Miguel de Oliveira, Cortegaça e a «Ribeirinha», Vol. IX, pp. 266-272.

CORTEGAÇA E A «RIBEIRINHA»

COSTUMA referir-se ao ano de 922 a primeira menção documental da freguesia de Cortegaça. É um erro que, por muito repetido, não deixa de o ser. Na célebre doação feita naquele ano ao bispo Gomado e ao mosteiro de Crestuma, inclui-se realmente a «uilla de 'Corthegada integra per suos terminos et sua ecclesia uocabulo Sancti Michaelis cum suos dextros integros» (Dipl. et. Ch., n.º 25), mas trata-se de um lugar da freguesia do Olival, no actual concelho de Gaia.

Cortegaça, do concelho de Ovar, aparece pela primeira vez em documento atribuído duvidosamente ao ano de 1013(1). É a doação, feita por Pelágio Gonçalves a sua mulher Ermesinda Pais, de um prédio situado «in uilla Ermorizi et Cortelaza subtus castro de Obile discurrente ribulo Mediano... quomodo diuidet cum uilla Pariamio et de alia pars cum uilla Mazaneda» (Dipl. et Ch. n.º 220). Não é certa essa data de 1013(2), mas não há dúvida de que o Pelágio Gonçalves e sua esposa, gente nobre e ricos proprietários nesta região da Beira-mar, possuíram prédios em Cortegaça.

Em 1077, fazendo o inventário de seus bens, citavam expressamente a herdade de Garcia presbiter, metade da de Pelagio Louesindizi e parte da que fora de Suario Galindizi, situadas «in ipsa Cortegaza» (Dipl. et Ch., n.º 549).

Como havia e há outras Cortegaças, convém atender a todos os pormenores, para não usurpar direitos alheios; / 267 / importa sobretudo notar, pela relativa proximidade, aquela outra vila «Sancti Michaelis de Cortegaza» que um documento de 1097 situa claramente perto do castro de Pedroso.

A nossa Cortegaça não precisa, aliás, de se abonar com documentos estranhos. Se não há povoação portuguesa a que falte matéria histórica para um livro de cem páginas, esta dispõe de elementos para muito mais. Basta editar-lhe a documentação que anda nos livros de Grijó, arquivados na Torre do Tombo. Lá fui respigar umas notas curiosas, 'no intuito de interessar pelas antiguidades da freguesia algum estudioso local.

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Todos os cortegacenses que passaram pelo curso secundário ouviram falar nos amores de D. Sancho I com D. Maria Pais Ribeira, e sabem de cor as cantigas que esta senhora inspirou ao rei e aos poetas palacianos. Mas haverá algum que conheça as ligações da «Ribeirinha» com a sua terra e saiba que Cortegaça foi «honrada» porque D. Sancho fez presente dela à favorita e a seus filhos? Pois isto não é romance, mas história autêntica.

Encontra-se alusão ao caso nas inquirições mandadas fazer por D. Dinis na Terra da Feira, no ano do 1288. Diz a verba respeitante à paróquia de Santa Maria (aliás, Santa Marinha) de Cortegaça:

«Paay Perez de Cortegaça, jurado e perguntado sse en esta freeguesia ha casa de caualeyro ou de dona que sse deffenda per onrra, disse que ha hj hũa quintaã que foy de Martim Affonsso, e disse que a uiu trager por onrra que nõ entra hj moordomo, mays disse que entra hj o porteyro e penhora hj pola uoz e pola coomha e pola loytosa sse hj morar herdador e polo homezio, mays nõ entra hj o moordomo, e penhora o porteyro por todas estas tres cousas. E disse que desta onrra e desta freeguesia toda leua el Rey de .XVI . quinhões hũ per razõ de Don Affonsso Telez. Perguntado sse esta onrra foi feita per el Rey, disse que ouiu dizer que o dera Rey Don Sancho a Dona Maria Paaez Ribeyra, e disse que ora tragen toda a ffreeguesia por onrra.

Domĩgos loh. de Cortegaça. Dõĩgos Perez de Cortegaça. Martim Perez de Cortegaça. Dõĩgos Dõĩz de Cortegaça. Todos jurados e perguntados, disserõ en todo come Pay Perez de suso dicto». (lnq. de D. Dinis, Iiv. 4. fI, 6 v.).

Temos aqui mencionados, além da «Ribeirinha», D. Martim Afonso e D. Afonso Teles. Para comprovarmos a veracidade / 268 / dos informadores, precisamos de fazer breve excurso genealógico, que terá também utilidade na verificação de outros documentos.

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D. Maria Pais Ribeira era, como se sabe, filha de D. Paio Moniz e de D. Urraca Nunes. Segundo o Livro Velho 2, teve de el-rei D. Sancho dois filhos e duas filhas:

«hum filho ouve nome D. Gil Sanches, e foi chus honrado clerigo que ouve na Espanha, e ouve por barregan D. Maria Garcia;

e outro filho ouve nome D. Rodrigo Sanches que non foi casado nem ouve filhos;

e huma filha ouve nome D. Constança Sanches que foi professa em Santa Cruz de Coimbra, e nom ouve filhos;

outra filha ouve nome D. Tereja Sanches, e foi casada com D. Affonso Telles, e ouverom filhos D. João Affonso e D. Affonso Telles e D. Martim Affonso e D. Maria Affonso que foi abbadeça de Gradafes.»

Além desses quatro, os historiadores citam mais dois, Nuno Sanches e D. Maior Sanches, que teriam falecido na flor da idade.

O CONDE DE SABUGOSA, no seu livro Donas de Tempos Idos, traça-nos sugestivo quadro da vida da corte nesta época. Outros escritores apuraram pormenores que, apesar de curiosos, não interessa referir aqui. Diga-se apenas que D. Gil Sanches, aquele «honrado clérigo», foi poeta e faleceu a 14 de Setembro de 1236; D. Rodrigo Sanches, que jaz em sumptuoso túmulo no mosteiro de Grijó, foi morto na «lide do Porto» em 1245; D. Constança Sanches faleceu com fama de santa a 8 de Agosto de 1269.

Toda esta gente andou mais ou menos ligada ao mosteiro de Grijó porque o pai da «Ribeirinha» seria neto de D. Nuno Soares, «o que fez Gríjó». Diz o CONDE DE SABUGOSA: «Já de há muito parara o coração que tanto batera pela Ribeirinha, e se consumira o cérebro que a sua imagem tanto ocupou, quando levaram para o Mosteiro de Grijó a velhinha que fora na mocidade, radiante de beleza, uma quase Rainha, que ateara paixões, que desencadeara tempestades sentimentais, que foi mãe de poetas, e que fica na  história como a musa inspiradora da mais remota lírica portuguesa!»

Graças à «Ribeirinha» e à sua descendência, enriqueceu-se o mosteiro com muitas propriedades, algumas das quais em Cortegaça. E esta freguesia, se nada ganhou sob outros aspectos, lucrou ao menos historicamente em ser «honrada» pelos tais fidalgos que, como vimos, eram netos do Povoador. / 269 /

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Parece que foi D. Constança Sanches quem fez aqui mais valiosos legados a Grijó.

Segundo o autor da História Genealógica, nasceu esta senhora no ano de 1204. «Dizem que foy Religiosa das Donas que viviaõ junto ao Mosteiro de Santa Cruz, e que tomara o habito no anno 1224. e della se refere, que mereceo aparecer lhe S. Francisco, e Santo Antonio, certificando-a da sua salvaçaõ... Foy taõ devota de Santo Antonio, que logo depois da sua Canonizaçaõ lhe mandou levantar Altar, e fazer huma Capella na Igreja de Santa Cruz de Coimbra, onde faleceo com opiniaõ de Santa, a 8 de Agosto de 1269. Seu corpo foy achado inteiro, e incorrupto no tempo deI Rey D. Manoel, e foy posto em distinto ataude, na sepultura deI Rey D. Sancho seu pay».

Do seu testamento e de outros documentos, vê-se o cuidado que D. Constança tinha em ordenar sufrágios por alma de seu irmão Rodrigo Sanches. Nesse testamento, feito «apud Hospitale Monasterii Sanctae Crucis Colimbriensis», a 14 de Julho de 1269, vem entre muitíssimos legados a diversos institutos religiosos a doação da sua parte de Cortegaça a Grijó: «Mando etiam praedicto monasterio Eccõle totam meam partem de Cortegaça» (Provas do Liv. I da Hist. Gen., n.º II). Mas o mosteiro já estava anteriormente na posse do padroado desta igreja e na de vários outros bens, mercê da mesma doadora.

Em 1264, declarava o prior:

«Nouerint uniuersi presentem seriem inspecturj quod nos Petrus Petri dictus prior Monasterii Ecclesiole obligamus nos et omnes priores subcesores nostros celebrare in perpetuum unam misam in honore Beate Virginis uel Sancti Spiritus Domne Constancie Sancii fllie Domni Sancii bone memorie regis Portugalensis in altari quod eadem construxit in nostra ecclesia in tota uita sua. Et post mortem suam in prenominato altari misa defunctorum pro anima eius et Domni Roderici Sancii fratris sui in perpetuum celebretur. Et hoc promittimus seruare bona fide per bonis quos Monasterio nostro fecit et facitura (?) est et pro hereditate sua de Cortegaza quam nobis contulit in presenciarum cum iure patronatus ecclesie Sancte Marine eiusdem loci cum omnibus pertinentiis suis et cum suis defensis et terminis nouis et antiquis ruptis et inruptis». (Baio Ferrado, fl. 115).

Apesar disso, encontrámos uma doação especial do padroado de Cortegaça ao mosteiro, feita por D. Constança a 18 de Dezembro de 1267 (Tombo do Most. de Grijó, I, fI. 200).

/ 270 / Neste mesmo volume do Tombo estão registados muitos outros documentos dos séculos XII e XIlI, que interessam a Cortegaça e a Grijó. AIguns nomes que neles figuram talvez possam identificar-se com parentes da «Ribeirinha». Há, por exemplo, uma carta datada de 24 de Outubro de 1272, pela qual D. Maria Afonso, irmã dos já nomeados Afonso Teles e Martim Afonso, doa à pitança do mosteiro «universa et singula quae habet et habere debet ex subcessione genitricis suae noblis Domnae Tarasiae Sancii in loco qui dicitur Cortegassa». Essa doação foi confirmada em 1280 por D. Maior Martins, abadessa do mosteiro de Arouca onde D. Maria Afonso era então religiosa.

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Como padroeiro da igreja, o mosteiro de Grijó tinha o direito de apresentar os párocos de Cortegaça, que depois recebiam a colação canónica do prelado da diocese. No mês de Janeiro do ano de 1300, foi confirmado «in rectorem ipsius ecclesiae» Martim Esteves, que ainda em 1315 lá desempenhava a paroquialidade. Em 3 de Agosto de 1376, o bispo do Porto, tendo destituído canonicamente o pároco Gonçalo Gonçalves, nomeou em sua substituição Vasco Gonçalves. Este foi depois provido na paróquia de Santiago de Silvalde, e o bispo do Porto, por carta de 17 de Janeiro de 1401, nomeou para Cortegaça João Martins, natural da diocese de Braga. A 14 de Março de 1567, foi nomeado para esta paróquia, vaga pelo falecimento de Diogo Fernandes Gramaxo, o clérigo de ordens menores Teotónio da Silva, natural de Coimbra, estudante em cânones, que ficou «obrigado de se promover a todas as ordens sacras dentro de hum anno»). Em Setembro de 1600, encontramos como abade Manuel Alves; de 1630 a 1639, o licenciado Pantaleão da Costa. Por uma sentença do provisor do bispado, sabemos que, a 7 de Dezembro de 1671, faleceu o abade Miguel Rodrigues.

Enfim, o cartório de Grijó fornece preciosos elementos para a história desta freguesia. Além dos livros já citados, devem consultar-se na Torre do Tombo o n.º 13 que trata das «Igrejas do Isento de Grijó»: Argoncilhe, Cerzedo, Eirol, Grijó, Travaçô e Travanca (de Oliveira de Azeméis); e o n.º 41 que trata das «Igrejas do Padroado de Grijó»: Silvalde, Cortegaça, Arcozelo, Anta, Oleiros e Maçãs D. Maria.

A título de curiosidade, embora não pertença ao nosso Distrito, direi que esta última freguesia se chama assim por causa da «Ribeirinha). Por carta datada de Julho de 1242, / 271 / D. Maria Pais doou a D. Pedro Guterres, prior de Grijó, e ao seu convento «ecclesia hereditatis meae de Mazanas quae vocatur Sanctus Paulus cujus terminus vocatur Almafala a circummorantibus Colimbriensis Diocesis, quam videlicet hereditatem Rex Domnus Sancius bonae memoriae michi in dono jure hereditario in perpetuum contulit possidendam». Em documento de 1276, o pároco Domingos Feres intitulava-se «Prior de Maçaãs de Domna Maria Paes» ou, segundo um texto em latim, «Rectorem Ecclesiae Sancti Pauli de Maçanis Domnae Maria Pelagii».

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Desde o século XVI, o Couto de Cortegaça aparece unido a Pereira-Jusã e até as disposições que especialmente lhe respeitam estão consignadas no foral dessa extinta vila. Entre os materiais que vou recolhendo para a monografia de Válega, freguesia a que pertence o lugar de Pereira, sede da antiga vila, há documentos e informações que servem igualmente para a história de Cortegaça.

A vizinha freguesia de Esmoriz é das mais ricas em documentação histórica, entre as do concelho de Ovar. Oxalá apareça alguém, disposto a explorar-lhe o filão. Como fecho deste artigo, apenas transcreverei, porque também interessa a Cortegaça, o que se lê, a respeito da Barrinha, no final da inquirição feita no Julgado da Feira em 1288:

«Senhor, sabede que nos chamamos Pero Steuez d Aldoy e Martim Soarez da Rua e Domingos Paez e Pero Paez e Michael Martijnz e Domingos Migejz e Johan Lauandeyra e Steuam Gls e Pero Michaelis, e aiuramentamo los sobre llos sanctos auanglos, e disserom polo juramento que fezerom que, en huum loguar que he dele da freegesia de Esmoriz e dele da freegesia de Corteguaça, contra o mar, a huma laguoa que era deuasso e a que ujam os homens deI Rey e os outros da terra colher o coreçil e a carregua pera cobrir as casas e o junco e a madeyra, e pescauam hj os que queriam pescar en huum porto que sse hj ffaz, tan ben os deI Rey como os da terra; e ora nouamente, des. XV . anos aaqua, Affonso Martijnz Madeyra e Johan Nogueyra queren diçir que he da onrra sua deles de Paramhos e d Esmoriz, e fazem ende onrra nouamente que nom leixam hi colher o coroçil nen no junco, nen na carregua aos homens deI Rey nen aos outros da terra, sse nom per alguo, e leuam ende quatro quatro dineyros de quada fejxe e fazem ende onrra; e disseron ainda que daquelle porto que sse hj faz, que devia seer deI Rey e en que soiam pescar os homens, que leuam ia ora nouamente deles o nauhão e nom nos lejxam hi pescar sse nom per quinhom, / 272 / e chaman no per ssa onrra des . XV . aqua, e pero disserom que todo soia seer deuasso; e alguns homens disserom que, sse el Rey lhis ergisse força dos caualeyros que lhis nom fezessem mal, que lhj dariam logo. XXX . ljbras pelo dreyto que el Rey hi ha; e disserom ainda que, segundo qual porto sse hj faz, que creem que a pouco de tempo ualha aI Rey mays de C. ljbras, e todo esto era deuasso en que gareciam os homens deI Rey e os outros da terra; e de todo feçerom estes caualeyros onrra dela tempo de suso dieto.»

A sentença sobre o caso foi a seguinte:

«Todeste logar seia deuasso e nom no defendam estes filhos dalgo per razom donrra de ssuso dita nem leuem ende os dinheiros que leuam do junco e do corozil nem no nauão. E do porto faça el Rey o que teuer por bem e nom aiam os filhos dalguo cum esse porto que adubem, ca hu quer que sse porto abra deI Rey deue sseer.»

Viterbo teve conhecimento destes documentos através de um traslado de Grijó, como pode ver-se na palavra Corosil.

P.e MIGUEL DE OLIVEIRA

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(1) O doc. n.º 1 dos Dipl. et Ch. (ano 773?) fala numa «uilla Cortegaza» que poderia ser esta, mas oferece tais dificuldades que é preferível, até novos estudos críticos, não o tomar em consideração.

(2) Deverá talvez emendar-se para 1063, lendo Cª onde se leu Lª no original. 

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