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        HISTORIANDO a origem e 
        estabelecimento da Inquisição em Portugal, problema ainda hoje insuficientemente esclarecido e que não tem sido possível tratar sem paixão, ALEXANDRE HERCULANO utilizou largamente a preciosa 
        documentação reunida nos volumes
        da Symmicta Lusitanica. 
        
        Como geralmente é sabido, por iniciativa de D. João 
        V, o seu embaixador em Roma, Manuel Pereira de Sampaio, obteve cópia de 
        grande 
        quantidade de documentos interessando à história de Portugal, e 
        existentes no Arquivo do Vaticano. 
        
        Com esse material se organizaram pelo menos 200 volumes, que hoje se 
        encontram na Biblioteca da Ajuda; em carta a João Pedro da Costa Basto, 
        HERCULANO aludia mesmo  a «200 e tal tendo-se extraviado alguns 
        em 
        consequência da viagem de D. João VI ao Brasil»(1). O conjunto recebeu 
        o título geral de Symmicta Lusitanica. 
        
        A organização e a fidelidade das cópias da colecção têm sido 
        discutidas, e, na verdade, não são perfeitas; o próprio HERCULANO (loc. 
        cit.) acusa «inumeráveis erros e descuidos dos copistas»; não 
        obstante, serviu-se, para a sua História da Origem e Estabelecimento da 
        Inquisição em Portugal, dos três volumes da Symmicta que se ocupam de 
        Inquisição e de judeus, extratando-os e tirando conclusões dos 
        documentos neles transcritos quando a sua veracidade se lhe afigurava 
        incontroversa. 
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        Entre aqueles em que mais baseia as suas conclusões
        contam-se umas relações de arbitrariedades praticadas pelos
        inquisidores em Aveiro, Coimbra, Lamego e per totum
        Regnum no século XVI, expostas pelos cristãos-novos a
        D. João III em 1543. HERCULANO não as publica na íntegra,
        nem jamais foram publicadas por historiador algum; naturalmente 
        impressionado pela leitura dessas páginas da História da origem e estabelecimento da Inquisição em
        Portugal, de há muito quisemos conhecer as relações em toda a sua extensão e pormenores; requisitada agora a cópia
        das que a Aveiro respeitam, à própria Biblioteca onde se
        arquivam, pudemos então avaliar todo o alcance desse formidável 
        depoimento,  imagem viva da sociedade local no distante século XVI, a que não encontramos referência alguma
        entre os historiadores do Distrito. 
        
        Sem proselitismo de espécie alguma as trazemos a público;
        são documentos que pertencem à História; e se muito ajudam
        a conhecer a sociedade aveirense da época, em nada prejudicam já a instituição  a que  mais directamente estão ligados. 
        
        Intitula-se a relação Excessus lnquisitorum in Oppido 
        davero colimbriensis diœcesis, e é o documento n.º XXXVIlI
        do tomo 32 da Symmicta, a fl. .348, v.º, e seguintes. 
        
        HERCULANO refere-se-lhe com estas palavras, candentes
        como ferro em brasa: 
        
        ...«Quando a índole e os actos do primeiro inquisidor
        de Coimbra eram estes, pode conjecturar-se qual seria o procedimento dos 
        seus delegados pelo vasto território que a
        jurisdição daquele tribunal abrangia. Nenhum, porém,
        mais que o de Aveiro se mostrava digno de tal chefe. Era
        ele o vigário da igreja de S. Miguel, conhecido pela sua
        dissolução. Entregue à caça, ao jogo, e publicamente amancebado, a perseguição dos cristãos-novos veio agradavelmente 
        distraí-lo das suas diversões ordinárias. Apenas revestido da delegação inquisitorial, tratou de arranjar delatores e  testemunhas. Repelido por muitos que procurou
        seduzir para exercerem esse odioso mister, não lhe faltou
        quem o aceitasse, tanto mais desde que recorreu ao meio,
        já vantajosamente experimentado, de atiçar ódios pessoais
        e de lisonjear a sede da vingança. A pena de excomunhão
        fulminada contra os que não denunciassem os actos de
        judaismo de que tivessem notícia deu-lhe também delatores, e às injúrias, que não poupava aos que recusavam servir-lhe de instrumentos, submeteram ao seu império mais
        de um génio tímido. Havia, contudo, um recurso contra
        as violências desse homem. Era a corrupção. Mais de um
        réu obteve a liberdade a troco de peitas, e até, quando as
        capturas dos cristãos-novos eram  mais frequentes, a concubina 
        
        /
        83 / do vigário de S. Miguel andava de casa em casa, prometendo a 
        uns e a outros que não seriam presos, se quisessem ser generosos. 
        Acusavam-no geralmente de ter delapidado várias alfaias da igreja, de 
        jogar as esmolas dadas para aplicações pias, de ter prendido a mulher 
        de um cristão-novo, a quem devia dinheiro, para no meio do tumulto 
        rasgar o escrito de dívida; acusavam-no de mais de uma solicitação 
        infame feita no confessionário, e de revelar o sigilo da confissão 
        para chegar aos seus fins. Como agente da Inquisição, como sacerdote, e 
        até como homem, o delegado do bispo de S. Tomé era um miserável. O 
        memorial dos hebreus portugueses, tratando da perseguição em Aveiro, 
        menciona factos que nos repugna descrever, e que até seriam inacreditáveis, se não se invocasse naqueIe 
        memorial o testemunho de 
        dezenas de indivíduos eclesiásticos e seculares de todas as jerarquias. 
        Se tais factos fossem inexactos, eles teriam sido altamente desmentidos 
        por essas testemunhas que se invocavam, e que os cristãos-novos pediam 
        instantemente que se ouvissem.»(2) 
        
        A relação de todas estas misérias está redigida em latim. Obtida a 
        cópia da sua versão para a nossa língua se encarregou o nosso prezado 
        colega da Direcção do Arquivo, Sr. Dr. JOSÉ PEREIRA TAVARES. latinista 
        seguro como a compreensão do texto da Symmicta, muito defeituoso, 
        absolutamente reclamava. 
        
        Passagens houve, ainda assim, cujo sentido, deturpado na transcrição, 
        pelo menos, do original para a Symmicta, não foi possível reconstituir. 
        Vão substituídas por pontos de reticência e notadas com interrogação. 
        
         
        DESMANDOS DOS INQUISIDORES
        NA VILA DE AVEIRO, 
        
        DA DIOCESE DE COIMBRA 
        
        1) Foram também apresentados ao Reverendo Senhor
        Núncio outros muitos crimes além dos narrados, que pelo mesmo Bispo de 
        S. Tomé e pelos seus oficiais foram omitidos, para que deles no 
        reino... se fizesse, os quais foram divulgados e são notórios; e até 
        porque, além dos ditos, o Bispo Inquisidor, em dano do de Coimbra, e 
        para total excomunhão dos cristãos novos da vila de Aveiro, da mesma 
        
        / 84 /
        diocese, cometeu violências e  horrendos crimes e para isto
        intrometeu no exercício desse negócio um presbítero, vigário
        de S. Miguel da dita vila, varão sem dúvida celerado, furioso, iracundo, 
        perversíssimo, o qual, tanto ele como o predito
        Bispo, praticou os crimes que se seguem, por indústria do
        referido Bispo e, confiado nos favores dele, tão estupendos
        e celerados crimes de Deus e, posto de parte o temor da Justiça, não tendo faculdade alguma nem jurisdição; ora o  dito vigário 
        induziu... a Afonsa (?), mulher de Brás Lopes, a jurar
        falso contra o Mestre Luís, o que a própria fez, e ao seu  marido. 
        
        2) O mesmo fez com António Álvares e 
        Beatriz Curada. 
        
        3) Também levou Bastião Martins a depor contra os
        cristãos novos, obrigando-o muito e dizendo além disso que era então 
        tempo de tomar deles vingança. 
        
        4) Levou a filha de Bastião Martins, na capela da Beata
        Catarina, e impôs-lhe pena de excomunhão, a jurar falso
        contra Fernando Álvares e sua mulher; e porque ela acerca disso fez 
        objecção, injuriou-a, chamando-lhe meretriz e outras
        palavras injuriosas, e por causa disto negou-lhe também o
        Santo Sacramento. 
        
        5) Item obrigou Agarena Fernandes de Terres, e muito
        a instou, a jurar falso contra seu senhor, com promessa de
        a livrar da escravatura; e, porque isto não fez, injuriou-a
        publicamente com palavras, na igreja, quando ali estava para
        receber o Santo Sacramento. dizendo-lhe que não queria jurar
        por não ser cristã. Testemunhas disto: aquela, o arcipreste
        tesoureiro e ainda aquele que na igreja presta serviços. 
        
        6) Item induziu Gaspar Dias a jurar contra certo cristão
        novo, seu inimigo, dizendo-lhe que, sendo tempo de se vingar, fosse prestar juramento. Testemunhas disto: 
        ele próprio,
        que é pessoa de grande autoridade. 
        
        7) Item sem nenhuma razão impôs no púlpito a pena
        de excomunhão para que fossem depor contra os cristãos novos, e tomava 
        denúncias e por elas prendia e soltava.
        Testemunhas para isto: António Rodrigues e o arcipreste e  Francisco 
        Brás e André Jorge Francisco Vieira. 
        
        8) Item pelas mesmas denúncias que tornou pela excomunhão que impusera, prendeu um perfumista da localidade
        de Aveiro, a quem soltou por causa dos presentes que dele recebeu. 
        
        / 85 / 
        
        9) Item, vindo o mesmo vigário de Coimbra para
        Aveiro, encontrou Eduardo Fernandes, genro de Maria de
        Leão, e prendeu-o, dizendo o tinha por culpado, e assim
        preso o conduziu até esta localidade; e, porque ele lhe deu
        os seus bens, o soltou. Testemunhas presentes para isto: Egídio Coelho 
        Barrigelo e Caupona de Mamarosa e o citado Eduardo Fernandes. 
        
        10) Dirigiu-se para a localidade de Oliveira do Bairro, levando consigo 
        Barrigelo, e entrou em casa do ourives Eduardo Fernandes e prendeu-lhe a 
        mulher, declarando-a
        culpada; e, porque ela lhe deu dos seus bens e também galinhas para 
        comer e vender, a soltou. Testemunhas presentes
        para isto: Egídio Coelho Barrigelo e Afonso Gomes, tabelião da dita 
        localidade de Oliveira e sua mulher e a mulher de Eduardo Fernandes. 
        
        11) Item no ano pretérito 
        fez por seu punho certa carta
        deprecatória e assinada pelo juiz de Mortágua a quem requeria prendesse Fernando de Medina, cristão novo, porque o
        considerava culpado por visita, sem para isto ter autorização. 
        Testemunhas presentes para isto: o juiz da referida
        localidade de Mortágua e André Álvares (sentifero (?)) e o
        bispo reitor, a quem o juiz acima nomeado levou a mencionada carta, e 
        Gonçalo Homem, soldado. 
        
        12) Item fez-se vigário geral do episcopado e por sua
        própria mão escreveu certa carta de excomunhão que um
        domingo começou a divulgar perante o povo, dizendo-se sem dúvida irmão 
        João, mestre capelão de Nosso Senhor e vigário geral no espiritual e 
        temporal na dita localidade
        de Aveiro, e dá cartas de excomunhão sem licença do bispo.
        Testemunhas para isto: Francisco Vetiva e o arcipreste e Francisco Brás, 
        André Jorge e António Rodrigo e o prior
        de Santo Arbus (?). 
        
        13) Por aquele tempo em que entregou aos cárceres alguns cristãos 
        novos da localidade indicada, andava a sua concubina em negociações 
        pelas casas, dizendo que, se lhe
        dessem dos seus bens, faria que o vigário os não prendesse. Testemunhas 
        para isto: Diogo Homem e mestre Adão e
        Jorge Nunes, Mercário e Luís Gomes Sancinatore (?), de
        quem a referida concubina extorquiu até... (?). 
        
        14) Item foi-lhe dado em confissão certo apitinu(?) de
        prata, assim vulgarmente chamado...... que tinha o peso de 
        setecentos reais, e ele próprio lhe chamou seu e o vendeu. 
        
        /
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        Testemunhas para isto:. António Rodrigo e o arcipreste e Francisco Brás e André Jorge e 
        Diogo Fernandes de Montemor, a quem pertencia o dito apitũ (?) 
        
        15) Item roubou certa cadeia da pia batismal e levou-a
        para sua casa, sita na «rua da Cruz», onde a tem....., e por tal
        motivo esteve aberta a pia. Testemunhas para isto: Francisco Vieira e o  clérigo Diogo Dias e Francisco Brás e o
        arcipreste e António Rochio. 
        
        16) Item roubou certa parte da prata do turíbulo para
        os panos do altar, os quais não quis dar senão depois de, por
        isso, ser excomungado. Testemunhas para isto: o tesoureiro André Jorge e 
        o arcipreste e António Rodrigo e Francisco
        Brás. 
        
        17) Item roubou dois livros pertencentes à igreja e certo 
        cratinũ (?),que tudo teve em sua casa, e o tesoureiro ordenou
        que se obtivesse certa carta da excomunhão, que o próprio
        vigário publicou, e depois da publicação, durante alguns
        dias; de manhã, enquanto se rezavam as horas matutinas,
        foi encontrado o seu fâmulo com os mencionados livros, trazendo-os à igreja, e 
        ele próprio foi além dos dias marcados,
        a partir do próprio tempo da publicação da referida carta.
        Testemunhas para isto: o tesoureiro André Jorge e o arcipreste e António Rodrigo e Francisco Velasco. 
        
        18) Item, estando...... a filha de Miguel Ribeiro, e porque
        dizia estar tomada do demónio, presente aí uma certa feiticeira, o vigário trouxe junto 
        dele o Beato Bartolomeu para sua casa com 
        uma estola, onde deixou tudo à mencionada
        feiticeira, durante muitos dias, e tinha ligado o Beato Bartolomeu com 
        quatro ligaduras; e, estando a referida estola na
        cabeça da doente, a própria feiticeira fazia as suas rezas, e
        vinham muitas pessoas prestar-lhe as suas homenagens e
        interrogá-la acerca de seus maridos e filhos já defuntos, e o
        próprio vigário sabia tudo isto e ia ali sempre. Testemunhas para isto: Miguel Ribeiro e  a senhora Catarina 
        Lopes e o 
        arcipreste e a mulher de Jorge Alvares e António Rodrigo
        e a mulher do mecânico André Gonçalves e André Jorge
        e Francisco Brás e a mulher do mecânico João Gonçalves. 
        
        19) Item como se confessasse ao mesmo certa serva de
        Pedro Anes Amado, governador da província, e revelando-lhe
        certo pecado que respeita à feiticeira, ele próprio a tentou, dizendo 
        que queria dormir com ela, por ser bonita, e lançou-lhe a mão para fazer isso; e, porque a citada serva lho
        não consentiu, disse que exporia tal pecado ao visitador, 
        
        /
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        quando ele viesse; e que ela própria visse qual preferia: se
        consentir agora no desejo dele, ou ser denunciada. E porque ela o não 
        quis consentir, acusou-a do dito pecado secreto ao irmão Luís, 
        visitador, que pouco depois veio, o qual a condenou na pena de mil 
        reais. Testemunhas para isto: a própria serva e o governador Eduardo 
        Lopes e o arcipreste e António Rodrigo e Francisco Brás e André Jorge e Francisco 
        Vieira. 
        
        20) Item confessando-se ao mesmo uma certa filha da Comumba (?)..., 
        ele 
        próprio lhe manifestou desejos de dormir com ela, por ser mulher de 
        muito boa disposição, o que ela não quis consentir; e porque ele queria 
        abusar, ela própria se queixou disto, e  depois ele mandou-a prender, 
        por causa do ódio que lhe tinha. 
        
        21) Item quando baptizava as crianças não quer dizer 
        − «ego te 
        baptizo in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti»; e, apesar de ser 
        a este respeito repreendido, não o quis emendar, como aconteceu com 
        certo filho de Cosme Diogo...,
        a quem baptizaram de novo, e com outros. Testemunhas
        para isto: o prior de S. Martinho, o tesoureiro André Jorge, Cosme Diogo 
        ....., o barbeiro Bastião Vaz e o arcipreste. 
        
        22) Item não deve ter cuidado com as almas, porque é grande jogador e 
        por isso não ministra, como lhe cumpre, os sacramentos necessários. 
        Testemunhas para isto: António Rodrigo, Francisco Brás, o arcipreste e 
        Miguel Rodrigo. 
        
        23) Item, estando um tal João Diogo, marinheiro do Alboi, para morrer, 
        mandou chamar o dito vigário, a fim de lhe ministrar a  extrema-unção; 
        e, porque estava a jogar em
        casa de Lopo Alvares, não o quis fazer, apesar de ter sido repetidas 
        vezes chamado, até que aquele morreu sem a referida unção. Testemunhas 
        para isto: a mulher do referido João Diogo, André Jorge e o sacristão. 
        
        24) Item, como um sujeito de S. João estivesse moribundo, o qual na 
        verdade veio a falecer em casa da Sr.ª Catarina, mandou chamar o referido 
        vigário para que lhe fosse ministrar o sacramento da confissão, o que 
        ele, por andar ocupado a caçar coelhos, não quis fazer. Por isso, o 
        clérigo Diogo Dias foi-lhe ministrar a confissão, e depois disso mandou 
        chamar de novo o mesmo vigário para que lhe desse a extrema-unção; e 
        porque ele estivesse ocupado no jogo, recusou-se a fazer isso, e assim 
         
        morreu o doente sem a referida unção. Testemunhas para isto: o 
        arcipreste Diogo Dias e António Rodrigo. 
        
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        25) Item, entrou em casa do Bandaglio, assim vulgarmente chamado, porque lhe prendeu a mulher sem licença
        do Bispo e lhe esquadrinhou a casa até que encontrou certo
        recibo (?) do qual constava ser o próprio Bandaglio devedor
        de dinheiro, e dois barretes (?), o qual recibo imediatamente rasgou. 
        Testemunhas: o Tabelião André Afonso, Fernando
        de Leão Bandaglio e sua mulher. 
        
        26) Item, estando André Martins casado com certa
        mulher, o mencionado Vigário obrigou-o a casar com uma
        serva de Miguel Ribeiro, por causa dos presentes que ela lhe
        deu; e embora Bastião Martins, pai do dito André Martins,
        lhe dissesse que os não unisse em casamento, porque ele era
        casado, não o quis fazer, e assim por ele foram praticados
        grandes latrocínios e devastações, e a citada outra mulher
        morreu. Testemunhas: Bastião Martins, o pai de André
        Martins e a sua mulher. 
        
        27) Item porque estas pessoas que vêm confessadas
        para receberem o Santo Sacramento, depois que estão na missa, lhes não 
        quer dar o corpo de Nosso Senhor... e os
        faz levantar, até que de novo se confessem a ele e os obriga a dizer 
        alguma coisa contra os seus senhores, como fez com
        certa serva que foi de Manuel Diogo e com a mulher de Pedro Jorge e com 
        Agarena de Torres, as quais estando na
        igreja para receberem o Santo Sacramento, publicamente as
        mandou levantar, o que foi grande escândalo. Testemunhas
        para isto: eles próprios. 
        
        28) Item, tendo ele próprio a sua concubina na parte
        alta da vila junto do Corgo (?), assim vulgarmente chamado,
        e como tivesse chegado a mesma concubina, com quem dormira, celebrou missa no Espírito Santo; e, depois que comungou, por estar muito incomodado, vomitou, sem sobre isto
        tomar qualquer precaução. Testemunhas para isto: o tesoureiro André Jorge e a mulher. . . (?) 
        
        29) Item, depois de ter dado o corpo de Nosso Senhor
        a certo enfermo e ter voltado à igreja, pôs o Santo Sacramento no cálice sobre o altar, não querendo tornar a pô-lo
        na custódia; e, quando regressou não foi encontrado, a não
        ser algumas poucas partículas, a despeito do que lhe competia fazer. Testemunhas: o arcipreste, António Rodrigo,
        Francisco Brás e o tesoureiro André Jorge. 
        
        30) Item, tendo o tesoureiro André Jorge sessenta reais
        de esmolas e como o próprio vigário estivesse jogando e carecesse de 
        dinheiro para o jogo, apropriou-se das ditas 
        
        /
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        esmolas, que imediatamente perdeu e não quis restituir ao referido André 
        Jorge. 
        
        31) Item, na noite da Natividade do Senhor, dizendo missa um tal Salinia 
        e estando na altura do Evangelho, veio o referido Vigário com grande 
        fúria e tirou-lhe o cálice, tal qual como ele o tinha, e afastou-se sem 
        o querer restituir. Pelo que foi necessário, para acabar a missa, ir 
        buscar certo cálice pertencente à confraria da Santíssima Trindade. 
        Testemunhas para isto: Salvador Fernandes, o  tabelião João Peres, o 
        acima dito presbítero Salinia, António Rodrigo. 
        
        32) Item, morrendo uma criança de certo Ferreira, servo de Fernando 
        Álvares, procuraram o dito vigário em casa da mulher de Dionísio Pires, 
        onde ele próprio estava com a amázia, para que lhe fosse dar sepultura, 
        o que ele não quis fazer. Testemunhas: o próprio Ferreira e sua mulher e 
        a mulher de Lourenço Anes Canar. 
        
        33) Item, sendo-lhe apresentada certa carta de excomunhão do Bispo de 
        Coimbra por parte da  mulher de João de Ipse (?) sobre certa contenda 
        que Lopo Álvares, da mesma
        vila, tinha, estando o mesmo vigário no púlpito a fazer prédica, viu-o 
        de pé; e porque a dita carta falava contra Lopo Álvares, do púlpito onde 
        estava mandou-lhe perguntar se a publicaria ou não, o qual respondeu 
        afirmativamente. Testemunhas: Lopo Álvares e o doutor Paulo Luís. 
        
        34) Item manda pescar aos domingos e apropria-se dos peixes que pescam, 
        sem os pagar pelo seu valor; e por isto o mencionado vigário consente 
        que pesquem em dias de festa, como fez com os filhos de Maria Peres, do 
        palheiro, aos quais e a outros mandou pescar ao domingo, e por isso os 
        absolveria, os quais pescaram muitos peixes, e até hoje não os quis 
        pagar, e de igual modo fez com Eduardo Rodrigo e Francisco Rodrigo, de 
        Sá. Testemunhas: todos esses. 
        
        35) Item exigiu a essa Maria Peres três mil reais, por isso que os 
        filhos dela, ou um deles, não podiam contrair matrimónio. Testemunhas: 
        eles e ela. 
        
        36) Item, dando-lhe João Peres certas casas de aluguer para a sua amázia, 
        pela renda de mil e oitocentos reais, dos
        quais tinha de rezar um trintário ou ofício dos mortos, tomou para isso 
        mil e duzentos reais, e até hoje não o quis dizer ou rezar. 
        Testemunhas: João Peres e o médico Haro. 
        
        37) Item, cobrando João Peres as esmolas devidas a S. Sebastião, 
        ele 
        próprio lhe tirou quinhentos reais, que não 
        
        /
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        quis restituir, e pelo contrário se esforça por haver aquelas que 
        restam, dizendo ao referido João que teve licença de celebrar missa na 
        dita igreja de S. Sebastião, se der as mencionadas esmolas. 
        Testemunhas: o dito João Peres. 
        
        38) Item foi a casa do cristão-velho João Egídio Largemo, a quem disse que era mau cristão, porque não ia à igreja, e por 
        isso o ia excomungar; e, porque aquele lhe respondeu que era bom 
        cristão e todos os domingos e dias festivos ia à igreja, pediu-lhe cem 
        reais, para que o não publicasse, os quais ele lhe deu. Testemunhas: 
        João Gonçalves e o tabelião João Peres. 
        
        39) Item, sabendo ele próprio que têm publicamente amázias o 
        estalajadeiro que veio da cidade do Porto e além
        disso um ourives que também veio da mesma cidade, não os afasta dos 
        ofícios divinos por causa dos bens que lhe dão e põe-nos a perder. 
        Testemunhas: o arcipreste, António Rodrigo, Francisco Vieira, André 
        Jorge, Francisco Brás. 
        
        40) Item, porque é de muito má vida, sendo dados ao visitador do Senhor 
        Bispo os artigos (da acusação) e sobre eles interrogadas testemunhas, 
        não quis deixar de jogar, nem no dia de hoje o quer fazer. Testemunhas 
        para isto: o arcipreste, António Rodrigo, Francisco Brás, André Jorge, 
        Diogo Lopes. 
        
        41) Item, como certa serva, chamada Isabel, abrisse de noite a porta da 
        casa da sua concubina, querendo revelar-lhe alguma coisa, despiu-a, como 
        se fosse a sua própria serva e, com grande aspereza e crueldade, como 
        com razão costuma
        fazer aos próprios servos, bateu-lhe desalmadamente. Testemunhas para 
        isto: o filho Bedes; Francisco, filho de mestre Simão Peres e a própria 
        serva. 
        
        42) Item, prendeu na igreja certa mulher de Ferrário
        Vicente, a qual viveu com Fernando Álvares desta vila, conduziu-a a sua casa 
        e interrogou-a muito, e muito a exortou a jurar que 
        eles eram judeus, a fim de salvar a sua alma; e porque ela não lhe quis 
        fazer a vontade, injuriou-a muito, dando-lhe o nome de meretriz e 
        muitos outros desonestos. Testemunhas: a dita mulher e Francisco Vieira. 
        
        43) Item, mandou prender na vila o jovem Adão 
        e
        depois com certo notário apostólico fazia-se passar por inquisidor e 
        interrogava pelos crimes ou culpas daquele e instantemente obrigava as 
        pessoas a jurar contra o mesmo, as quais
        também com as maiores excomunhões por esse facto obrigava, 
        
        / 91 / e ralhava com as mesmas, por não jurarem falso contra
        o mesmo: Testemunhas para isto: Pedro Tomás e sua mulher
        Isabel Dias, e o clérigo Salinia que era o escrivão. 
        
        44) Item, sabendo que a serva do governador Pedro
        Anes Amado jurara contra ele próprio sobre o supradito
        artigo (de acusação), que fala nele, temendo aquele mau e
        grande pecado, que contra este cometera, socorre-se de Lopo Álvares para que lhe valesse e fizesse que a mesma serva
        não jurasse contra ele; o qual Lopo Álvares mandou chamar
        no dia de S. João esta mulher e a mãe dela, dizendo-lhe com
        muita instância que não culpassem o vigário; e, ao fazerem
        a inquirição, ele próprio afastara a dita mulher, para que ela 
        não pudesse depor. Testemunhas: Lopo Álvares e a própria
        mulher, e o governador e sua mulher e a mãe da mulher e
        da ama do governador e Álvaro Doquintes e o mestre Dr. Gregório. 
        
        45) Item, como  contra outra Isabel Caldeira, por causa
        de rendas da sua capela que lhe não haviam sido pagas,
        publicasse uma carta de excomunhão, um tal Ferreira deu
        ao mesmo vigário duzentos reais, para que ele os entregasse
        à dita Isabel ou ao seu procurador Fernando, os quais ele
        nunca quis entregar. Testemunhas: Fernando de Leão. 
        
        46) Item, roubou da casa do mestre Luís  dois livros de
        Física, do valor de dez ducados. Testemunhas: o juiz Pedro
        Dermaro, o tabelião Manuel Dias e o físico Flávio. 
        
        47) Item, o mesmo vigário induziu Pedro Anes Mendes (?) de Alcântara, sendo habitante do lugar de Alboi, à ir
        a Coimbra jurar falso contra certo cristão novo, que ali foi,
        e ele não quis jurar, e ele disse-o ao nobre Álvaro de Sousa
        que logo no dia seguinte disse aquilo ao vigário no cemitério da igreja, estando presente o tabelião Fernando Diogo. 
        
        * 
        
        Não desejamos comentar nada do que acima fica: consideramo-lo, segundo já dissemos, mero testemunho histórico
        de uma época distante, e como tal o oferecemos ao futuro
        historiador da evolução social do nosso Distrito, que não
        pode, evidentemente, dispensar-se do conhecimento integral
        de documentos desta categoria. 
        
        Ele os julgará na sua serena imparcialidade. 
        
        ANTÓNIO GOMES DA ROCHA 
        MADAHIL  |