Luís Alves da Cunha, Homens de Mogofores, Vol. X, pp. 168-198.

HOMENS DE MOGOFORES

EVOCANDO O PASSADO

UM facto notável marcou a passagem do refugiado polaco Mr. STEFAN WLOSZCZEWSKI pela nossa terra, no verão do 1940. Foi a publicação, em língua francesa, de um valioso repositório de documentos e notícias históricas que nos apresenta quadros sugestivos da antiguidade de Mogofores(1).

Se não vai até à era da fundação desta risonha povoação da beira-Cértima, mostra-nos, no entanto, que ela já existia em 1143, ao alvorecer da nacionalidade(2).

Publica a carta régia de 29 de Julho de 1226 pela qual D. Sancho II doa a João Dias a sua vila de Mogofores, em atenção aos serviços prestados por este fidalgo, e reproduz a cópia do segundo foral dado por D. Manuel, em 8 de Maio de 1520, à «terra e concelho de Mogofores»(3).

Sobre este concelho insere aquele opúsculo ligeiríssimas notas que convém ampliar porque o assunto interessa à história da nossa terra.

O concelho de Mogofores existiu com câmara, procurador, juiz ordinário, almotacé e escrivães até 1836, como existiram tantos outros que formaram a vasta rede de pequenos concelhos em que o país esteve dividido desde a Idade Média. Só na área do actual concelho de Anadia existiam onze, pelo menos.

Quando em 1835 foram criados os Governos civis, o de Aveiro ficou com 52 concelhos, entre os quais se encontrava o de Mogofores(4). (MARQUES GOMES, O Distrito de Aveiro). / 170 /

Mas logo no ano seguinte o ministro Passos Manuel alterou profundamente o antigo sistema administrativo com os decretos de 6 de Novembro e 31 de Dezembro, estabelecendo nova organização e uma divisão territorial que fez desaparecer os pequenos concelhos para dar lugar a mais amplas circunscrições municipais.

Foi então criado o concelho de Anadia.

O concelho de Mogofores deixou vestígios que ainda chegaram ao nosso tempo e que devemos pôr em relevo.

A casa que serviu de Paços do concelho foi aquela que ainda há dois anos existia contígua ao solar dos Caldeiras, com frente para a fonte do Cruzeiro(5). Os padres salesianos demoliram-na para ampliação do seu Instituto.

Mogofores − Cruzeiro erigido em 1733.

Indício característico era também o «curral do concelho»(6) cuja tradição existia ainda no tempo da minha meninice e localizava-o num terreiro que eu ainda conheci à esquina da rua da Estação, onde está agora a casa do Sr. José Seabra.

O rossio, nome que segundo ALEXANDRE HERCULANO se dava aos logradoiros dos concelhos, é ainda hoje propriedade da freguesia e uma significativa memória do passado.

Dos funcionários do concelho extinto, ficou o juiz ordinário, / 171 / que se manteve ainda muitos anos com o nome de juiz eleito. Era escolhido pelo povo para servir durante um ano, e julgava os delitos de pouca importância.

Em tempos remotos, Mogofores pertenceu à comarca do Vouga(7); em 1750 estava integrada na de Coimbra (Dicionário Geográfico − Torre do Tombo) e em 1836 na de Águeda, criada nesta data, na qual ficaram incorporados os concelhos de Anadia, S. Lourenço do Bairro e outros; passou para a de Anadia quando esta foi instituída, em 1855. (M. GOMES, ob. cit.). Foi couto dos mosteiros e dos fidalgos(8). Anteriormente era vila reguenga e pagava à coroa tributos iguais aos das vilas suas vizinhas e mais o préstamo, em dinheiro ou géneros, ao infante. (lnquirições de D. Afonso lI, de 1220).

ALEXANDRE HERCULANO descobriu no livro 3.º das lnquirições ordenadas por D. Afonso III em 1258, um documento a que chamou «Rol das «Cavalarias do Vouga» no qual figura Mogofores, com Alféloas, Arcos, Avelãs e Ois, sujeita ao tributo militar em homens a cavalo com escudo e lança, para os fossados(9), (ROCHA MADAHIL, Arq. Dist. de Aveiro, vol. VIII).


Com a abolição do concelho, em 1836, Mogofores ficou simples freguesia incorporada no novo concelho de Anadia. Entre as Juntas de paróquia que têm administrado o nosso
/ 172 / património é justo salientar, pelos assinalados serviços que prestou, a que serviu em 1886 sob a presidência do Sr. Barão do Cruzeiro.

Esta Junta procedeu a obras dispendiosas de restauração na igreja da freguesia que estava quase em ruínas, tão longe ia já a última reparação feita em 1720. Construiu o coro − uma inovação que se impunha − e a torre que veio substituir um t6scoe acanhado simulacro de campanário, feito de duas pedras levantadas sobre um estreito eirado, aonde o rapazio :subia livremente, na ânsia de puxar o badalo do único sino que então havia.

Em tempos mais, distantes Mogofores, foi um curato ad-nutum anexado à freguesia de Arcos, cujo prior tinha o direito de apresentação dos curas. Pertencia ao arcediagado do Vouga, do bispado de Coimbra.

As Informações Paroquiais de 1721, publicadas pelo Arquivo do Distrito de Aveiro em 1934, dão-nos algumas notícias sobre a nossa freguesia, que todo o mogoforzense dedicado deve gostar de conhecer.

Naquela data pastoreava a freguesia o cura Miguel Dias Leitão, sob a dependência do prior dos Arcos, João Martins Preto. A nossa igreja tinha três capelas particulares, correspondentes aos três altares laterais, instituídas por indivíduos que lhes vinculariam todos os seus bens para satisfação dos encargos de sufrágio inerentes − missas quotidianas ,ou bissemanais por sua alma(10).

A de Nossa Senhora da Piedade era a mais importante, tanto pela imagem da Virgem − cópia fiel de uma obra notável de Miguel Ângelo existente no Vaticano − como pela copiosa ornamentação do altar(11).

Foi instituída em 1672 pelo desembargador Cristóvão Pinto de Paiva, fidalgo da Casa do Alto do Pinto, que tem nela a sua sepultura. Era sua proprietária e administradora, na data das referidas informações, D. Francisca Pinto de Nápoles, de Águeda.

A outra capela era a do altar de Jesus − hoje da Senhora de Fátima − e foi instituída pelo capitão Domingos Dias Vilalobos / 173 / que aqui viveu e morreu, e ali foi sepultado com sua esposa. Era administrador deste vínculo o morgado de Vilarinho de Cacia, Manuel Couceiro 'da Costa.

A terceira − a do altar de Santo António − foi instituída pelo licenciado Pedro Marques, natural desta freguesia, e era administrada por Isabel Correia, viúva, também de Mogofores.

Em 1721 a freguesia tinha noventa e seis fogos com duzentos e quarenta habitantes. Hoje tem duzentos fogos e novecentos habitantes. O registo dos actos religiosos, segundo consta do livro mais antigo do arquivo paroquial, remonta a 13 de Março de 1597, data em que foi baptizado um filho de Julião Fernandes.

Apraz-nos registar um facto honroso para a nossa terra, que se relaciona com a vida económica da região.

O Marquês de Pombal, por alvará de 26 de Outubro de 1765, proibiu o plantio da vinha sem prévia licença da Companhia dos Vinhos do Alto Douro, e mandou arrancar todas as vinhas que estivessem em terrenos próximos das margens do Vouga aptos para outra cultura. Exceptua, porém, desta despótica medida as vinhas sitas nos termos de Anadia e Mogofores «em que − diz o referido alvará − sempre as vinhas foram o fruto principal e em que a favor da bondade e qualidade deles, esteve sempre a reputação pública e geral». (M. GOMES, ob. cit.).

Mogofores tem um passado de tradições honrosas e marcou a sua superioridade na vida social da região na segunda metade do século findo.

Deu-lhe particular relevo a alta reputação dos seus homens. O Bispo de Viseu (D. José Xavier Cerveira e Sousa) o Conselheiro Barão de Mogofores e Albano Coutinho (pai) foram figuras eminentes desse tempo que eu já não conheci, mas os nomes dos Srs. Visconde de Seabra, Albano Coutinho (filho), Dr. Acácio de Seabra, Barão do Cruzeiro e doutros, ficaram gravados na minha memória de criança, impressionada pela atmosfera de veneração que os rodeava. O primeiro é o do sábio ilustre, Mestre insigne das ciências jurídicas, que no retiro de Santa Luzia recebia amiúde as homenagens de muitos dos vultos mais notáveis da época. Passaram por ali Bispos, Lentes da Universidade, antigos Ministros, grandes advogados e escritores de renome, com profundo desvanecimento da nossa terra.

O solar dos Caldeiras também contribuía bastante para o brilho da vida local, com as frequentes visitas que esta família recebia dos seus nobres parentes − 1.º e 2.º Marqueses da Graciosa, Condes da Foz de Arouce, de Proença a Velha e da Borralha; e as Casas do Caneiro e do Cruzeiro eram / 174 / estâncias favoritas de famílias distintas do Porto, de Lisboa
e doutros pontos do país.

A par desta afluência de forasteiros havia a entusiástica animação dos rapazes desse tempo. Manuel e António Luís, Aniano de Carvalho, Alberto Sobral, Carlos de Meneses e Aristides de Seabra formavam um grupo folgazão, de alacridade esfusiante, que soube criar à sua volta um ambiente de simpatia. Eram corações sempre em festa, prontos para todas as iniciativas, a alvoroçarem este pacato meio aldeão com os seus vinte anos irrequietos.

Quinta do Caneiro, pertencente aos Padres
Salesianos. Ao lado da estação do
caminho de ferro.

A estes rapazes vinham juntar-se outros de fora, atraídos pelo ruído dos divertimentos que aqui se realizavam ou planeavam, alguns dos quais interessaram vivamente a sociedade bairradina do tempo, pela sua originalidade e aparato, e tiveram êxito notável mercê do entusiasmo aliciante que esta famosa falange punha em todos os seus cometimentos.

As salas do Dr. Acácio também tiveram grande nomeada entre a sociedade destas redondezas. Eram o ponto de reunião preferido, sobejamente conhecido e justamente apreciado, devido ao acolhimento franco e cordial dos velhos donos da casa.

Assim se criou um nível social superior que impôs a nossa terra ao conceito dos povos vizinhos e atraía as suas elites numa poderosa corrente de simpatia.

Há que tempo isto lá vai! Quando estas gerações de velhos e novos deram lugar às que lhes sucederam, a vida de prazer espiritual, tão necessária ao prestígio da terra, desapareceu para sempre.

Entretanto iam desaparecendo também os lugares aprazíveis que a natureza nos concedeu. As margens umbrosas do Cértima perderam as poéticas brenhas que as embelezavam, pujantes maciços de verdura quantas vezes testemunhas dos devaneios amorosos da mocidade nas tardes dos domingos calmosos. O progresso utilitário colocou no seu lugar toscas noras e cegonhas. / 175 /

Também desapareceu, tendo a substituí-lo um deselegante aglomerado urbano, aquele encantador trecho de arvoredo, entremeado de rosas de todo o ano, que marginava a estrada da ponte do Cértima à Mala-Posta. A primavera oferecia-nos ali, naquela ramagem frondosa, um formoso túnel de verdura e flores.


A MINHA GALERIA

DR. CRISTÓVÃO PINTO DE PAIVA

Foi o último fidalgo da Casa do Alto do Pinto.

Era filho de Crisóstomo de Paiva, de Mogofores, e de D. Joana Pinto, natural de Águeda, senhores e habitantes daquela Casa.

Residia habitualmente em Lisboa onde exercia as altas funções de Desembargador da Mesa da Consciência e Ordens(12). Era fidalgo da corte de D. Pedro II e cavaleiro da Ordem de Cristo.

Faleceu naquela cidade em 10 de Agosto de 1672, no estado de solteiro, mas veio a ser sepultado na igreja de Mogofores, na capela de Nossa Senhora da Piedade que ele erigira em morgado(13) e onde existe ainda uma lápide tumular.

A casa do Alto do Pinto ainda conserva as características de uma antiga e nobre moradia, com brasão no alto do portão, pátio espaçoso e larga escada de pedra a dar acesso a amplos salões, mas já no terceiro quartel do século passado, decaída e por vezes desabitada, estava dividida e entregue a inquilinos ou caseiros ignorantes do seu antigo esplendor.

Eram seus proprietários Abílio da Silva e Cunha, de Pomares (Mortágua) e Domingos Arala, de Ovar. Hoje pertencem ao Dr. Alexandre Cancela de Abreu e a Abílio Quintas.

 

DR. ANTÓNIO DE SEABRA DA MOTA E SILVA

Biógrafos seus contemporâneos dizem que foi varão de magnânimo e generoso carácter e magistrado integérrimo e muito erudito. / 176 /

Nasceu em Mogofores no terceiro quartel do século XVIII e faleceu em Vila-Flor no segundo quartel do século XIX. Era filho de Jacinto Seabra da Mota e de D. Teresa Joaquina da Silva, proprietários, naturais desta freguesia(14).

Foi cavaleiro professo da Ordem de Cristo e juiz ouvidor na vila do Príncipe, Estado de Minas Gerais, Brasil. Quando faleceu era corregedor da comarca de Moncorvo.

Foi sepultado na capela de Nossa Senhora do Rosário, entre S. João Baptista de Arroios e Vila-For, que pertence à família Magalhães Pegado sua descendente.

Casou com D. Dorotêa Bernardina de Sousa Lobo Barreto, dama ilustre, presumivelmente neta ou parenta próxima de Manuel de Oliveira Barreto, conhecido fidalgo do século XVII que foi capitão-mor dos coutos de Mogofores, Aguim, Casal Comba e Vila-Nova de Monsarros.

Dr. António de Seabra da Mota e Silva.

Teve seis filhos: D. Josefa, que casou com José António de Oliveira Pegado, fidalgo da Casa Real e senhor do morgado de Mogadouro; António Luís, futuro Visconde de Seabra; D. Ana, que casou com seu primo co-irmão Manuel Ferreira de Seabra, futuro Barão de Mogofores; D. Felicidade Perpétua, casada com Francisco Leite Pereira de Almeida, oficial de dragões e fidalgo de linhagem, natural e senhor da casa vinculada de Vila-Flor, de quem procede a família Leite Pereira de Seabra; D. Carlota Joaquina, que foi afilhada de D. João VI e da rainha D. Carlota Joaquina; e D. Domitília que, como esta sua última irmã, morreu solteira em Mogofores, na Quinta de Santa Luzia(15). / 177 /  [Vol.X - N.º 39 - 1944]


DR. ANTÓNIO LUÍS DE SEABRA, VISCONDE DE SEABRA

Jurisconsulto, literato e homem de Estado, serviu com assinalado civismo o país e conquistou um lugar proeminente entre os vultos mais notáveis do seu tempo.

Era filho do Dr. António de Seabra da Mata e Silva e de D. Dorotêa Bernardina de Sousa Lobo Barreto e nasceu em 2 de Dezembro de 1798, nas alturas de Cabo Verde, a bordo da nau Santa Cruz em que seu pai se dirigia, com a esposa, para o Brasil, aonde ia ocupar o lugar de juiz ouvidor na vila do Príncipe, no Estado de Minas Gerais. Foi baptizado no Rio de Janeiro, no oratório do coronel Manuel Alves da Fonseca, em 5 de Fevereiro de 1799, sendo padrinhos sua irmã D. Josefa Emília de Seabra e o chanceler da Relação daquela cidade, Luís Beltrão de Almeida.

Dr. António Luís de Seabra,
visconde de Seabra.

Ainda no berço, foi nomeado cadete honorário de dragões por graça especial de D. João VI, então Príncipe Regente.

Depois de seu pai voltar ao reino, em 1815, entrou na Universidade de Coimbra e formou-se na Faculdade de Leis em 1820.

Em Agosto de 1821, com menos de 22 anos de idade, foi despachado juiz de fora para Alfândega da Fé sendo louvado, em portaria do ministro José da Silva Carvalho, pelos bons serviços prestados neste cargo(16). / 178 /

Em virtude da queda do governo liberal pediu a exoneração e foi para Vila-Flor, onde seu pai era corregedor, entregando-se a labores literários.

Em 1825 foi nomeado juiz de fora de Montemor-o-Velho, lugar que deixou em 1828 para se lançar na revolução contra D. Miguel, combatendo no ataque da Cruz dos Morouços e na acção do MarneI à frente de um corpo de cavalaria que organizou.

Vencida a revolução, emigrou com as tropas liberais para a Galiza e dali seguiu para a Bélgica e Inglaterra, sendo processados e confiscados os seus bens.

Durante a emigração publicou vários panfletos suscitados pelas circunstâncias críticas da ocasião, tornando-se notável a «Exposição Apologética dos Portugueses emigrados na Bélgica que se recusaram a prestar o juramento deles exigido no dia 26 de Agosto de 1830».

Voltando a Portugal em 1832, na expedição dos 7.500 bravos do Mindelo, um decreto de 25 de Outubro do ano seguinte nomeou-o Procurador Régio junto da Relação de Castelo Branco passando, pela extinção deste lugar, para a de Lisboa. Nesta altura exerceu também as funções de corregedor da comarca de Alcobaça.

Em 1834 foi eleito deputado por Trás-os-Montes, e em 1835 foi encarregado pelo ministro do reino, Rodrigo da Fonseca, de redigir o projecto de reforma do ensino primário, a primeira reforma deste ensino depois da de Pombal.

Em 1836 foi novamente eleito por Trás-os-Montes mas a revolução de Setembro impediu a reunião das câmaras.

Em 1837 foi ao parlamento representando o círculo de Penafiel; dissolvida a câmara em Fevereiro de 1840, foi eleito pelo Porto sendo a sua acção parlamentar, nesta ocasião, / 179 / muito notável especialmente na coligação legalista que formou com Rodrigo da Fonseca, José António de Magalhães, Oliveira Marreca e outros deputados contra a acção revolucionária de Costa Cabral na restauração da Carta.

Em 1846, já desembargador da Relação do Porto, foi convidado por José da Silva Passos, presidente da câmara daquela cidade e vice-presidente da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, para exercer as funções de encarregado dos Negócios do Reino na mesma Junta(17).

Este organismo foi, como se sabe, o fulcro da reacção que se levantou no país contra o golpe de estado de 6 de Outubro daquele ano, que derrubou o ministério Palmela. O Dr. António Luís de Seabra levou-lhe o apoio do partido cartista e conseguiu que muitos oficiais contrários aderissem à Junta.

Em 1851 foi eleito deputado por Aveiro e em 4 de Março do ano seguinte foi pela primeira vez ministro da Coroa, ocupando a pasta da Justiça numa recomposição do ministério que o Marechal Saldanha organizou após o movimento da «Regeneração», que derrubou Costa Cabral. Exerceu este lugar até 19 de Agosto do mesmo ano.

Dissolvidas as cortes nessa época, foi, em 1852, eleito pelos círculos de Aveiro e Moncorvo ao mesmo tempo, e em 1856 voltou novamente à câmara como representante de Aveiro. Em 1861 foi eleito pelo círculo de Anadia e desde 1862 até 1868 foi presidente da Câmara dos Deputados. Neste ano foi nomeado par do reino e veio também a ocupar o lugar de presidente da câmara alta.

Em 25 de Abril de 1865 é agraciado com o título de Visconde de Seabra, e em 26 de Julho de 1866 é nomeado Reitor da Universidade de Coimbra. Foi nesta ocasião que este eminente homem público teve a honra insigne de hospedar na sua residência o infante D. Augusto durante uma demorada visita que este príncipe fez àquela cidade.

Deixou este lugar em Janeiro de 1868 para voltar a sobraçar a pasta da Justiça, agora num Governo de acalmação organizado pelo Conde de Ávila depois da reacção popular, conhecida na história por «Janeirinha», contra as medidas violentas de Joaquim António de Aguiar. Os primeiros actos deste Governo − 14 de Janeiro − foram para anular as leis que criavam o imposto de consumo e a da reorganização administrativa, promulgadas pelo Governo anterior(18). / 180 /

Quando o Visconde de Seabra deixou a reitoria da Universidade trocaram-se entre ele e a Academia as expressivas cartas que se seguem:

À MOCIDADE ACADÉMICA

Sua Magestade dignou-se chamar-me ao seu conselho de ministros. Não sei escusar-me a nenhum serviço publico que de mim se exija, por arduo e difficil que pareça − aonde não chegarem as forças sobrará sempre a minha boa vontade. Mas não posso, briosos mancebos, deixar de dirigir-vos uma palavra de despedida. Vou separar-me de vós, acreditae-me, com saudade e tristeza.

Era para mim, no ultimo quartel da vida, ineffavell satisfação presencear a vossa assidua applicação e o vosso regular e circunspecto comportamento e admirar os vossos progressos no estudo das letras e das ciencias que deve habilitar-vos para servir honrosamente a vossa
patria e suceder á geração que passa.

Mas ainda longe de vós, generosos mancebos, estarei comvosco no affecto que vos dedico e no interesse que tomo pelos vossos progressos: e julgar-me-hei muito feliz se em qualquer tempo ou posição a que o destino me leve, puder contribuir de algum modo para o vosso adiantamento e bem estar.

Recebei pois a minha saudosa despedida. Prosegui, completae vossos estudos com sollicitude e assidua applicação que o ceu abençoará vossas fadigas.

Mogofores 5 de Janeiro de 1868

                            O reitor

                            Visconde de Seabra


CARTA AO VISCONDE DE SEABRA

Ill.mo e ex.mo snr

Ainda ha pouco tempo a academia de Coimbra saudava com alvoroço a nomeação de v.ª ex.ª para reitor da Universidade. Exultava a mocidade estudiosa por ter á sua frente o homem que vinculara o seu nome á sabia reforma da jurisprudencia patria e ajudara a erguer, para testimunho a estranhos, um padrão de gloria nacional. A academia tributava profundo respeito á subida / 181 / illustração do auctor do codigo civil portuguez: ao seu acatamento juntou em breve os sentimentos de amor que lhe foram conquistados pelos affectos paternais do seu prelado, Amor e respeito enlaçaram-se nos corações da mocidade academica e traduziram-se na sollicita reverencia com que escutou e seguiu as indicações amigaveis, os conselhos benevolos, as palavras de esperança e os testimunhos de approvação que v.ª ex.ª lhe dirigiu sempre que se apropositou occasião de lhe encaminhar o animo abalado, ou de lhe avivar o esforço para novas luctas e comettimentos.

Um decreto real chamou v.ª ex.ª aos conselhos da coroa. A mocidade academica perdeu o chefe mas não perdeu o amigo. As palavras de intimo apreço e consideração que v.ª ex.ª em despedida dispensou á academia, confirmam a reciprocidade de sympatias e estreitam mais um laço de reconhecimento a memoria de v.ª ex.ª ás gratas recordações que entre nós ficam.

Honra e favor agradece a academia: pela sua parte de longe continua tambem correspondendo com devotada estima e inteira dedicação á benevolencia do seu antigo prelado. Não é de espiritos juvenis o esquecimento ingrato.

Coube-nos ser interpretes de sentimentos que toda a academia compartilha. Digne-se v.ª ex.ª aceitar a humilde exposição que d'elles fazemos. São affectos de corações livres em homenagem às virtudes.

Coimbra, secretaria da Academia Dramatica, em 23 de Janeiro de 1868

Emygdio Navarro
Julio de Vilhena
Lopo Vaz de Sampaio e Melo,

*

O Visconde de Seabra foi juiz do Supremo Tribunal de Justiça e sócio emérito da Academia Real das Ciências. Pertenceu ao conselho de Sua Majestade e foi comendador da Ordem de Cristo e das Ordens italianas de S. Maurício e de S. Lázaro, e recusou a grã-cruz de Cristo com que foi agraciado em 1860.

Como literato, a lista das suas obras é extensa e bem conhecida; por isso abstenho-me de a recordar. No jornalismo também ocupou lugar de grande relevo.  / 182 /

O seu padrão de glória é, porém, o Projecto do Código Civil, feito deveras notável que elevou o nome do seu autor às culminâncias da celebridade, apontando-o como do primeiro jurisconsulto do seu tempo.

A elaboração deste trabalho foi cometida ao Dr. António Luís de Seabra por decreto de 8 de Agosto de 1850 quando desembargador da Relação do Porto, depois de verificado o malogro das tentativas de várias comissões que vinham sendo nomeadas para este fim desde 1822, e foi concluída em fins de 1865. Quinze anos se consumiram nesta obra grandiosa, cuja discussão agitou a opinião pública.

A comissão revisora introduziu no projecto pontos novos de doutrina; entre eles, o da instituição do casamento civil levantou grande celeuma e suscitou viva controvérsia entre ALEXANDRE HERCULANO e o autor do projecto, mas a obra, de sólida estrutura, resistiu à tempestade e teve a aprovação das cortes em sessão de 26 de Junho de 1867; em 1 de Julho seguinte foi promulgada e é ainda hoje o sábio instrumento que regula o Direito privado dos portugueses, classificado pelo distinto jurisconsulto JOSÉ DIAS FERREIRA DE «obra monumental, talvez o primeiro Código Civil da Europa».

Sabe-se que foi primeiramente na Casa de S. Lourenço e depois na de Santa Luzia, que o Dr. António Luís de Seabra se entregou com mais ardor aos trabalhos da redacção do projecto. Aqui, na sua opulenta biblioteca onde só as horas cantadas do velho cuco perturbavam o silêncio religioso, as transcendentes lucubrações do seu luminoso espírito construíram este marco miliário que foi o remate glorioso de uma época de transformações políticas e sociais.

Entre os valiosos serviços que o Visconde de Seabra prestou à nossa terra tem lugar primacial a passagem por aqui do caminho de ferro. Quis o nobre titular que a linha férrea em construção atravessasse Mogofores, e nesse sentido empregou o seu melhor esforço. Estava já feito o estudo respectivo quando influências de Anadia, aproveitando-se da ausência de Lisboa daquele ilustre titular, conseguiram a alteração do traçado para mais aproximar a linha daquela vila.

O Visconde de Seabra soube em Mogofores da trama e regressou logo à capital onde, com a coadjuvação de José Estêvão, a sua acção foi decisiva(19). A nossa terra viu com justificado alvoroço o primeiro comboio na sua estação no dia 1o de Abril de 1864, data da inauguração do segundo troço da linha, entre Estarreja e Coimbra(20).

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(1) Mogofores, Essai historique. Separata do «Arquivo do Distrito de Aveiro».

(2) Neste ano, D. Afonso Henriques concedeu a D. Marina Soares carta de doação da vila de Ancas que parte com Mogofores e com Sá. É o mais antigo documento, até agora conhecido, que assinala a existência da nossa terra. 

(3) − O primeiro foral tem a data de 12 de Setembro de 1514.

(4) Além do de Mogofores, faziam parte do distrito de Aveiro os concelhos de Aguim, Avelãs de Caminho, Avelãs de Cima, Ferreiros, Ois, Sangalhos, S. Lourenço e Vila-Nova. Foram todos suprimidos em 1836, assim como os de Carvalhais e Vilarinho, salvando-se apenas o de S. Lourenço que só foi extinto em 1855. O de Avelãs de Caminho tinha a obrigação de aposentar a comitiva régia; estava, por isso, isento do pagamento de impostos. No concelho de Avelãs de Cima − lugar da Figueira − teve o seu solar o fidalgo Sebastião Pereira de Miranda, senhor do prazo da Figueira e das vilas de Avelãs, Carvalhais e outras, do qual procedem os actuais senhores da Casa da Graciosa. Em 1514 o sitio da Graciosa chamava-se Póvoa de Roupeiro. (Ver Informações Paroquiais de 1721, da freguesia de Avelãs de Cima, e o Foral da mesma freguesia, de 1514, vol. IV e VII do Arquivo do Distrito de Aveiro).

(5) Assim o afirmava o meu avô paterno, coevo da nossa autonomia municipal. O Sr. José Jacinto da Silva, avô da Sr.ª D. Camila de Melo Sampaio, teve aqui o seu estabelecimento comercial, que depois mudou para a sua casa do juncal.  

(6) O curral do concelho era um recinto murado, pertencente ao município, destinado a receber o gado apreendido por motivos de dano na propriedade particular, ou de outra transgressão das posturas municipais. Este gado era retirado dali mediante o pagamento da coima e do imposto de detenção a que se chamava curralagem.

(7) Em 1329 o tabelião desta comarca, Martim Vicente, veio a Mogofores lavrar a escritura de transmissão de direitos sobre este lugar a favor de João Martins de Soalhães, cónego da Sé de Coimbra e da de Lisboa. Ver este documento no livro Mogofores − Essai historique, de Mr. STEFAN.

(8) Nunca foi couto de homisiados. Desde 1226, em que teve por primeiro donatário D. João Dias, até 1304, esteve sempre na posse de fidalgos; nesta data passou para a Mitra e Cabido da Sé de Coimbra onde se conservou até à abolição destes privilégios.

«Os coutos eram terras demarcadas por autoridade do rei e por ele doadas com certas isenções e privilégios, com determinados foros e pensões, para o directo senhorio e com justiças próprias. Esta jurisdição foi abolida pela lei de 1790.

Havia coutos dos mosteiros e dos fidalgos, e coutos do reino ou de homisiados. Estes eram usados para refúgio dos malfeitores que neles não podiam ser presos nem perseguidos.

Os coutos do reino eram quase todos os da raia. Mas nem todos os crimes tinham protecção e impunidade nos coutos. Em todos os forais eram exceptuados os crimes de heresia, regicídio e traição; em muitos os de adultério, moeda falsa e homicídio voluntário; em alguns o crime de bestialidade e incesto. Os criminosos não podiam acoutar-se a menos de dez léguas do lugar do crime.

Os coutos e seus terrenos acabaram em 1821». (Enciclopédia Portuguesa Ilustrada). 

(9) Chamavam-se fossados as expedições anuais de saque, feitas pelos cristãos às searas dos muçulmanos.  

(10) Desta forma se instituía a alma por herdeira. O Marquês de Pombal averiguou que existia no país tão elevado número de capelas que «nem sendo clérigos todos os portugueses poderia celebrar-se a terça parte das missas que estavam ordenadas e que por este modo chegar-se-ia a serem as almas do outro mundo senhoras de todos os prédios destes reinos». Foram abolidas por carta régia deste ministro, de 4 de Julho de 1768. (F. A. CORRÊA, Hist. Económica de Portugal, voI. II).

(11) Algumas das figuras ornamentais deste altar foram mutiladas na ocasião das obras da igreja em 1886, e assim se encontram ainda.

(12) Alto tribunal criado por D. João lII para julgar da imunidade dos réus pertencentes às Ordens militares ou eclesiásticas.

(13) A administração deste vinculo ficou entregue aos parentes que Cristóvão Pinto tinha em Águeda, de quem ainda hoje existem descendentes naquela vila e nos lugares de Barrô e Piedade: os Pintos da Casa da Ponte, os Pintos de Nápoles, os Pintos Bredas e os Pintos Coelhos.

(14) Este casal viveu muitos anos em Coimbra, estabelecido, com loja de ourives, mas era de Mogofores conforme se verifica no Registo Paroquial desta freguesia, existente no Arquivo da Universidade.

(15) A família Seabra designava, entre si, as vivendas do Sr. Visconde e do Dr. Acácio, por Quinta de Santa Luzia e Quinta do Caneiro. Aquela porque tinha um nicho da santa que lhe deu o nome, e esta porque é atravessada por um estreito canal que vai desaguar no Cértima e dá este nome ao local, desde tempos imemoriais.

(16) PORTARIA DO MINISTRO DA JUSTIÇA, JOSÉ DA SILVA CARVALHO, LOUVANDO O JUIZ DE FORA DE ALFÂNDEGA DA FÉ, D.OR ANTONIO LUÍS DE SEABRA

Manda el-rei, pela secretaria de estado dos negocios da justiça, participar ao juiz de fora da Villa de Alfandega da Fé, Antonio Luiz de Seabra, que sendo-Ihe presentes, pela sua conta de 17 do corrente mez, em que se relatam, os abusos que encontrou no expediente da justiça no foro contencioso, assim na má organisação do processo, falta de formulário, e distribuição, nullidades, e excesso de salarios, como na falta de inventarios, e nenhuma administração dos bens dos orfãos; as providencias que deu logo, ordenando processos regulares, distribuindo competentemente, fazendo que os escrivães tivessem inventarios dos seus cartorios, cohibindo todo o excesso de salarios, reformando conforme a lei todas as outras, que achava não conformes com o respectivo regimento, reduzindo os processos crimes a melhor ordem, fazendo desterrar todos os termos e escriptas inuteis, feitas só com o fim de augmentar os sallarios, e applicando o indulto do decreto de 22 de Março d'este anno aos réos que por descuido ou incuria, se não tinham aproveitado d'elle; fazendo outro sim conhecer e progredir o systema constitucional pelos meios suaves da persuasão; e tendo conseguido o melhoramento que desejava, e o conveniente ao serviço da Nação; ha por bem Sua Magestade louvar muito o zelo, actividade e intelígencia, com que o dito juiz de fóra tem procedido, e espera que continue tão importantes serviços, como os que tem praticado até ao presente. Palacio de Queluz em 3 de dezembro de 1821 − José da Silva Carvalho. (Diário do Governo de 6-12-1821).  

(17)Estava nesta ocasião na sua casa de S. Lourenço e dali respondeu, em 11 de Novembro, aceitando o encargo.

(18) − Estas leis foram as que levantaram maior oposição. A reforma administrativa suprimia o distrito de Aveiro e os concelhos da Mealhada e de Oliveira do Bairro. Os de Águeda e de Anadia passavam para o distrito da Beira Central (Coimbra). (M. GOMES, ob. cit.).

(19) Quiseram os magnates de Anadia impedir ao Visconde de Seabra o regresso a Lisboa e para isso compraram, em dias seguidos, todos os lugares vagos do carro da mala-posta desde o Sardão até à vila de Condeixa. Descoberto ao terceiro dia o insólito ardil, o Sr. Visconde montou num cavalo e foi tomar o carro àquela vila.

(20)Mais tarde, em 1878, o entroncamento da linha da Beira Alta com a do Norte esteve para ser feito em Mogofores, segundo me afirmou um indivíduo da Mealhada que acompanhou os engenheiros encarregados do estudo da nova linha. Razões de ordem técnica tinham afastado a ideia de o fazer em Coimbra e levaram as entidades competentes a pensar na nossa estação. O estudo respectivo, dirigido pelo engenheiro francês Edmond Bartissol, chegou a ser iniciado aqui e levado até Tresoi, perto de Mortágua, mas foi abandonado devido, segundo constou, à intervenção de um vulto importante de Anadia que quis salvaguardar a integridade da sua quinta. 

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