MÍSERA, consolação é, em
boa verdade, para quem falha, considerar em sua consciência o exemplo de
outros
vencidos no combate da vida. Mas seguramente só verdadeiramente se falha, quando nos consideramos
vencidos.
Os grandes triunfos, constrói-os o trabalho persistente,
com grandes pedras de sonho movidas pela omnipotência da fé. Quando se apaga a fé, então sim: então verdadeiramente
falhámos, e ficar-nos-ão na alma, como entulho, as carradas de sonho com
que poderíamos erguer o castelo do triunfo.
Vem na Bíblia que ultrapassará os Reis quem for, em
seu trabalho, persistente. E à frase de Cristo − a fé remove montanhas
−, não é necessário invocar em favor dela a possibilidade do milagre,
porque humanamente a vemos significar uma verdade de todos os dias.
O Gafanhão é isto mesmo: um homem persistente em seu
querer,
teimoso no trabalho, inquebrantável na fé de vencer. E há-de haver um
dia, por justiça imanente da vida, cinzel ou caneta de homem de génio que
materialize em forma artística a epopeia sublime desse camponês que
ninguém conhece, quando ele é maior ainda do que o guerreiro da
reconquista e o marinheiro das descobertas.
A Gafanha é hoje uma grande arca nacional de pão.
E nunca demais enalteceremos o labrego rude que lhe despejou a areia e a
encheu de feijão e milho.
Fica situada entre os dois braços da Ria de Aveiro que da Barra se
dirigem para o sul, grosseiramente paralelos, um até ao Cais do Porto da Cruz, para os lados de Mira, outro, por
Ílhavo e Vagos, até à
Ribeira do Boco.
Considerando o nome Gafanha, é-se tentado a supor que ali fosse em
remotas eras a gafaria para onde se enxotassem os leprosos do reino. E
mais esta suposição nos tenta, se
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reparamos que tudo aquilo era um deserto imenso, sem água
nem folha verde. Esta hipótese, no entanto, nem a história
a confirma nem a aceita a filologia. Apenas hoje se antolha
a leigos, e não tem outro valor que não seja o de imagem
de recurso para retratar-se a aridez do sítio.
Era um lençol desolador de areia branca, de dúzias de
quilómetros quadrados, que os braços da laguna debruavam
a norte, a leste e a poente, isolando do contacto da vida a solidão
árida do deserto.
Lá dentro, longe das vistas,
bailavam as dunas ao capricho dos ventos, a dança infindável da mobilidade selvagem
dos elementos em liberdade.
Brisas do mar e brisas de terra, ventos duráveis do norte
em dias de estabilidade barométrica, e rajadas violentas de
sudoeste a redemoinharem no céu enfarruscado de noites
tempestuosas, eram quem governava o perfil das areias movediças cavadas em sulcos e erguidas em dunas de ladeiras socalcadas a miudinho.
Era assim a Gafanha do tempo dos nossos
bisavós:
deserto enorme de areia solta, a bailar, ao capricho dos ventos, o cancan selvagem de uma liberdade sem limites.
Um dia, não longe ainda, um homem atravessou a fita
isoladora da Ria e pôs pé na areia indomável. Não sabe a gente se o
arrastava a coragem do aventureiro, se o desespero do foragido. De
qualquer modo, ele fez no areal a sua
cabana, à beira da água, e principiou a luta de gigantes do
Gafanhão contra a areia.
'Em volta da sua casota, para bastar-se, semeou feijão e
plantou couves. Levara consigo uma enxada, e com ela
principiou a luta.
A areia movediça, porém, é praga da natureza, que nunca
deu couves nem pão. Escorrega para baixo, das bordas das
enxadadas, e não deixa esburacar-se para se fazerem plantaçôes.
Nos interstícios dos grãos poeirentos da areia, não encontravam alimento as raízes das
couves, que morriam de ianição. Era um solo maldito que zombava do esforço do homem,
queimando a novidade à falta de alimento.
Mas o Gafanhão não desanimou.
Dentro da água da Ria, longas hastes estendidas no
sentido da corrente, vivia, presa ao Iodo do fundo e alagada
na salinidade, toda uma flora magnífica, rica de fosfatos, a
que não custava deitar a mão.
'O homem desceu à água, arrancou o moliço, enterrou-o na areia com a sua
enxada, e plantou as couves de novo, em
torno da cabana que construíra.
Ainda desta vez não logrou triunfar, porque o moliço foi
um avo infinitesimal de produtividade que a esterilidade da
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possível arrancar pão do solo.
Então passou o Gafanhão a dividir o seu tempo entre a enxada e a ancinho
do moliço, descendo à água, de manhã# para desengaçar algas, e cavando
a areia, de tarde, para enterrá-las. Plantou mais couves e semeou mais
feijões, iludindo, hora a hora, a sua fome, com a perspectiva do dilúvio
de fartura que havia de ter um dia.
Efectivamente, pensava ele, era infinitamente grande
aquele areal que
tinha em frente. E, no dia em que o chão tivesse enegrecido, à força
de moliço e lama, seria possível ter-se ali uma fortuna em terra onde
colher novidade.
Sonhando este grande sonho, tendo aninhada em si a ambição de vir a
ter fartura e aquecido pela confiança segura no êxito, o homem teimava
em cavar e plantar: sempre, indo à Ria e revolvendo a areia, labutando
apesar da fome, semeando pela décima vez onde nove havia falhado uma
cultura, sem desalento nem cansaço.
Quando a brancura do solo tinha ligeiramente escurecido. à força de
adubo, as primeiras folhas da novidade manchavam de verde o chão, em
volta da casa do homem, que sorria, triunfante, limpando o suor às
costas negras da mão calejada.
E então veio de alguma parte outro homem, que se aliou ao primeiro.
E
chegou mais outro ao depois, e um quarto, e um quinto, e uma família, e
mais outras.
Ergueram-se mais casas ao longo dos braços da Ria, uma aqui, outra
além. Mais enxadas começaram a remover a areia e mais ancinhos de dentes
bastos a arranhar o lodo do fundo do canal, arrancando moliço.
O Gafanhão organizava-se em exército indomável na luta contra a praga da
areia. Teimoso por índole, jogou a cartada final: fixou-se. Casou e
teve filhos. Construiu mais casas, mandou fazer mais enxadas de pá
muito larga, muniu-se de ancinhos em maior quantidade e construiu
moliceiros para a faina da Ria.
Eram então mais os braços. Homens
e mulheres, filhos,
genros e noras, tinham todos que amassar em suor a teimosa areia que se
negava a produzir. E, enquanto uns labutavam em terra, cavando e
semeando, outros queimavam ao sol
iodado de sobre a água os dorsos mal cobertos, dobrados sobre os cabos
longos de pesados ancinhos a arrastar na lama.
Em volta das casas, ia o chão enegrecendo, e já o cobria a verdura das
folhas da novidade. Mas havia que alargar para dentro as culturas, que
enegrecer mais areia, que fertilizar maior superfície de deserto.
E então surgiu o inevitável: uma noite de vendaval cobriu de areia as
culturas, erguendo dunas sobre as sementes enterradas.
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Foi preciso recomeçar pacientemente. Foi necessário enterrar moliço muito
ao largo, tentando prender com húmus a areia movediça que o vento espalhava ao acaso.
E o Gafanhão assim fez. Foi tratando com adubo hectares de solo, para colher apenas nas poucas geiras que lhe
rodeavam a casa.
Tudo isto, porém, ia levando anos sobre anos, em que a areia e o vento pareciam apostados em destruir caprichosamente o trabalho
do homem. Não fora o Gafanhão quem é,
teimoso e paciente como um herói lendário, e teria desistido
de domar aquela terra maldita que a si própria se cobria, arrasando numa hora muitos meses de esforço inaudito.
Uma outra geração sucedeu, porém, à primeira, e a luta
continuou. Multiplicaram-se os braços, salpicou-se de casas
todo o areal da beira-Ria, e os avós ensinavam aos netos, dobrados todos sobre as mesmas enxadas, que era preciso
lutar e vencer, sob pena de morte pela fome.
Depois da invasão das culturas pela avalanche das dunas,
nunca os mais novos viam que os velhos chorassem, de
braços cruzados, rogando pragas, ao destino. Viam, sim,
crescer na água o número de barcos, e na terra o de enxadas que recomeçavam pela centésima vez o trabalho inútil de uma sementeira que não chegava a dar fruto.
Teimava a areia em bailar, cobrindo cinicamente de grãos estéreis o chão estrumado com algas. E o Gafanhão teimava em vencê-la, enterrando-lhe, mais e
mais lavouros de moliço que ia buscar à água dia e noite.
Ao despontar de uma terceira geração, dispunha já o deserto de pouca areia branca para semear
sobre o terreno escurecido que o Gafanhão adubava teimosamente. Nas encostas das dunas interiores, mais selvagens, começava o
pinheiral a segurar com raizame o terreno esfarelado. E à
beira da água, na areia escura, o húmus e as raízes dos feijoeiros fixavam o perfil de um solo que principiava a render-se.
Ao norte, formava a população a Gafanha da Nazaré.
,Mais abaixo, à beira do canal ocidental, surgira a Gafanha
da Encarnação. Mais para o sul, a Gafanha do Carmo. E para
baixo desta, a Gafanha da Boa-Hora.
Uma população numerosa e trabalhadora conquistava com a sua enxada o
areal desértico, e realizava, à custa de
um esforço hercúleo e de uma persistência sobre-humana, um grande sonho
que havia sido sonhado pelo primeiro Gafanhão,
que na hostilidade da areia construíra um dia a sua cabana e plantara as
primeiras couves.
Principiaram a vingar as searas de milho e feijão. Veio
a batata depois, o grão-de-bico, a melancia e a cebola. E uma torrente de fartura
manou da terra para as arcas do Gafanhão.
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Chegaram negociantes em seguida, à compra dos géneros, e deixaram
dinheiro. Para absorvê-lo, vieram as lojas e os homens de negócio com
relações em outros centros.
Metade dos braços que haviam conquistado a areja à improdutividade eram agora dispensáveis, e emigraram
para a América, donde alguns voltaram ricos.
Então o Gafanhão abriu
através da areia estradas que
asfaltou, por onde rola o seu automóvel de novo rico. Se é proprietário, construiu à beira da estrada o seu palacete e
mandou o
filho a Coimbra formar-se. Formou sociedades de pesca de bacalhau,
construiu estaleiros, fez navios, recrutou pescadores entre os gafanhões
mais pobres e mandou-os à Terra Nova e à Groenlândia.
Hoje é a Gafanha um solo feracíssimo, arca de pão nacional que exporta
centos de toneladas de todos os géneros para as regiões de terra
ingrata, onde o trabalho não frutifica.
É um milagre de esforço e de persistência de um rude camponês
desconhecido cujo trabalho é uma epopeia grandiosa. É um monumento de
triunfo de um homem teimoso que lutou e venceu, ganhando uma vitória tão
deslumbrante quão fantástica foi a luta que sustentou sem desânimo nem
fraqueza de espírito.
Aliás, o Gafanhão continua sendo ainda hoje o
que
ontem foi: persistente e fechado consigo, empreendedor e quase nada
comunicativo. No ambiente que a si próprio se criou, foi modelando
um carácter de homem só, de lutador que sabe até onde pode contar
consigo, e em pouco se fia, do auxílio que possa advir-lhe de alguém ou
de algures.
Encontrando-se a dois passos de Aveiro, o habitante
da
Gafanha não sente nem vive como o aveirense. Menos
sentimental e mais metido consigo, raro se entusiasma ou se queixa, guardando caladamente projectos e desgostos que
tenha.
Fisicamente mesmo, não se encontram no Gafanhão os traços das restantes
povoações ribeirinhas. Não se lhe nota aquele olhar líquido atirado para
longe que existe no
rosto dos homens de Ílhavo, mais amantes do mar alto, embora vivendo
mais longe da costa. Nem mesmo há no Gafanhão a desenvoltura e a viveza
do seu vizinho murtoseiro.
Mas o que fundamentalmente caracteriza o homem da Gafanha é a sua
psicologia de pessoa prática, mais dada aos interesses do solo que à
nostálgica saudade do além do mar, com que sonham em última análise os
restantes homens da beira da laguna.
Enquanto o Ilhavense andou ao deus dará pelos sete mares do mundo,
cortando rotas, descobrindo terras, visitando praias, foi-se-lhe na alma gerando como que uma
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névoa de saudosismo sentimental que deixou aos filhos e aos
netos por hereditariedade.
Mas, enquanto isso, o Gafanhão lutou em terra, prosaicamente, dentro de limitados
horizontes, no fito de uma construção definida. Moldou-lhe esta circunstância um espírito
pragmático, sempre tendo em vista uma finalidade útil e
imediata, em vez de um vago ideal de partir a correr mundo, sem saber para quê, como as gaivotas do mar.
O homem do mar luta com os elementos, porque
o seu
fundo temperamental de poeta o faz instintivamente descobrir
na luta quanta beleza existe no esforço titânico do vencedor
das ondas e dos ventos. O Gafanhão, homem da terra, luta
sem tréguas, teima e vence, é pertinaz, laborioso e indomável, porque da sua luta surgirá o pão que é para
ele a primeira condição da vida.
Por isso, enquanto Ílhavo e Aveiro são hoje terras
pobres, embora com poemas de heroicidade escritos nas rotas de um
milhão de barcos que têm sulcado as ondas de
todos os mares, a Gafanha é simplesmente um celeiro cheio,
uma grande arca de pão.
O Gafanhão pretendeu apenas bastar-se, arrancar alimento da
areia, ser útil. Não tem consciência da epopeia magnífica
erguida em três gerações, com suor e enxadadas,
à sombra da proa recurvada dos seus moliceiros. Mas nem
por isso é menor o seu mérito. Nem por isso a sua Gafanha,
a Gafanha que ele fez sozinho, contra tudo e contra todos,
nem por isso a sua Gafanha deixa de ser um triunfo monumental que aí temos a atestar ao País e ao Mundo que o
braço do Homem continua sendo a grande alavanca da
Criação, e que em boa verdade vence quem teima, porque
a fé revolve montanhas.
JOAQUIM MATIAS |