A. G. da Rocha Madahil, A propósito da visitação do delegado episcopal à igreja de Sangalhos em 1587, Vol. X, pp. 132-140.

A PROPÓSITO DA VISITAÇÃO DO DELEGADO

EPISCOPAL À IGREJA DE SANGALHOS

EM 1587

NA organização disciplinar eclesiástica, a visitação anual às paróquias por parte de delegados episcopais para esse fim designados constituiu nos passados séculos um dos meios mais eficazes e salutares para a manutenção da pureza da fé e do culto católico, muito contribuindo igualmente para a fiscalização dos costumes, moralidade e bem-estar dos povos.

Expressamente as Constituições diocesanas a estabeleciam(1), e com o maior cuidado se promoveu a sua realização durante centenas de anos; por fim, devido certamente às convulsões políticas e consequente transformação social, as visitas paroquiais foram caindo em desuso, vindo a cessar de todo ainda no 1.º quartel do século XIX.

Não obstante, Constituições recentemente promulgadas, como são as do Prelado de Coimbra, D. MANUEL LUÍS COELHO DA SILVA, de 1929, pelas quais se regula a vida paroquial de uma parte do Distrito de Aveiro, conferem ainda aos arciprestes direitos e obrigações de visita anual às freguesias do seu arciprestado (Constituição VII, n.os 187, 188, 192) que de alguma forma representam a continuação da antiga prática.  / 133 /

A vida social modificou-se, no entanto, sensivelmente, e a actuação dos visitadores, embora 'os objectivos finais permaneçam idênticos aos da sua ideologia de outrora, difere muito da que pelas actas das visitações nos é revelada, bem como pelas das devassas que à vida dos paroquianos cumulativamente por vezes se realizavam nos passados séculos(2).

Constituem essas actas − umas e outras − fontes preciosas para o conhecimento de particularidades locais da vida dos povos, que em mais parte alguma se encontram, fornecendo-nos, ao mesmo tempo, abundantes pormenores históricos, arqueológicos e artísticos, por vezes de interesse geral.

Extraviou-se grande número dos livros em que as actas das visitações e das devassas foram lançadas; no entanto, na importante incorporação de documentos da Câmara Eclesiástica de Coimbra que em 1933 realizámos, mercê da qual deram entrada no Arquivo da Universidade dezanove toneladas de livros manuscritos, processos, e papéis avulsos, alguns volumes de actas daquela natureza se recolheram(3), e neles muitas das freguesias do Distrito de Aveiro se encontram representadas; são, evidentemente, das que pertenciam à Diocese de Coimbra, pois das do Norte, incluídas na área da Diocese do Porto, tudo se perdeu. Mal informado, um Prelado portuense autorizou há poucos anos a destruição de toda a papelada da sua Câmara Eclesiástica, exceptuados os livros paroquiais ali recolhidos já. Foram séculos de história local que ingloriamente se queimaram.

*

Como exemplificação de quanto o conhecimento das visitações, espécie documental com que muitos historiadores não tomaram ainda contacto, pode subsidiar os estudos regionais, damos a público a acta de uma visita de grande interesse para a região bairradina; é a que em 12 de Fevereiro de 1587 se realizou à igreja paroquial de Sangalhos, cuja acta extraímos não do respectivo livro de registo, mas já de uma certidão nesse mesmo ano obtida pelo Mosteiro de Santa Clara de Coimbra, e encadernada num volume de miscelânea de documentos relativos à extinta vila de Sangalhos que, por ocasião da secularização do Convento conimbricense, foi recolhido à Direcção de Finanças do Distrito, donde o recebemos em 1937 com todo o espólio dos chamados Próprios Nacionais, também para o Arquivo da Universidade. / 134 /

O valor de documento autêntico, e importante, que se reconheceu àquela acta, extraindo-se dela certidão por notário público, confirma o que acima dizemos sobre o conceito em que o historiador deve ter esta espécie de documentos pouco utilizada ainda como fonte noticiosa.

Compreende-se o interesse do Mosteiro clarista na obtenção e arquivo daquela certidão desde que se diga que por D. Afonso IV lhe fora doado o senhorio e o padroado de Sangalhos.

Suscitou-se em 1755 complicada demanda entre a Abadessa e Convento de Santa Clara de Coimbra como autores, e os colonos, enfiteutas, caseiros e moradores daquela então vila como réus, tendo por objecto os foros de vários casais. Os réus agravaram para a Relaçãõ do Porto, e daí subiu o processo ao Juízo da Coroa da Casa da Suplicação; em 1757 ainda por lá se arrastava, requerendo os réus que fosse sustada a execução da sentença proferida no Porto.

Existe no Arquivo da Universidade um códice, provindo também do Mosteiro, com certidão autêntica dos autos desse agravo, interessantes a muitos títulos; baseando os seus direitos senhoriais em documentos que terminam com o foral manuelino (que em breve aqui será publicado também), as claristas relacionavam em primeiro lugar uma carta de D. Afonso IV, de compensação com os testamenteiros da Rainha sua mãe, em virtude da qual o senhorio de Sangalhos era transferido para o Convento de Santa Clara. Assim se explica o brasão de St.ª Isabel de Aragão e Portugal que ainda hoje, em magnífica talha dourada, a igreja matriz ostenta, bem como as imagens de Santa Clara e da Rainha Santa, ladeando o altar-mor, e as referências das Informações Paroquiais de 1721 por nós aqui insertas já (vol. 6).

Declara o documento afonsino, que supomos inédito(4):


Dom Affonco por graca de Deõs Rey de Portugal e dos Algarues &.ª ... ... ...

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Conhecido assim o donatário da vila, e as razões por que o era e lhe pertencia o direito de apresentação, melhor / 136 / se compreenderá o texto da visitação, que reza desta forma:
(E vai transcrito em PDF)

VISITAÇÃO DA IGREJA DE SÃO VICENTE... [PDF 940 KB]

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Para a história do povoamento da região bairradina têm interesse as referências feitas pela acta da visitação à estrada, verdadeira coluna vertebral da vida do Distrito; as alusões ao mercado que em Sangalhos se instalava no adro da igreja dos domingos e dias santos, costume muito generalizado nas freguesias rurais de Portugal, as relações dos povos vizinhos com a matriz, a declaração formal de que de Coimbra até Aguada não havia igreja onde os caminhantes pudessem ouvir missa, constituem outros tantos elementos que o futuro historiador da Bairrada não deixará de considerar e que determinaram a presente publicação deste documento, que até só pela sua data se tornava já digno de registo.

Sangalhos é terra de grande antiguidade, recordada já nos mais antigos documentos medievais portugueses.

PEDRO AUGUSTO FERREIRA, na sua famosa Tentativa Etimológico-Toponímica (IlI, 177), admitia que o topónimo pudesse ter por origem um nome de santo − São Gallo − advertindo que em Espanha se lia galho − São Galho − tendo também sugerido que poderia provir de Gazalhos, com o significado de tortulhos, ou cogumelos.

A falta de consulta da indispensável documentação medieval, e a quase absoluta carência de método científico, que caracterizam e inutilizam as mais das vezes o trabalho etimológico do Abade de Miragaia, exemplificam-se nestas propostas.

São Gall, ou Gallus, monge escocês que em 613 se retirou para um ermitério, acompanhado por seus discípulos Mang e Teodoro, e que mais tarde a Igreja canonizou, deu o nome a uma cidade e a um cantão da Suíça oriental, entre o Lago de Constança, o Reno, os cantões dos Grisões, de Glaris, de Schwyz, de Zurique e de Thurgóvia. À hipótese do santo haver igualmente influenciado o topónimo português opõe-se, todavia, o facto de se não encontrar vestígio do seu culto entre nós; a sobrevivência dos primitivos oragos paroquiais é lei raramente inobservada; ora a invocatória local é de S. Vicente e em parte alguma do nosso país se regista o culto de São Gal na Idade Média.

No Livro Preto da Sé de Coimbra, cartulário que transcreve os mais antigos documentos do cartório do Cabido, insere-se um diploma do ano 957 onde Sangalios é apresentado como confrontação da vila de Aguada doada por lnderquina Pala ao lugar de São Salvador, documento do maior interesse regional: ... ferit in ila mamola que diuidit cum uilla sangalios (publicado in Diplomata et Chartae, pág. 42); no mesmo cartulário, em documento do ano 1087 (Dipl. et Ch., / 140 / pág. 405), se lê como o Conde D. Sisnando doou à igreja de Mirleus, de Coimbra, . . . in illos barrios uillam sangalios cum aprestationibus suis...

No Liber Testamentorum do Mosteiro de Lorvão (cartulário medieval também) a mesma Inderquina Pala acima citada doa àquele convento, em 961, ... uilla aqualada quomodo exparte cum barriolo et de alia parte cum auelanas et cum sangalias(5) et monasterium de marnelle que uocitant sancta maria de lamas... (igualmente in Dipl. et Ch., pág. 53).

A. A. CORTESÃO regista todas estas formas nos seus utilíssimos Subsídios para um Dicionário completo (Histórico-Etimológico) da Língua Portuguesa, bem como no seu Onomástico medieval Português; e nos Documentos da Chancelaria de Afonso Henriques, de ABIAH ELISABETH REUTER, inserem-se a carta de couto de Barrô e Aguada, de 14 de Fevereiro de 1132, e a carta de doação de Pedaçães e de Sangalhos, de Junho de 1143. onde se encontram, respectivamente, as formas Sangalios e Sangallos; mas a péssima leitura e revisão deste livro tornam-no de tal forma perigoso para o filólogo, que só confrontando-o previamente com os textos que lhe serviram de original se pode utilizar.

Buscando formas medievais aproximadas, notaremos que DU CANGE, no Glossarium ad Scriptores mediae et infimae Latinitatis, regista «Sangalla, telae genus,. ab Ital. Sangello, nostris Bougran. Acta S. Juvenalis tom. I. Maii, pag. 401. Haec tamen (capsula) posita fuit immediata in aliam capsam magnam & crassam ligneam, intus tela, ut dicitur Sangalla...»

Bougran é o antigo bocaxim português, espécie de entretela.

Não creio que nada disto explique o étimo de Sangalhos, sendo preferível, talvez, buscá-lo nalgum antropónimo, embora para este, depois, o problema viesse igualmente a pôr-se...

Mas inegável é a muita antiguidade da povoação, que a fertilidade do seu solo explica perfeitamente.

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

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(1) Citarei unicamente as Constituições de D. JORGE DE ALMEIDA (C. LXXXIIIJ) e as de D. AFONSO DE CASTELO BRANCO (Tit. XXVIII, C. I .a XVlI), ambas para o Bispado de Coimbra, neste momento ao meu alcance imediato; esta última, perfeitamente pormenorizada quanto ao fim em vista, bem como na maneira prática de realizar a visita.

(2)Constituições cit. de D. AFONSO DE CASTELO BRANCO, Tít. XXIX, C. VII. 

(3)450 volumes, desde 1564, e 273 documentos avulsos. 

(4)Reconhecem-se sem dificuldade imperfeições na transcrição deste diploma; muitas delas encontram-se no próprio códice de que nos servimos, e provêm, certamente, do escrivão do processo não ter compreendido a caligrafia dos autos originais. Outras porém resultarão das grandes dificuldades de leitura que a certidão apresenta: letra processual imperfeitíssima e tom de tinta grandemente sumido. Fizemos o mais que nos foi possível..

(5)Sangalias deve considerar-se erro de transcrição do topónimo Sangalios; a evolução que este teve na língua portuguesa assegura-lhe o género masculino. Mais vezes do que seria para desejar, os nossos filólogos e historiadores esquecem a limitadíssima confiança que um cartulário oferece quanto ao seu rigor de transcrição, e apressam-se a tirar conclusões de formas que são apenas deturpações dos copistas. Convém ter sempre presentes as normas fixadas pela Paleografia e pela Diplomática.  

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