadearam Santos; e basta este ligeiro enunciado para prender já a atenção do leitor mais indiferente. Teremos assim de desenvolver o tema, cuja explanação é bem cabida, atento o fim a que se destina este trabalho: decerto que quem procura remédio para os males do corpo, bem pode querer também, e isso sucede muitas vezes, dar recreio ao espírito, e não faltam por ali motivos para isso. Nos intervalos dos seus tratamentos, fácil será fazer, com proveito, algumas jornadas até sítios onde atractivos naturais, artísticos ou históricos, prodigalizem conhecimentos nesse sentido. Seguindo este critério, indicaremos os lugares, e o que neles vimos e nos fez nascer a ideia de reunir estas notas, circunscrevendo assim o que nós poderemos chamar o aro turístico da Curia(12).

 

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O Poeta ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO com cerca de 38 anos, época em que frequentava a Bairrada. (Reprodução da Litografia de SENDIM que acompanha a edição original - 1838 - dos Quadros Históricos de Portugal, do autor).

 

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Às bucólicas paragens do Cértima andam ligados nomes de Poetas e escritores da região; mas para tão somente me referir aos das épocas passadas, pois que das presentes está mais fresca a lembrança, começarei por evocar o nome desse grande vulto da nossa literatura do Romantismo, o Poeta ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO, o «Poeta Cego» cujos ascendentes eram da Bairrada; por aqui vinha ele passar temporadas / 70 / de férias, nos tempos descuidosos da mocidade, quando escolar de Coimbra. Eram-lhe familiares todos estes sítios, onde ele pela vida fora vinha matar saudades; ali o vemos nos anos de 1817 e 1822, e datam desta época os versos que dedicou a estes lugares; ali volta em 1854 e 1863, de visita à família e amigos que tinha na Bairrada(13).

O rio Cértima, os pâmpanos viçosos, o tempo feliz que junto deles passou, foram motivos inspiradores da sua lira; ouçamos o Poeta, na expansão do seu saudosismo:

Nas várzeas tuas nítida corrente
Quão graciosos dias me correram!
− Nas águas tuas deleitoso rio,
estro ameno bebi...
Dos férteis campos teus beleza e graça
quando á Lira cantei, paraste o curso;
Folgaste de me ouvir quando exaltava
ao som do teu murmúrio as pampinosas
Co'o dom de Brómio carregadas vides,
que do Alto Douro aos saborosos cachos
Nada têm que invejar...
(14)

Ficaram celebrizados em poesias e outros escritos seus muitas coisas dali: a Quinta da Murteira, que foi pertença dos Castilhos, os serões ali feitos à lareira da casa com a família; os trabalhos agrícolas regionais, o lugar de Aguim, com o seu ar venerando de velho Couto, onde seu pai Dr. José Feliciano de Castilho nascera a 21 de Abril de 1766, o casario mais que secular e a sua antiga capela da Senhora do Ó, à qual o Poeta se refere nalgumas das suas obras, etc., etc.

Mas o tempo tudo destrói no seu caminho se não houver a iniciativa de perpetuar o que foi grande: por isso a comissão de Turismo da Curia pensa em erigir ao Poeta, e junto do Cértima que ele cantou, um busto seu, que evoque a memória dessa grande figura da literatura portuguesa. Bela iniciativa, que merece o nosso mais vivo aplauso.

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Outro nome grande, ligado à Bairrada, é o do célebre escultor do século XVIII, Machado de Castro, autor da estátua equestre de D. José, e dos formosos barros policromados, cuja autoria, por si só, faria a reputação dum grande artista.

Machado de Castro vinha passar temporadas na Bairrada, ao lugar de Aguim, onde teve uma modesta casa, que a tradição / 71 / ainda hoje aponta como sendo a que fica na rua que tem o seu nome(15). A recordá-lo mais expressamente, ficou a Casa dos Cerveiras, construção apalaçada do século XVIII, edificada sob o seu risco, e que é um puro exemplar das casas de tipo pombalino.

 

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Casa dos Cerveiras, em Aguim.

 

O pai de M. de Castro − Manuel Machado Teixeira, que também foi escultor de merecimento, casou com uma Senhora de Aguim, − Josefa Luísa Cerveira, da conhecida família deste nome, realizando-se o casamento a 6 de Outubro de 1754, na capela da Senhora do Ó, desse lugar; e a 1 de Setembro / 72 / de 1756 ai nascia também um filho deste casal − António Xavier Machado Cerveira − que foi notável organista, falecido a 14 de Setembro de 1828. Dos numerosos instrumentos musicais deste género que construiu foram os mais afamados os órgãos de Mafra e do Palácio Real de Queluz, e pelos seus méritos artísticos foi agraciado com o Hábito da Ordem de Cristo.

Não se conhecem na região trabalhos da autoria de M. de Castro, a não ser o belo grupo escultórico da Sagrada Família, em barro polícromo, que se guarda no Museu de Aveiro, e que os críticos de arte unanimamente lhe atribuem, e um pequeno barro representando a Ascensão de Cristo, no Solar de Sepins, que a tradição garante como sendo também obra sua. De Manuel Machado Teixeira, serão possivelmente umas imagens em barro, existentes na capela da Senhora do Ó, em Aguim. É digno de ver-se ainda na Casa dos Cerveiras o retábulo da capela, em pedra de Ançã, escola da Renascença coimbrã, representando os Santos Cosme e Damião; de época anterior à fundação da casa, deve ter sido oriundo de alguma capela extinta.

A Casa dos Cerveiras, do último quartel do século XVIII, forma com o solar da Graciosa e as belas moradias da Moita e de Tamengos, um núcleo de construções em que se mantêm muito puras as linhas arquitectónicas. Esta última, do século XVII, a dois passos da Curia, e em bom estado de conservação, pertenceu à família do Capitão-mor Pedro de Barros Sobrinho, que, a 26 de Maio de 1679, casou com D. Helena Cabral, de Adémia de Cima, limite de Coimbra, troncos duma família ilustre que aqui se fixou e que deixou o nome ligado às guerras da Restauração, por meio de representantes seus que nelas tomaram parte(16).

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Retrocedendo agora, passemos por Mogofores, para entrar na igreja e admirar ali a linda capela abobadada, de Nossa Senhora da Piedade, toda de pedra de Ançã, mandada construir pelo Dr. Cristóvão Pinto de Paiva, fidalgo de linhagem, Desembargador da Mesa da Consciência e Ordens, e Cavaleiro da Ordem de Cristo, cujos restos mortais ali se guardam. É do século XVII, com retábulo de madeira, assim como as imagens, de grande valor artístico, avultando de entre estas a escultura de N.ª Senhora da Piedade, que se diz cópia de uma outra da autoria de Miguel Ângelo, existente / 73 / no Vaticano(17). Na capela-mor do templo, em campa sobre a qual se vê lápide tumular brasonada, jaz D. José Xavier Cerveira e Sousa, Bispo que foi de Viseu, oriundo da mencionada Casa dos Cerveiras, e natural de Mogofores, onde nasceu a 27 de Novembro de 1797.

   
 

Azulejos da igreja de Arcos de Anadia.

 

Curiosidade a apontar a quem se interessa por coisas de arte, são também esses quatro belos quadros de azulejo que enriquecem a capela-mor da igreja matriz de Arcos de Anadia, representando passos da Vida de Cristo. Foi o Embaixador Aires de Sá e Melo, filho ilustre daquela vila, que ali os mandou colocar no ano de 1747, como consta duma legenda neles inserta(18).

Não deve deixar de fazer-se a a subida do Monte Crasto, de onde se avista um panorama excelente, não só para a parte serrana das abas do Caramulo que se estendem por Boialvo, Vale da Mó, até ao Buçaco, mas para as várzeas do Cértima e rio da Serra, de férteis margens bordadas de choupos e salgueirais, destacando-se a solarenga Casa da Graciosa, por entre as clareiras do seu frondoso parque, e o maciço de arvoredo da quinta das Felgueiras, que pertenceu ao grande jurisconsulto Alexandre de Seabra. / 74 /

Das lendas e tradições antigas da Bairrada, merece relevo muito especial essa que chegou a nossos dias e nos põe a figura excelsa da esposa do nosso rei-lavrador, ali à beira do Cértima, a beber da sua água, para matar a sede, quando de jornada seguia a caminho de S. Tiago de Compostela, onde se dirigia no cumprimento de uma promessa; lenda simples e graciosa que os velhos livros registam; e é reforçada por outras circunstâncias que se referirão. Que a Rainha Santa foi a Compostela, não há disso dúvida, e que a sua passagem ficou assinalada noutras terras por lendas que ficaram na tradição do povo, certo é também; quanto à Bairrada, é muito curiosa a notícia que da estada aqui da soberana romeira nos dá o Padre LUÍS CARDOSO, que no século XVIII recolheu a lenda, em referência ao rio Cértima(19).

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Solar da Graciosa

Transcrevemos textualmente, para lhe não alterar o sabor ingénuo e pitoresco da narrativa da época:

«Rio na Província da Beira, Bispado de Coimbra. Dizem que passando por aqui a Rainha Santa Isabel e querendo beber da sua água, lhe aconselharam tal não fizesse por ser de tão má qualidade que não só à gente mas até aos animais era danosa: provou-a a Santa e disse: Certo má; donde tomou o nome de Cértoma e daí em diante ficou de tão singular bondade, que se manifesta até nos gados que a bebem, porque a carne destes é sem comparação mais saborosa que dos outros.»

Aparte a explicação que se pretende dar do nome do rio, cuja designação, aliás, já assim era anteriormente, e do realce / 75 / que se dá à composição literária, vazada nos moldes da época, o ponto principal da narração, que nos mostra Santa Isabel passando por aqui, parece que se deve aceitar sem reserva, pois isso é corroborado por outros elementos. Outra não menos graciosa lenda, anotada por um anónimo do século XVIII, num tombo do Hospital de Águeda, refere-se também à passagem da Rainha por ali, marcando o seu rasto com um acto de bondade, como era próprio do seu coração magnânimo: Santa Isabel oferece ao hospital da terra a largura do campo que ocupou na sua passagem e do seu séquito real, e por muitos anos o Hospital de Águeda possuiu uma terra muito estreita e comprida, proveniente dessa dádiva. Por ser curiosa, arquiva-se aqui a nota referida:

«Esta terra está na Varzia de Recardaens pegada ao comaro de João Tauares, digo ao comaro do Capitão João Tauares da ponte arrenda a o Hospital pello preco que lhe parecã parte do norte com o rio e do sul com a estrada que vem do Sardam p.ª Recardaens e tem dizima a Deus e foi dada pela Raynha Sãcta áo hospital da Largura do coche em que vinha de S. Thiago pela estrada do cruzeiro de Paredes»(20).

Também o referido Dicionário Geográfico, guardando outra lenda que corria na freguesia de Arrifana de Santa Maria, a respeito da passagem por ali de Santa Isabel, diz:

«As cousas notaveis da terra são o passar por ella em romaria a Santiago de Galiza a Rainha Santa Isabel; e estando em hua casa, que servia de estalagem, dar vista a uma cega, e de huma laranja azeda que comeo cahindo huma pevide no chão de que nasceo huma larangeira, e nas laranjas que dava, se divisava no mesmo pomo junto ao pé a forma as cinco quinas das Armas de Portugal e conservão hoje em huma folha na mesma larangeira».(21).

Chamados e incluídos aqui estes pormenores simplesmente para fortalecer mais a lenda da passagem de Santa Isabel na Bairrada, retomemos o nosso caminho e escutemos na voz do Passado o que ainda agora nos fala da santa esposa de D. Dinis, e aí ficou como reflexo luminoso das suas peregrinas virtudes. / 76 /

D. Isabel de Aragão vivia em Coimbra, nos seus Paços a par de Santa Clara, em cujo convento frequentava os exercícios religiosos das Monjas, fazendo com elas as devoções canónicas, embora não estivesse enclausurada; a fama da vida que levava, entregue à prática das mais sublimes virtudes cristãs, chegava a todos os recantos de Portugal, e decerto mais detalhada notícia delas a tinha a gente da Bairrada, pela proximidade de Coimbra.

 

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Pia Baptismal de Sangalhos

 

Além disso, a Rainha, quando por aqui passou, apesar de fazer jornada de penitência, não deixava de trazer a sua comitiva real, sendo assim mais solicitada a atenção do povo que certamente acorreu pressuroso a saudá-la, como acontecia por toda a parte por onde andava. «As gentes das comarcas per hu vinha sahião de sá propria vontade aos caminhos e logares hu passava por / 77 / a verem por a bondade que della ouviam dizer.»(22). Tudo isso explica como ficou arraigado na tradição o facto da sua passagem por estes sítios, e disso nos dão testemunho não só a lenda, que ficou referida, mas o culto bem acentuado no ambiente local, como não se verifica noutra parte da região. Mesmo junto da Curia, lugar denominado Espinhal, ergue-se uma ermida dedicada a Santa Isabel desde o século XVIII, e na igreja de Tamengos esteve ao culto uma imagem sua, que pelo aspecto da escultura deve ser daquela época, figurando a Rainha Santa no milagre das rosas, com a abada de flores. Juntaremos a isto ainda que a igreja de Sangalhos ostenta na sua capela-mor o escudo armorial de Santa Isabel, além duma imagem sua na tribuna, e eram as freiras do Convento de Santa Clara de Coimbra que exerciam ali o direito de Padroado(23). Cada um destes pormenores, de per si, não teria grande valor para o caso, mas não se lhe deve negar, entretanto, considerando-os em conjunto. Não me parece circunstância meramente ocasional, mas determinada pelo que já ficou dito, este culto tão repetido nesta parte da Região por onde Santa Isabel passou na sua devota jornada.

Falando da igreja de Sangalhos, não devemos deixar de referir um pormenor artístico digno de nota: a sua pia baptismal, de rica e caprichosa decoração artística, exemplar digno de ser admirado e que «pelo seu desenho, pela sua grande expressão simbólica e ainda como composição decorativa, é peça única no Distrito, digna de minucioso estudo, e outra, decerto, a não excede em valor arqueológico. Muito provavelmente do século XIV.»(24).

Já o leitor atento concluiu que não exagerámos quando fizemos a afirmação de que muitos motivos para recreio de espírito se poderiam proporcionar ao visitante da Curia no aro que mais de perto a cerca, visto que só desse aqui se tratou, embora ligeiramente. Mas o que aí fica, se não pode considerar-se muito em si, muito dele pode fazer-se, tomando como ponto de partida qualquer dos assuntos apontados e desenvolvendo-o nos seus múltiplos aspectos, pois que a história da região está, em grande parte, por fazer. Oxalá que surja quem a essa tarefa se queira dedicar, e se isso acontecer, aí ficam já para esse fim as presentes notas.

SOARES DA GRAÇA

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(1)MIGUEL RIBEIRO DE VASCONCELOS, História do Mosteiro da Vacariça, cit. por AMORIM GIRÃO, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. I.

(2)Doutor Afonso Queiró, distinto Professor da Universidade de Coimbra, natural da Curia. 

(3) − C. DA. BORRALHA, Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. III, .1937.

(4)Informação do Dr. José Rodrigues, distinto advogado em Anadia, bom conhecedor das tradições regionais, a quem devemos preciosos informes que se utilizaram neste estudo. e pelos quais nos confessamos muito gratos.

(5)Obsequiosamente dada pelo distinto e erudito publicista, Dr. JOAQUIM DA SILVEIRA, facto que consigno aqui com os meus agradecimentos.  

(6)Notas colhidas num livro de memórias do falecido médico da Estância, Dr. Luís NAVEGA.

(7)Vid. Curia, publicação da Sociedade daquelas águas, ed. 1915.

(8)Vid. Curia, trabalho já citado. 

(9) Apontamentos cit. do Dr. LUÍS NAVEGA.

(10) Notas do Dr. LUÍS NAVEGA já citadas.

(11) Vid. Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. I, artigo firmado pelo Dr. ANDRÉ DOS REIS.

(12) Devemos acentuar que nesta designação apenas tomamos em conta lugares e coisas que não estão estudados, ou têm sido esquecidos, pois evidentemente que, num critério mais lato, abrangeríamos o Luso, Buçaco, Aveiro, Vista Alegre, etc., etc..

(13) Memórias de CASTILHO.

(14) Castilho na Castanheira do Vouga, in Arquivo do Distrito de Aveiro, por S. DA GRAÇA.

(15) Foi pelos anos de 1885 que o vereador da Câmara de Anadia, José Ferreira Portela, propôs que a esta rua se desse o nome do célebre escultor, perpetuando desta forma a sua memória.

(16) Vid. Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. IIl − Gente da Bairrada, nas Guerras da Restauração, por SOARES DA GRAÇA.  

(17) Vid. Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 39, art.º de LUÍS ALVES DA CUNHA.

(18) − O Embaixador Aires de Sá e Melo, in Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 35, por S. DA GRAÇA.

(19) Vid. Dicionário Geográfico, ed. de 1751 − Cértoma.

(20) −  Vid. Arquivo do Distrito de Aveiro, O Hospital de Águeda, pelo CONDE DA BORRALHA, 1939.

(21) Vid. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA, Arquivo do Distrito de Aveiro, n.º 33, e «Notícias e Memórias da freguesia da Arrifana de Santa Maria», por SAUL EDUARDO A. VALENTE, ed. de 1937, citadas por aquele.  

(22) CONDE DA BORRALHA, estudo citado.  

(23) −  Ver Arquivo do Distrito de Aveiro, ano 6.º, ROCHA MADAHIL. 

(24) −  Legenda de ROCHA MADAHIL, acompanhando a gravura da Pia Baptismal de Sangalhos, no Arquivo do Distrito de Aveiro, 1940.

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