Miguel de Oliveira, De Talábriga a Lancóbriga pela via militar romana, Vol. IX, pp. 44-68.

DE TALÁBRIGA A LANCÓBRIGA

PELA VIA MILITAR ROMANA

O TRAÇADO da via militar romana, no percurso compreendido entre o Mondego e o Douro, era tão mal conhecido dos nossos escritores, que CRISTÓVÃO AIRES, por exemplo, indicou-lhe este rumo: «De Condeixa a Velha subia para Coimbra (Eminium), de Coimbra a Aveiro, por pontos que seria difficil determinar; de Aveiro (Talabriga) á Feira (Langobriga) atravessando o Vouga e passando perto de Ovar. Da Feira ia a (Calem) hoje Villa Nova de Gaya» (História do Exército Português, voI. lI, pág. 187).

Foi o Dr. FÉLlX ALVES PEREIRA quem reuniu até hoje maior soma de elementos para a solução do problema, no seu estudo sobre a Situação Conjectural de Talábriga, publicado em 1907. O trabalho desse erudito investigador precisa, porém, de ser completado em muitos pormenores. Por isso, o Sr. Dr. ARISTIDES DE AMORIM GIRÃO, no excelente estudo geográfico da Bacia do Vouga, deixou escrito: «Tão poucos são os vestígios actuais dessa via militar ou tão escassas as observações feitas in loco, que ainda se não conseguiu determinar com precisão a directriz que ela seguia e localizar com segurança as povoações por onde passava».

Na área do actual concelho de Gaia, adiantou alguns passos o Sr. Dr. ARMANDO DE MATOS, com o artigo que, em 1937, publicou na Brotéria. Desejaríamos fazer o mesmo quanto ao segmento − iter diei − compreendido entre as estações de Talábriga e Lancóbriga. Enquanto se não determinar a situação exacta destas estações e se não realizarem pesquisas metódicas dos vestígios da estrada e do espólio dos castros desta região, tudo ficará sujeito a correcções.

Ainda assim, partindo de hipótese de que a estrada medieval / 45 / era a própria via romana, alguma coisa acrescentaremos ao trabalho de FÉLIX ALVES PEREIRA.

Para o conhecimento dessa via via militar, o primeiro texto que interessa é o do Itinerário, chamado de Antonino, mas organizado, segundo se julga, em tempos de Caracala (198-217). Na parte respeitante às estradas de entre o Minho e o Guadiana, apresenta-nos ele um «iter» de Lisboa a Braga, por Jerábrica (Alenquer), Scálabis (Santarém)(1), Conímbriga (Condeixa-a-Velha, Emínio (Coimbra), Talábriga, Langóbriga e Cale. A distância de Emínio a Talábriga é de 40 milhas, de Talábriga a Langóbriga 18, de Langóbriga a Cale 13. Cada milha, segundo os cálculos mais recentes, equivaleria a 1.481,5 metros.

FÉLIX ALVES PEREIRA, em outro estudo, publicado em 1937 nas Memórias da Academia das Ciências (Classe de Letras, tomo lI, págs. 33-111), diz que «havia três espécies de paragens nas vias militares romanas e é de crer que aquelas paragens, das quais constava a denominação nas listas do Itinerarium, fossem as principais; assim, chamavam-se mutationes as destinadas à simples substituição do tiro hípico; stationes, que eram lugares de estalagem, e mansiones, que eram propriamente estações de dormida, quando não se confundiam com as anteriores».

Como notam vários autores, as principais estradas seguem directrizes determinadas quase necessariamente por condições geográficas, que se não têm modificado através dos tempos. As vias romanas teriam sucedido a antigos caminhos ibéricos, e algumas das estradas actuais não devem afastar-se muito das da época romana.

A falta de verdadeiros vestígios, como pontes, marcos miliários, trechos de via, etc., guia-nos a toponímia com as designações de Rua, Estrada-Velha, Carreira, Marco, Padrão, Geira e, nos documentos mediévicos, carraria antiqua, estrada mourisca... As albergarias, as vendas, velhas ermidas e pontes de cantaria, na proximidade de castros ou cividades − eis outros tantos indícios, mais ou menos seguros, da passagem de antigas estradas.

É da combinação de todos estes elementos, e sobretudo da leitura dos documentos medievais, que pretendemos deduzir o traçado da via romana entre o Vouga e o Douro. Não pode a «viagem», feita apenas sobre mapas, ter a segurança de uma exploração directa. Parece-nos, todavia, que as notas coligidas terão alguma utilidade, ao menos para desembaraçar os arqueólogos de fastidiosas buscas documentais. / 46 /

 

MARNEL E SERÉM

Dominavam a passagem do Vouga duas cividades fronteiras: a do MarneI e a de Serém. Ficava a primeira à margem esquerda, na freguesia de Santa Maria de Lamas. Ali existiu um mosteiro que foi objecto de doações de D. Enderquina Pala, nos anos de 951 e 961: «monasterium de marnelle que uocitant sancta maria de lamas cum suas varzenas» (Dipl., n.º 73 e 84). Com propriedades de D. Pala confinavam as do conde D. Gonçalo Mendes, doadas a Lorvão em 981 (Dipl., n.º 132). E já dali se toma para referência o monte Meison Frido que não tardaremos a encontrar. Da cividade ou castro do MarneI falam expressamente alguns documentos: «subtus ciuitas marnele discurrente riuolum Uauga», ficava o mosteiro de Santo Isidoro de Eixo ao qual Zoleima Gonçalves doou várias propriedades em 1095 (Dipl., n.º 819); «et in confinitate Castelli Marnelis, inter fluvium Vougam, et montem qui dicitur Meiçom frio», situava-se a vila do Pinheiro, doada em 1121 a Lorvão por Pedro Pais e Jelvira Nunes Elucidario, Cidade III).

Documentos relativos a estas povoações e a outras próximas registam pormenores interessantes: falam em fontes e moinhos, citam uma lagoa e uma ilha onde costumava armar-se uma pesqueira («illa insula ubi illa conbona sollen facere»). Todavia, o mais importante para o nosso estudo é assinalarem o curso da estrada a que chamam maior: «de alia parte per estrata maiore» (ano 1050); «et diuide per illa strata maiore et de alia parte diuide per illo termino de sancta maria de lamas» (ano 1077) (Dipl., n.º 378 e 549).

Na margem direita do Vouga, ficava a «Civitas quae dicitur Serém», como reza um documento de 1170 (Elucidário, Cidade III). Ligando as duas margens, uma ponte cuja conservação se considerava tão indispensável que, no século XIII, era obra de caridade contemplá-la nos testamentos. Gonçalo Gonçalves, chantre das Sés do Porto e Coimbra, deixava-lhe 10 libras em 1262 e D. Sancho, bispo do Porto, lembrava-a igualmente em 1292 (Censual, 405, 408 e 436).

Em importante trabalho, recentemente publicado, se escreveu a propósito o seguinte: «O indispensável cruzamento da estrada com o Vouga em nenhum outro ponto se poderia obter tão vantajosamente como no local onde ao presente se faz; e que esta passagem decalca a da antiga via militar Aeminium−Calem, referida no Itinerário, chamado de Antonino Pio, demonstra-o à saciedade o extenso troço de estrada antiga, muito provavelmente romana, que ainda hoje se vê cortada na rocha viva e fundamente sulcada por / 47 / milenário rodado de carros, trepando ao alto de Serém, perfeitamente ao lado da actual, partindo sensivelmente do mesmo ponto do rio, e à qual, não obstante, nenhum arqueólogo ainda, que eu saiba, fez referência. Considero também a ponte velha do Marnel, cujas siglas de construção mais de uma vez pessoalmente tenho estudado, sobreposição medieval de uma outra, romana. A meu ver, a via militar Aeminium−Calem passava, pois, rigorosamente ali» (ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL, Estação Luso Romana do Cabeço do Vouga, pág. 9; Coimbra, 1941). Segundo a opinião de um investigador local, referida nesse trabalho, «a civitas Serem era a mesma civitas ou castellum Marnelis, nomeada de diferente modo nos diversos documentos» (Ibid., pág. 71, nota).


ALBERGARIA A VELHA

Em princípios do século XII, era aqui um dos pontos mais perigosos do percurso. Deixadas as povoações da margem do Vouga, entrava-se por uma região selvática, só frequentada por caçadores de veados, corças, gamos e ursos, e por salteadores que não raro desciam à estrada a espoliar e assassinar os caminheiros. Para assegurar a defesa da terra e a assistência aos viandantes, a Rainha D. Teresa coutou a Gonçalo Eriz a vila chamada de Osseloa, entre os limites da Terra de Santa Maria e os de Vouga, com a condição de ele e seus descendentes proverem à manutenção de uma albergaria.

A carta de couto, lavrada com as solenidades do estilo em Novembro de 11I7, «in terra Sancte Marie, ubi vocant Feira», é a certidão de nascimento de Albergaria-a-Velha. Em Abril de 1174, confirmou-a D. Afonso Henriques a Mendo Fernandes, neto de Gonçalo Eriz, e em 1258 o bispo de Coimbra D. Egas mandou-a trasladar em pública-forma, para que se não perdesse(2).

Não vem ao nosso propósito extrair desse documento tudo o que interessa à historia de Albergaria(3). Várias são as referências que nele se fazem à «strada que currit de Portugal in directo de Petra de Aquila», situando-se uns lugares acima e outros abaixo dessa estrada: a albergaria, fundada por colaboração de D. Teresa e Gonçalo Eriz, ficaria num lugar de «super strada». Alguns dos topónimos ainda / 48 / subsistem e outros são de fácil identificação. O couto veio a constituir a freguesia, o nome de Osseloa revive no lugar de Assilhó e um dos padrões chegou até nossos dias no sítio em que primitivamente se erigiu.

A poente, ia o termo do couto até à «Mamoa nigra, que vocabatur arida», mencionada também em documento de 1298: «Que fossem na mamóa da par da carreira de sobre Anzega, que chamam Mamóa negra» (Elucidário, Mamóa). Fica este local a cerca de 6 quilómetros de Albergaria e 2 de Angeja, e ainda é conhecido pelos nomes de Mamoa Negra ou Mamoa da Areia. Guiado pelo onomástico, um investigador local encontrou restos de outras mamoas no planalto de Albergaria: a mamoa das Arrotas, à direita da estrada nacional do Porto a Lisboa, perto da povoação de Açores, e as três mamoas do Taco, visitadas pelo Dr. LEITE DE VASCONCELOS (4).

Segundo o mesmo investigador, a Pedra de Águia é o actual Bico do Monte, belo miradouro perto do qual se erigiu em 1857 a ermida da Senhora do Socorro. Ali terminam as colinas que vêm desde o Vale de Cambra e acompanham a margem direita do Caima até à foz, uns 400 metros acima de Sernada. Era esse decerto o monte chamado de Mesão Frio nos documentos medievais(5). A própria carta do couto fala na «Fonte fria, que antea vocabatur Fontanini de Meigonfrio»; ordenando a pública-forma em 1258, o bispo D. Egas declara fazê-lo para utilidade «Albergarie veteris de Meigonfrio».

Qual seria a origem desta designação, inteiramente obliterada na toponímia actual? O notário de um documento de 1183 pretendeu explicá-la pela grandeza do ermo: «monte qui propter heremi magnitudinem vocatur mansio frigida». Sabemos, por documento de 1097, que mansio era sinónimo de albergaria (Dipl., n.º 847), e vimos que nas estradas romanas havia paragens chamadas mansiones. Pode talvez concluir-se pela sobrevivência onomástica de vetusto albergue existente junto à via militar. D. Teresa, porventura sem o saber, fez uma simples restauração.

Nada resta hoje da obra da Rainha, além da pedra que lembrava o seu nome nas paredes do albergue. Pela descrição que se encontra no «Tombo do Real Hospital de Albergaria-a- Velha»(6), vê-se que era em 1790 uma casa pobríssima de mobiliário e utensílios; a inscrição, gravada em pedra de Ançã na parede do norte, dizia: «Albergaria de / 49 / [Vol. IX - n.º 33 - 1943] pobres, e passageiros da Rainha Dona Thereja com quatro camas, dois enxergoens, esteiras, lume, agoa, sal, fogo e cavalgaduras, esmolas, e ovos, ou frangos aos doentes». O Dicionário Geográfico do P.e Luís CARDOSO (1747) esclarecia que «a todo o passageiro pobre, que traz carta de guia, se lhe dá hum vintem de esmola, e sendo Clerigo, ou Frade meyo tostaõ, e vindo doente se cura, e depois de estar saõ, se naõ pode ainda andar, se lhe dá cavalgadura atê à caza de Misericordia mais visinha [...] e a todos os que nelle morrerem se dá mortalha, e enterramento com officio de tres lições, e Missa, e mais tres de Altar privilegiado; e para este Hospital pagaõ os moradores da Freguesia certas pensões».

Albergaria a Velha está, assim, intimamente relacionada por nome e história com a estrada romana e medieval. Para não esquecer que deve os seus progressos às vias de comunicação, tem agora diante dos olhos o caso da Sernada, «onde actualmente podem admirar-se as grandes e apetrechadíssimas oficinas da Companhia [dos Caminhos de Ferro do Vale do Vouga] − triste e quase recôndito lugarejo de uma ou duas moradas antes de ali passar a via-férrea e de aquelas instalações serem erguidas, no cruzamento da Linha de Aveiro com a de Viseu»(7).


BRANCA

Como adiante se verá, guarda a freguesia dá Branca as maiores probabilidades de possuir o jazigo da velha Talábriga. Andam na sua onomástica várias lembranças arqueológicas e da passagem da estrada: lugares de Crestelo, Outeiro, Mamoa, Estrada, Albergaria a Nova, etc. Domina o povoado a serra chamada de S. Julião, onde por certo se erguia o castro de Abranka, mencionado em documento do ano de 1088 (Dipl., n.º 708). Em 1758, o prior AMARO MANUEL DE SOUSA informava que, segundo a tradição, existira ali a cidade dos mouros chamada Langóbria da qual ainda havia restos de muralhas cujas pedras o povo ia aproveitando(8). MARQUES GOMES dizia por sua vez: «No alto da serra, há ainda vestígios salientes de uma atalaia, que, ao que parece, ocupava toda a circunferência do plaino, na extensão de uns trezentos metros de comprido, de norte a sul, e cento e vinte de largo; divisando-se ainda parte da vala, ou cava exterior, e da linha do parapeito em toda a vala. Do lado do nascente, por detrás / 50 / da serra, há uma saída e estrada larga pela encosta do monte abaixo, com muros ou cortinas laterais de pedra e terraço(9). Desta serra de S. Julião ou S. Gião recolheu Fr. Bernardo de Brito uma pedra com letras «mal distinctas e muy quebradas», que supôs ser padrão de via romana (Mon. Lus., lI, V, p. 3); apesar da desconfiança de HÜBNER, o Dr. FÉLIX ALVES PEREIRA inclinava-se para admitir a autenticidade desse marco miliário e declarava-o pelo menos «reabilitável».

A passagem da estrada pela Branca está assinalada na inquirição de D. Afonso II, em 1220: «quantum laborauerint sub estrada». Nesta inquirição, fala-se num lugar chamado Crastelo e noutro com o nome de Albergaria de Castineyra. Parece-nos que este se poderá identificar com a uilla castiniaria dum documento de 1097 (Dipl., n.º 845), e corresponderá ao actual lugar de Albergaria a Nova. O que não sabemos é se aqui existiria de facto outro albergue ou se tal designação é apenas uma réplica de Albergaria a Velha.


PINHEIRO DA BEMPOSTA

Da passagem da estrada na freguesia do Pinheiro da Bemposta, outrora chamada de Figueiredo, temos já indício no facto de aí serem assinados documentos públicos. Lembramos, por exemplo, uma convenção entre os bispos D. Gonçalo de Coimbra e D. Hugo do Porto, celebrada apud Fikeiredo, a 30 de Dezemhro de 1114 (Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 240 v.). Nas inquirições de D. Dinis em 1284, encontram-se várias disposições relativas aos géneros que no julgado de Figueiredo se deviam fornecer para sustento da corte, «quando se veer EI Rey dalem Doyro [...] en quanto y stever (L. II de Inq. de D. Afonso 3.º, fl. 40).

Nos Anais do Município de Oliveira de Azeméis (pág. 317), lê-se «que, no lugar de Figueiredo-de-Baixo, próximo da antiga estrada romana, existe uma casa e sítio a que ainda hoje chamam o Paço, e a distância de cerca de 150 metros, outra casa que conserva ainda a designação de Alcance, o que junto à circunstância de ser ainda conhecido o lugar por Figueiredo-de-Rei, faz supor que já ali tivesse a sua residência algum rei da antiguidade, árabe». É o vulgar expediente de atribuir tudo aos árabes. Foi nas inquirições de 1288 que encontrámos pela primeira vez «Julgado de Figeyredo deI Rey». Como a igreja pertencia ao padroado / 51 / real e quase toda a terra era reguenga, talvez se dispensem mais complicadas explicações. É natural que nesse Paço tenham pousado muitos reis e rainhas de Portugal. Na vizinha freguesia de Loureiro, esteve, por exemplo, el-rei D. Afonso IlI, como consta de uma inquirição (Livro Preto de Grijó, fl. 19). Supomos que os «paços do Curval» em que D. João I esteve uns quinze dias retido por doença, em Julho de 1387, ao regressar da sua peregrinação a Santa Maria da Oliveira, eram precisamente no lugar do Curval, do Pinheiro da Bemposta.


TRAVANCA

Pertenceu ao julgado de Figueiredo a freguesia de S. Martinho de Travanca onde existiu a honra de Baesteyros (Besteiros) em que estavam incluídos alguns lugares da vizinha freguesia de Palmaz. Lá encontraram menção de um castro os inquiridores de 1274:

«Item disserom que ha y huum crasto que chamam da Damundi em essa honra e trage o El rrey aa ssa maão» (Livro Preto de Grijó, fl. 19).

Existem actualmente os lugares chamados de Damonde (de Baixo e de Cima) e outro com o nome de Cale que lembra talvez uma via de comunicação, afluente da estrada principal.


UL

Tem esta freguesia a sorte de apresentar reunidos quase todos os elementos que até aqui nos indiciaram a passagem da via militar romana; os que porventura lhe faltem, são amplamente supridos por achados arqueológicos de especial valia. O onomástico local oferece, entre outras menos claras, as designações de Rua Direita e de Crasto. Mais uma vez se comprova documentalmente o acordo da toponímia e da história.

Tendo visitado esta povoação em 1909, JOSÉ FORTES escreveu a respeito do castro: «Povoação extinta duma cronologia imprecisa, mas circunscrita aos tempos proto-históricos e lusitano-romanos, ainda hoje por ali afloram, nos declives vertiginosos das encostas e nos sedimentos dos patamares, bastos restos cerâmicas, pedras afeiçoadas e envasamentos de paredes − a carcassa, enfim, deformada e pulverizada dum antigo oppido, que, como os similares difusamente semeados pelas cumeeiras das colinas e dos / 52 / montes do Norte, foi barreira diuturnamente embaraçosa para a penetração das legiões romanas»(10).

Arruinou-se, pelo decurso dos séculos, todo o valor militar desse castro, mas ainda no princípio da Monarquia se lhe respeitava o local, propriedade da coroa. Em 1284, el-rei D. Dinis mandou delimitar-lhe os termos, para ceder o terreno por aforamento a quem o cultivasse. Transcrevemos a seguir os respectivos documentos:

Carta daueença antre Steuam Lourenço e Martim Esteuez clerigo del Rey sobrelos termhos de Crasto de UI.

Conhoscam todos os que este strumento uirem que em presença de mim Steuam Pirez tabelliom deI Rey em termho de terra de Sancta Maria. Steuam Lourenço clerigo deI Rey e Martim Steues Abade de Sancta Maria de UI aueeron sse soblos termhos do Crasto de UI em D.º Paez que foy juiz da Ffeyra e em P.º Paez Cidacos que eles partissem os termhos do dicto Crasto per u eles entendessem que seeria guisado e o dicto Abade e Steuam Lurenço prometerom a boa fe a atender e aa estar ao que eles dissessem. E eles derom por termho do Crasto toda a carcaua ou grata de lo Ryo de Bitoàà hu sta huma aueleeira e uem sse a huma morouça que esta em defeito dessa grata como sse uay pela spiga dessa grata ou carcaua per a par da herdade da Eigreia e uay ferir pela spiga e pelo dereito dessa carcaua e uay aá carreyra que uem da Eigreia e da vila pera esse Crasto sempre pela spiga ata o Ryo de UI e dereito dela dicta spiga... termho do dicto Crasto com todas sas pertenças e o dicto Abade e Steuam Lourenço outorgaron no e puge lhis com aquele partimento que os dictos omens fezeron e outorgaron no outrossi Aquesto for dous dias de Julho da E.ª M.ª C C C.ª XXIj.ª −. Testemunhas Martim Uiuas Martim Iohannis Scudeiro. Martim Domingues de UI e outros muytos. Eu Tabelliom de ssuso dicto a estas cousas presente foy e a rrogo de Steuam Lourenço este stromento com mha mão propria screui e meu sinal y pugi que tal he. (Chancelaria de D. Dinis, liv. 1.º, fl. 103).

Carta de foro de .lIJ. casaaes que iazem en Crasto dul.

Dionisius dei gratia Rex Portugaliae et AIgarbij vniuerssis presentem cartam inspecturis notum facio quod ego concedo Martino Dominici de UI quod ipse faciat tria casalia in crasto dul et ipse et sui successores habeant ipsa casalia pro ad senper et populent et laborent et fructificent ea et debent mihi dare et omnibus meis successoribus quintam partem de pane et de uino et de lino et de omnibus alijs frutibus que Deus ibi dederit et debent ibi facere vineam et postquam vinea dederit lIJ modios uinj debet dare unam quintam pro direitura et debent dare pro direitura de dictis tribus casalibus unum quartarium tritici et unum quintarium milij et unum quintarium de messe et quinque galinas et unum cabritum et decem et outo denarios pro caseo et debent tenere dicta casalia bene populata per IIJ annos cum vacis et cum ganatis et cum bobos et cum manutenencia de casa et cum bonis tribus uigarijs et debet ibi facere domos et dare quindecim solidos de renda et cum morj contigerit aliquis de ditis jugarijs debent dare / 53 / pro luitosa pro quolibet uigaria quinquaginta solidos. Et ad omnia predicta et singula faciendum et complendum ditus Martinus Dominici obligauit corpus et honorem Et ipse nec sui sucessores non debent vendere nec donare nec enprazare. nec cambiare nec aliquo modo alienare dicta casalia ordini nec militi nec clerico nec domne nec scutifero nec alii persone potenti. sed tali omini qui mihi et meis sucessoribus predictos foros et direituras faciat annuatim. ln cujus rey testimonium do inde sibi istam cartam Datam Ulixboñ. XVIIJº dias Julij Rege mandante per Cancellarium D.º Guillelmj notuit E.ª M.ª CCC.ª XXlJª. (Chancelaria de D. Dinis, liv. 1.º, fl. 106 v.).


Da época romana, apareceram em Ul várias inscrições lapidares. A mais importante é a que se encontrou num cipo, exumado em 1790 dos alicerces da antiga igreja paroquial e conservado agora em Oliveira de Azeméis. «Trata-se, escreveu JOSÉ FORTES, nada menos do que de um miliário inédito, seguramente da via militar romana de Aeminium (Coimbra) a Cale (Gaia»... «Ele constitui o primeiro documento autêntico, a primária prova material de que a via militar descia de Cale para Aeminium cortando pelo interior a servir os numerosos castros da região».

A leitura, segundo o ilustre epigrafista, é a seguinte:

TIB. CAESAR. DIVI. AVG.
FILIVS. AVGVSTVS
PONTIFEX. MAXVM
TRIB. POTESTAT. XXV
                      XII


«É, pois, o marco da milha XII da estrada: a, contar de Langobriga ou de Talabriga? Infelizmente, o miliário, como muitos, é mudo a este respeito. Conjecturamos, entanto, que media a distância para a primeira daquelas estações, mencionadas no Itinerário como intermediárias entre Coimbra e Gaia» (Anais cit., págs. 349-350).


OLIVEIRA DE AZEMÉIS

O actual concelho de Oliveira de Azeméis é região privilegiada de castros. Apesar de nunca se terem feito explorações em forma, abundam os achados arqueológicos. E a toponímia não engana. Limitamo-nos, todavia, a atentar nos povoados mais próximos da velha estrada.
A nascente da vila, a capela de N. Senhora de La-Salette coroa agora o outeiro que se chamava do Crasto. No lugar de Lações, há memória de antigo edifício chamado o Castelo, e haveria em meados do século XVIII outros vestígios de remoto povoado, que levaram o abade Dr. MANUEL DE
/ 54 / OLIVEIRA FERREIRA a escrever um trabalho, hoje desconhecido, intitulado: «Verdadeira antiga Lancobriga no lugar de Laçoens da Freguesia de Oliveira de Azemeis» (D. B. MACHADO, Biblioteca Lusitana, voI. III, 2.ª ed., pág. 324).

Na vizinha freguesia de Madail, existe um monte do Castro, no sítio de Vila-Cova. E, mais. para Ocidente, na freguesia de S. Martinho da Gandra, temos os lugares do Crasto e do Troncal onde se recolheram tégulas e mós da época romana, de que se guardam alguns exemplares no museu de Cucujães.

Surge agora um problema de solução difícil: o da situação do Castrum Recaredi, tomado como ponto de referência em muitos documentos medievais. Difícil, porque se obliterou o topónimo Recarei e porque os documentos lhe referem povoações algo distantes, como Fermelã (Dipl., n.º 557), Loureiro (n.ºs 167 e 845), Válega (n.º 187), Ovar (n.º 261). Parece, contudo, que deverá procurar-se no monte que, segundo elucida o rev. P.e JOÃO DOMINGUES AREDE, começa no lugar do Castro em S. Martinho da Gandra e vai acabar na Mamoa onde foi construída em 1367 a ermida de Santo Estêvão, próximo de Adoufe na Arrifana, atravessando todo o centro da freguesia de Cucujães e parte de S. João da Madeira (J. D. AREDE, Cucujães e Mosteiro com seu Couto nos Tempos Medievais e Modernos, pág. 2). São dominadas por este monte a maior parte das povoações referidas ao Castrum Recaredi em numerosos documentos não incluídos na colecção Dipl. et Ch. Citaremos, entre outros, os seguintes: carta de couto, dada ao mosteiro de Cucujães a 7 de Julho de 1139, em que se diz que ele é situado «in loco qui vocatur Cucugianes sob monte castro Recharei»; contrato de propriedades em Souto, S. Vicente de Pereira e S. Martinho, situadas «sub montem qui dicitur Castrum Recaredi» (Livro Preto da Sé de Coimbra, fl. 206); na Agoncida (Mosteirô) «subtus monte castro recarei» (Baio Ferrado, fIs. 104 v., 105 e 105 v.); em Maçada (S. Martinho) «sub monte castro recarei» (Ms. 736 da B. N. de Lisboa. Fundo geral, fls; 322, v. e 323; Tombo do Mosteiro de Grijó, 6, fl. 312 v.); na Ínsua (S. Martinho) «subtus monte castro recarei discurrente riuulo ualega» (Baio Ferrado, fl. 79 v.); em Azevedo (S. Vicente) «subtus castro recarei» (Baio Ferrado, fl. 100). Este mesmo lugar de Azevedo, em documento do ano de 1145, é referido à estrada, embora lhe ficasse um pouco distante: «in uilla dicta azeuedo subtus illam stratam mauriscam» (Baio Ferrado, n. 99 v.). Em face de toda a documentação, parece-nos que não andam longe da verdade os que identificam o Castrum Recaredi com o próprio Castro de S. Martinho da Gandra. / 55 /

 

COUTO DE CUCUJÃES

No monte a que acima nos referimos e que forma, por assim dizer, a espinha dorsal da freguesia de Cucujães, o rev. P.e Arede assinalou, só dentro desta freguesia, a existência de quatro mamoas. Na vizinha freguesia de S. Tiago de Riba Ul, há também um lugar denominado do Crasto. O mais importante, porém, é o encontrarem-se ali, próximo da povoação de Bráfemes, vestígios da antiquíssima estrada. Assim o afirma o mesmo ilustre investigador que nos dá, para mais, o traçado conjectural até à Arrifana. Vinda de S. Tiago, a estrada atravessava em Cucujães o lugar da Pica, seguia ao de Faria de Cima, avançava por S. João da Madeira e continuava em direcção à capela de Santo António da Arrifana, a nascente da actual igreja matriz desta freguesia (Cucujães e Mosteiro cit., pág. 145). No lugar da Pica, transpunha o rio Ul em ponte romana (?) que ainda existe e cuja gravura pode ver-se em outro trabalho do mesmo autor (Museu Arqueológico e Etnológico de Cucujães, pág. 2).


S. JOÃO DA MADEIRA

A propósito do lugar de Azevedo (S. Vicente de Pereira), deparou-se-nos a primeira menção de «estrada mourisca» em documento de Grijó. Como iremos agora encontrar frequentes alusões a essa estrada, convém precisar o sentido de tal designação.

É bem conhecida a explicação dada por VITERBO: «Chamou-se Estrada Mourisca, porque os Mouros a romperam, deixando, talvez já por invadiável naquele tempo, a Estrada Romana, ou Via Militar...» ...«Com o rodar dos anos a costa se entupiu, e alteou por causa das areias, e os rios estagnados não só esterilizaram os campos, mas também fecharam a passagem dos caminhos. Daqui se fez indispensável a presente Estrada Mourisca...»

Ninguém sabe onde o autor do Elucidário colheu notícia de semelhante catástrofe, mas é fora de dúvida que ele se equivocou distinguindo o traçado da via romana do da estrada mourisca. Por um lado, não consta que os Mouros se ocupassem em trabalhos deste género e, por outro, não se compreende que se abalançassem a obra tão arrojada sem terem ao norte o domínio de um núcleo importante de população sua, com o qual fosse indispensável manter ligações.

Ainda que pudesse relacionar-se com eles uma «porta mourisca» / 56 / em Coimbra (RUI DE AZEVEDO, Documentos falsos de Santa Cruz de Coimbra, pág. 78), dificilmente se lhes poderia atribuir uma «carraria maurisca» que um documento de 953 nos dá para os lados de Vila do Conde, em território onde se não exerceu por muito tempo a ocupação muçulmana (Dipl., n.º 67). Qualquer que seja a explicação do nome, a estrada que nesta região se chamava mourisca era a própria via romana.

Passava essa estrada junto à antiga igreja de S. João da Madeira, pois um documento de 1088 fala num casal «quomodo conclude per illa strata de iusta illa ecclesia de sancti ioanni a parte ur» (Dipl., n.º 704); dá-lhe a designação de mourisca um documento de 1142 que situa uma herdade na mesma freguesia desde «illa strada mourisca ata illo ueneiro» (T. do T., Col. especial, c. 52, m. 5, n.º 79).


ARRIFANA

Aparece esta freguesia com o nome de parochia de Manoci nas inquirições de D. Afonso III. O topónimo sobrevive no lugar de Manhouce, que sucedeu a uma antiga vila maniozi mencionada com scapanes (Escapães) em documento de 1053 (Dipl., n.º 385). O lugar da Rua dá-nos a sugestão do agrupamento de casas à margem de uma estrada. A tradição oral e escrita leva-nos para a via romana. Deixaram memória da sua passagem pela Arrifana, a caminho de Compostela, a rainha Santa Isabel e o rei D. Manuel I.

Lê-se no Dicionário Geográfico do P.e LUÍS CARDOSO, art. Arrifana de Santa Maria: «As cousas notaveis da terra são o passar por ella em romaria a Santiago de Galliza a Rainha Santa Isabel; e estando em huma casa, que servia de estalagem, dar vista a huma cega, e de huma laranja azeda que comeo cahindo huma pevide no chão, de que nasceo huma larangeira, e nas laranjas que dava, se divisava no mesmo pomo junto ao pé a fórma das cinco quinas das Armas de Portugal, e conservaõ hoje em hUma folha na mesma larangeira».

D. Manuel fez a romagem de Compostela em 1502. À ida, esteve no castelo da Feira, a 25 de Outubro (T. do T., Gaveta 10, m. 12, n.º 16); no regresso, deteve-se na Arrifana onde assinou, a 5 de Dezembro, uma carta relativa à construção da igreja matriz de Vila do Conde (extrato do doc. em Vila do Conde e seu Alfós, por Monsenhor J. AUGUSTO FERREIRA).

A casa que, em tempo de Santa Isabel, «servia de estalagem», era naturalmente uma albergaria. Nos séculos XVII / 57 /  e XVIII ainda se fala em um hospital-albergue com sua capela, então existentes na Rua. Tudo isso desapareceu, mas bem perto ergue-se hoje a capela de N. Senhora do Ó, quase em frente da casa onde viveu a chamada Santinha da Arrifana (Terras da Feira − Notícias e Memórias da Freguesia da Arrifana de Santa Maria, por SAUL EDUARDO REBELO VALENTE, págs. 41 e segs.).

 

SOUTO REDONDO −  S. JOÃO DE VER

Da Arrifana a estrada actual dirige-se para Souto Redondo, sem tocar na Vila da Feira. Era este também o traçado do século XVIII, como sabemos pelos roteiros. Devia, porém, existir, desde velhos tempos, qualquer desvio para servir a cividade, castro ou ópido, que antecedeu o castelo, e a feira já estabelecida em princípios do século XII e que deu o nome à vila. Seria até essa via de comunicação, em cruzamento com outras, que determinaria a escolha dos subúrbios do castelo para o encontro comercial dos povos de Santa Maria. Os topónimos Estrada Velha e Rua postulam essas antigas artérias na Vila da Feira; por lhe passar desviada a nascente a estrada principal, é que tão pouco se tem desenvolvido a sede de tão importante concelho.

Souto Redondo é lugar pertencente às freguesias de S. Jorge de CaldeIas e S. João de Ver. Em documentos medievais, aparece um monte deste nome a servir de referência para diversas propriedades: «:subtus mons sauto rodondo» ficavam, além de outras, as vilas de S. J oão de Ver (Dipl., n.º I; Doc. Med. Port., pág. 359). Caldelas (Dipl., n.º 851) e Lourosa (Elucidário, v. Tempreiros). Não se nos depara aqui alusão a castro ou estrada mourisca, mas convém fixar desde já este local pelo motivo que adiante se dirá.

A estrada volta a aparecer-nos ainda em S João de Ver. Um documento datado de 23 de Junho de 1101 situa uma vila chamada Casal de Taulfo «inter Gueifar et Casal de Patre et de alia parte inter Lauandeira et illa strata maurisca sub illas mamolas de Uillela) (Doc. Med. Port., pág. 25). Os organizadores da colecção em que se encontra este documento identificaram Casal de Taulfo com Adoufe. Todavia, Gueifar e Lavandeira são lugares de S. João de Ver, onde aliás existe o de Gondufe (com o mesmo elemento ufe) e o de Albergfaria a assinalar a estrada. / 58 /


FIÃES − LOUROSA −MOZELOS

Prosseguindo viagem, tocamos em Fiães, freguesia possuidora de um castro onde se têm feito achados arqueológicos de certa importância. Informa o rev. P.e MANUEL F. DE SÁ, na sua monografia Santa Maria de Fiães, que a estrada romana, de que restam alguns troços, passava pelos actuais lugares de Ferradal e Vendas-Novas, chamado também este vulgarmente Estrada-Velha.

O Dr. FÉLIX ALVES PEREIRA previu a localização de Lancóbrigra em qualquer dos castros situados por esta zona, sem se decidir positivamente pelo de Santa Maria de Fiães. O espólio até agora encontrado permite, no entanto, aos investigadores desta freguesia alimentarem boas esperanças.

Os documentos são mudos a respeito da estrada, tanto aqui como na vizinha Lourosa onde, por sua vez, se nos deparam os lugares de Vendas Novas e Vendas de Baixo.

Mozelos é mais feliz. Já em documento de 1097 se fala numa herdade situada «in uilla dicta moazelus... subtus monte saitella discurrente strata ad portum asinarium riuulo maior» (Dipl., n.º 867). Em documento de 1155, aparece-nos outra herdade compreendida «infra hos terminus»: «ad horientem strata maurisca, ad occidentem moazelus et sagitella, ad aquilonem luiuanes et clauiano, ad affricum laurusela... subtus monte auturelo, discurrente riu maior, prope castellum sancte marie» (Baio Ferrado, fl. 86 v.). Quem conhecer bem a topografia local, ainda hoje poderá identificar a propriedade. Murado e Seitela são lugares de Mozelos; Lourosela é de Lourosa. No monte Seitela ou no Murado, aparecem também despojos castrenses.


ARGONCILHE

A última freguesia do concelho da Feira que nos interessa ao caso é S. Martinho de Argoncilhe. Muito ligada a Grijó, tem no cartório deste mosteiro, hoje na Torre do Tombo, importantíssimo espólio, à espera da devoção de algum bairrista. Com referências à estrada, podem, apontar-se, entre outros, os seguintes passos documentais:

Ano de 1091 − propriedades «in uilla draguncelli subtus monte de pena discurrente riuulo feuerus territorio portugal super illam stratam» (Dipl., n.º 756).

Ano de 1096 − «in uilla dicta eldiriz subtus monturelo... in terra ciuitatis sancte marie super stratam» (Dipl., n.º 842). / 59 /

Ano de 1101 − «in Resmaa subtus monte Ordoni... et est super illam stratam» (Doc. Med. Port., pág. 42).

Ano de 1102 − «in uilla Dragoncelli subtus monte Saxo. Albo... super illam stratam» (Doc. Med. Port., pág. 66).

Ano de 1109 Doe. «in uilla Ramiri et Ordoni et in Petri et in casal d Aluella subtus monte Ordoni... super illa strada» (Doc. Med. Port., pág. 303).

Ano de 1141 Doe. «in uilla ramir subtus monte rotundo discurrente riuulo feuerus super illam stratam et subtus eamdem stratam mauriscam prope littus marinus sub castello sancte marie» (Baio Ferrado, fl. 68 v.).

Temos aqui mencionados, ao lado de topónimos que se obliteraram, os lugares de Aldriz, Ramil e Ordonhe, ainda existentes; e não faltam agora os costumados indiciadores: Vendas de Grijó e Vendas de Pereira.


CONCELHO DE GAlA

Ao entrarmos por Seixezelo no concelho de Vila Nova de Gaia, já devemos ter ultrapassado o limite da possível localização de Lancóbriga. Daqui por diante, está o assunto estudado modernamente pelo sr. Dr. ARMANDO DE MATOS, em artigo publicado no voI. XXIV da Brotéria, com o título de «As estradas romanas no concelho de Gaia». O recurso aos documentos só confirma as conclusões daquele distinto investigador, pois indica a existência de várias estradas antigas que os notários, às vezes, distinguiam da estrada maior ou mourisca, que temos seguido.

Referidas a Grijó, encontramos algumas menções interessantes. Um documento do ano de 995 fala numa herdade «in uilla cereseto... quomo se leua de riu que discurrit de eglesiola et figet se in strata ueredaria que discurrit de portugal et torna pro alia carrale que discuret ad eglesiola» (Dipl. n.º 174; cf. ibid., n.º 328).

É bem conhecido o documento de 1148, citado por VITERBO, sobre uma herdade «in uilla buruntanes et in sancto felice subter illam stratam mauriscam discurrente riuulo cerzedo» (Baio Ferrado, fl. 18). Vários outros se lhe podem juntar; por ex.: «subtus monte petroso castro discurrente riuulo cerzedo qui descendit ad mare territorio portugalensi in terra de sancta maria de ciuitate sub illa strata in uilla brito» (ano 1112; Baio Ferrado, fl. 94); «in ecclesiola in loco qui dicitur casal de arias subtus monte outurelo... territorio portugalensi in terra sancte marie ciuitatis sub illa strata» (ano 1117; Baio Ferrado, fl. 61 v.). A «uilla billanes... discurrente riuulo cerzedo» ficava também «sub illa strata» (Dipl., n.º 675). / 60 /

Em Pedroso, aparece-nos para exemplo uma propriedade na vila Paradela, «et deuidit ipsa uilla qum sexo aluuo a parte mare strata maiore et alia parte inter acisteria petroso» (ano 1078; Dipl., n.º 563). A doação feita em 1098 ao mosteiro por Gonçalo Viegas e sua mulher Adosinda abrangia herdades «siue super strada comodo subtus illa strada» (Dipl., n.º 870).

Enfim... Desde o rio Vouga até à vista do Douro, pudemos fazer quase todo o percurso da velha estrada, guiados por documentos. Bem merecem aqueles Romanos, que a construíram, a justa homenagem de não os confundirmos com os Mouros. Mas quantos outros caminhos não teriam eles aberto ou aplanado entre essa estrada e o mar!

Porque interessa à história das vias de comunicação, terminemos esta jornada com mais um documento curioso.

Encontra-se no Livro Preto de Grijó, fl. 4 v., com a rubrica «Sobre o caminho deffeso de Egrijoo pera o Porto», e reza assim:

«Dom Fernando pela graça de Deus Rey de Portugal e do Algarue A uos Jujzes de Gaya e a todalas outras nossas Justiças que esta carta virdes saude sabede que o priol e conuento do Moesteiro de Egrijoo nos enviarom dizer que aas vezes aconteçe que chegam alguuns fidalgos e outros poderosos e outras pessoas per o dicto seu Moesteiro per ahi auer de comer e que chegam a tempos que no dicto moesteiro nom ha o que lhes compre pera o mantjmento que cada huum ha dauer e que enuyam ao Porto por esso que lhe pera ello compre E que porque ha do dicto moesteiro pera a dicta cidade do Porto huum caminho que vay sahir a ujlla noua dapar desse logar. que he mais preto que o que uay per esse logar de Gaya o qual caminho he deffeso. que enuiam per o dicto caminho esses que aa dicta Cidade enuyam por aquello que lhes assy compre. por hirem e vijrem por el mais asjnha. E enuyam ao dicto logar de Gaya pagar a portagem e outros defeitos dalgũas cousas se as aa dicta Cidade leuam esses que assy enuyam a ella polo que lhes compre E esso meesmo dessas cousas que da dicta Cidade tragem pera o dicto Moesteiro. E que nom embargando que desso que assy leuam e tragem pera o dicto moesteiro pagam ou mandom pagar ao dicto logar de Gaya os dereitos que sse dello am de pagar que uos e os portageiros e alcaydes cooymades esses que do dicto Moesteiro uaão e ueem pera el da dicta Cidade pello dicto caminho defeso E lhes fazedes perder esso que assy per elle leuam ou tragem e os prendem e leuam deles cooymas E enujaron nos pedir sobrello merçee E nos / 61 / veendo o que nos sobrello pedir enuyarom e querendo lhe fazer graça e merçee. Teemos por bem e mandamos que quallquer que do dicto Moesteiro for enuyado aa dicta Cidade por cousa que pera o dicto Moesteiro e mantijmento deI e dos que per el chegam for compridoyro que possa hir e vijnr per o dicto camjnho deffeso sem embargo de nenhũa deffesa que sobrelo seja facta. com tanto que do que leuarou trouuer o que do dicto Moesteiro for de que ouuer de pagar alguum dereito no dicto logo de Gaya que o pague logo em esse logo ou mande pagar aaquel ou aaquelles que esses dereitos ouuerem de ueer e rreçadar E em outra gujsa
mandamos que lhe nom seja facto nenhum desagujsado. Hunde aI nom façades dante em Sintra xxij dias dagosto Ell rrey o mandou per aluaro gllz seu vassalo e corregedor em sua corte Affonsso pirez a fez Era de Mill e quatrocentos e xbij anos» (22 Ag. 1379).


TALÁBRIGA E LANCÓBRIGA

A conclusão lógica deste breve estudo seria a fixação das estações de Talábriga e Lancóbriga. Mas quem se atreverá a fazê-lo?

Tomando como base a contagem das milhas pelo Itinerário de Antonino, iríamos procurar Talábriga nas proximidades de Albergaria a Nova, no extremo do planalto que começa em Albergaria a Velha, onde se atinge a cota 154; e Lancóbriga precisamente em Souto Redondo, onde hoje se cruza com a nacional a estrada que vai da Vila da Feira para as Caldas de S. Jorge. Não vale a pena desenvoIver os cálculos que levam a este resultado, tão falíveis eles se nos afiguram. É preferível considerar o problema no estado em que o deixou o autor da Situação Conjectural de Talabriga e aguardar o veredicto dos arqueólogos.

Da história de ambas as povoações não se sabe absolutamente nada. É verdade que, ao descrever as campanhas de Décimo Júnio Bruto no Ocidente peninsular, APlANO ALEXANDRINO refere um episódio ocorrido no ópido de Talábriga. Julgaram bons autores, e entre eles, F. ALVES PEREIRA, que se tratava da Talábriga do Vouga. Pareceu-nos, porém, que esse episódio devia deslocar-se para um ópido de igual nome nas margens de Lima, onde aliás apareceu uma ara romana ofertada por uma «talabrigense» (Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. IV, pág. 117-120). Concordaram com este parecer os srs. Drs. ARlSTlDES DE AMORIM GIRÃO E ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL.

Quanto a Lancóbriga, escreveu o Dr. AGUIAR CARDOSO, que seria «de fundação céltica, engrandecida pelos romanos... / 62 / e depois arrasada pelos bárbaros do norte», e que lhe teria sucedido a «Civítas Sanctae Mariae de fundação gótica, depois assolada pelos mouros, e mais tarde reconstituída pelos neo-godos; por fim Vila da Feira» (Terra de Santa Maria − Civitas Sanctae Mariae, pág. 22, Coimbra, 1929).

Nada disto pertence ao domínio da história, porque não pode provar-se documentalmente. De positivo, sabe-se apenas o nome da estação, registado no Itinerário e na chamada Tabula Peutingeriana, agora reproduzida na Historia de España dirigida por R. MENENDEZ PIDAL (tomo lI, Madrid 1935).

Se nos apraz fantasiar um pouco, mais vale reconstituir os sucessos que se terão desenrolado por essa estrada desde que ela veio substituir um antigo caminho ibérico ladeado de santuários pagãos; imaginar como ela serviu para a difusão do Evangelho, para a conquista dos Suevos, para as incursões muçulmanas, para o avanço da Reconquista, para as peregrinações a Santiago, para as invasões francesas...

Sem a estrada romana, seria decerto muito diferente o curso da história nesta faixa ocidental da Península em que se talhou o território de Portugal.

*

Depois de escrito este trabalho, vemos nos jornais o sumário de uma comunicação apresentada pelo Sr. Tenente-Coronel COSTA VEIGA, na Associação dos Arqueólogos Portugueses, «sobre o problema da localização de Langóbriga e Talábriga, estações da via romana de Emínio (Coimbra) a Cale ou Cálem (Porto ou Gaia)». Importa arquivar aqui as conclusões a que chegou esse ilustre investigador, justamente considerado um dos nossos mais eruditos medievalistas. E apraz-nos verificar que não se afastam muito do que expusemos.

«Começando por manifestar discordância com o método seguido em 1907 pelo falecido Dr. ALVES PEREIRA, aliás distintíssimo arqueólogo, na determinação geográfica das referidas estações, salientou depois os seguintes pontos:

1.º − Que a extensão da citada via romana nunca pode ter sido a de 71 milhas ou sejam 105 km., indicada no ltinerarium de Antonino, e isso pela simples razão de que a própria distância em linha recta, e no plano horizontal, entre os observatórios de Coimbra e da Serra do Pilar, atinge 104,5 km.

2.º − Que sendo, por outro lado, de 115 km. a distância do Porto a Coimbra pela estrada 'nacional n.º 10, o percurso pela via romana regularia, provavelmente, por 110 km., isto é, mais 3 milhas que as referidas no Itinerarium. / 63 /

3.º − Que o erro, por defeito, de 8 milhas, que o ltinerarium certamente tem, se deve imputar a um lapso de cópia − XIII milhas por XVI milhas − no troço de Cálem a Langóbriga, lapso esse vulgar em apógrafos medievais, pela facilidade da troca de II por V.

4.º − Que, correndo com o curvímetro pelo traçado provável da via romana − Coimbra, Fornos, Sargento-Mor, Mealhada, Aguim, Mogofores, Avelãs do Caminho, Aguada de Baixo, Sardão, Águeda, Vouga, Albergaria a Velha, Albergaria a Nova, Pinheiro, UI, Oliveira de Azeméis, Arrifana, Souto Redondo, Vendas de Grijó, Richosa, Serpente e Gaia − se vê que as estações de Talábriga (40 milhas ou 59 km. de Coimbra) e Langóbriga (18 milhas ou 27 km. de Talábriga) se devem ter localizado, respectivamente, no sopé do Monte da Senhora do Socorro, sobranceiro ao Calma, e 1 a 2 km. a S. de Souto Redondo. Quanto à estação de Cale ou Cálem, a 16 milhas ou 24 km. de Langóbriga, parece impossível defini-la precisamente no Porto ou em Gaia; todavia, certa referência de EDRICI à alcaria nova de Gaia reforça a hipótese do sr. Professor MENDES CORREIA, de que a mesma estação se localizaria na margem direita do Douro».


TERRA DE SANTA MARIA

Grande parte da região que nós agora percorremos, foi chamada desde antigos tempos Terra de Santa Maria. Ainda constitui problema histórico o saber-se de onde lhe veio esta designação. «Seria da invocação de um templo? Seria da devoção de um conquistador? Seria da doação de terras a algum instituto dedicado à Virgem? Estaria esse nome ligado especialmente a algum povoado ?» (Cf. Arquivo do Distrito de Aveiro, VII, 66-68).

Como lhe veio provavelmente pela velha estrada, justifica-se talvez este excurso. Demais, o problema não é tão insignificante como parece. Quem sabe se não procedeu daqui, por devota ampliação, a ideia de chamar a Portugal inteiro «Terra de Santa Maria»? E também não é tão fácil como pode afigurar-se a quem aceite sem reserva o que escreveram antigos cronistas, ou tome por aquisição definitiva qualquer devaneio de fantasia.

Conhecendo regularmente a documentação medieval publicada, e boa parte da inédita, sobre a Terra de Santa Maria, nela temos procurado, sempre em vão, a solução desse problema. Não é com a pretensão de a ter encontrado agora, mas só com o intuito de atalhar alguma apressada conclusão, que vamos sugerir nova hipótese, baseada na aproximação de factos, datas e nomes. / 64 /

Segundo as Crónicas da Reconquista, os cristãos das Astúrias reconheceram-se especialmente protegidos pela Virgem Maria, logo desde Covadonga, Pelágio ter-se-ia refugiado na Cova de Santa Maria, no monte Auseva, é o lugar da primeira batalha ficaria assinalado com um santuário em honra da Mãe de Deus. Essa devoção desenvolveu-se pelo decurso do tempo, com a atribuição de novas vitórias ao favor da Virgem.

Firmada a posse das Astúrias, pensaram os monarcas em libertar de sarracenos a Galiza. No ano de 753, Afonso I, ajudado por seu irmão Fruela, percorreu em sentido inverso o itinerário seguido por Abdelaziz em 716 e desceu até Viseu e Águeda (Chronicon Sebastiani, n.º 13). Não pôde, todavia, consolidar a posse de tão largo território; a linha fronteiriça ficou pelo rio Minho. Só no reinado de Afonso III, pelo ano de 876, o domínio dos cristãos se estendeu para sul do Douro, sendo por eles repovoadas as cidades de Braga, Porto, Coimbra, Viseu e Lamego (Chronicon Albeldense, n.º 62). É depois dessa data que aparecem documentos da nossa região, com referências a mosteiros e igrejas.

Uma das principais empresas de Afonso I foi a tomada e repovoamento da cidade de Lugo, pelo ano de 745. Nela colaborou activamente o bispo Odoário, que tomou a seu cargo a organização da vida civil e religiosa do território libertado. O primeiro cuidado deste bispo foi restaurar a catedral, sob a invocação de Santa Maria, mas logo providenciou ao estabelecimento de núcleos cristãos em redor da cidade, distribuindo terras pelos seus familiares.

Os testamentos de Odoário fazem-nos assistir ao nascimento de vários povoados. A um sobrinho chamado Marcos doou ele uma vila que ficou com o nome de VilIamarci; Avezano deu nome à vilIa Avezani, Guntino à vilIa Guntini, Provecendo à vilIa Provecendi, Sendo à villa Sendoni, etc. O povoamento foi-se alargando, e em breve estavam estabelecidas vilas com suas igrejas por um grande território em que se incluíam, com nomes de particular interesse para nós, Riva Uliae e ValIe Uriae.

Nas doações de terras e na fundação de igrejas, costumava o bispo reservar para a Catedral e para Santa Maria os direitos que lhe pertencessem e, num dos documentos, fazia esta consagração de pessoa e bens à Virgem Santíssima: «O Gloriosa Virgo Dei Maria, in cujus [honore?] Sancta nitet Ecclesia, intercede pro me ad Dominum Deum tuum... et hec munera jubeas tibi acceptari digne, una cum quantum tentaverit ganare, et aplicare de undique partibus in omni vitae meae» (España Sagrada, XL, págs. 364-367).

Atribui-se ao mesmo bispo Octoário uma tentativa semelhante de restauração em Braga, mas os documentos são / 65 / [Vol. IX - n.º 33 - 1943] pouco seguros(11). O certo é que, em 27 de Março de 832, Afonso II veio a anexar à diocese de Lugo as cidades de Braga e Orense, que estavam destruídas, e as províncias delas dependentes, impondo-lhes um censo para a igreja de Santa Maria de Lugo: «Has itaque Urbes seu sibi subditas Provincias... concedo Virginis Mariae Lucense Sedis, ut Pontificalem ab ipsa accipiant ordinem... et reddant debitum censum secundum Decreta Canonum eidem Ecclesiae, id est, tertiam partem» (E. S., ibid., págs. 369-373).

O pagamento do censo supõe, evidentemente, a existência de cristãos no território das antigas dioceses, embora as cidades continuassem destruídas. Quanto ao caso particular de Braga, sabemos que foi administrada pelos bispos de Lugo, mesmo depois da reconquista definitiva, até que se restaurou a sua catedral em 1070.

A nossa região, depois da reconquista de Afonso III, ficou com certeza na dependência de Coimbra cuja sé, dedicada também a Santa Maria (Dipl., n.º 4), se manteve até à invasão de Almançor. Só depois deste período (876-997) até à datada restauração da catedral de Coimbra (1080) é que poderia ter estado sujeita ao bispo lucense.

Os historiadores modernos põem em dúvida a autenticidade de muitos dos privilégios concedidos à sé de Lugo. No entanto, o facto que principalmente nos interessa, parece bem assente: catedral dedicada a Santa Maria, terras colocadas sob o patrocínio de Santa Maria, pagamento de censo a Santa Maria.

No documento acima referido, Afonso II não tem mais que exaltar do que a basílica de Santa Maria, construída «miro opere» na cidade de Lugo, e diz que ia lá com o exército invocar a protecção da Mãe de Deus contra os seus inimigos. Em 867, Sabarico, bispo de Dume, refugiado na Galiza, promete visitar todos os anos a catedral de Lugo, no dia da festa da Assunção de Maria, e levar-lhe com o seu clero e fiéis o tributo de cem congros (E. S., XL, 121-122). Em 988, Bermudo II oferece a Santa Maria, titular da igreja de Lugo, um castelo que reconstruíra; em 991, doa-lhe três quartas partes do território de Mera e faz uma devota oração à Virgem Santíssima, implorando o seu auxílio na vida e na morte (E. S., ibid., 149-150).

Enfim, reis, bispos, e fiéis competem na devoção à Virgem Santa Maria «in cujus honore sancta nitet Ecclesia in Civitate Lucensi territorio Galleciae», como reza uma escritura de 1089 (E. S., ibid., 185-186). Ainda em 1130 o conde / 66 / Guterre fazia uma doação à catedral de Lugo e prestava, com sua mulher, reconhecida homenagem «omnipotenti Deo, ejusque gloriosae Almae Virgini Mariae, cujus Sacras Reliquias manifestum est proculdubio in Lucensi Ecclesia a compluribus venerari, adorari et coli» (E. S., XLI, 304).

Entre os muitos santuários consagrados à Mãe de Deus no território libertado, nenhum há mais célebre, desde o século VIII, do que a igreja catedral de Lugo. A sua fama não chegou a ser inteiramente eclipsada nem pelo esplendor de Santiago de Compostela.

Ora, cremos que foram homens da Galiza, assim devotos de Santa Maria, quem veio repovoar o território que, entre nós, de Santa Maria tomou o nome(12). E, pelo tempo em que começa a aparecer esta designação, não consta da existência de nenhum templo dedicado a Nossa Senhora entre Douro e Vouga, que localmente pudesse exercer especial influência.

A história do repovoamento demanda, por si só, não pequeno esforço. Será preciso estudar bem todos os nomes pessoais que aparecem nos nossos documentos chamados neo-góticos e confrontá-los com os da Galiza. Talvez se possam seguir os passos de muitas famílias na sua migração para o sul e talvez se conclua que algumas deram à terra em que se fixaram o nome daquela de onde vinham. É isto simples sugestão para um trabalho que levará alguns anos a fazer, mas que parece basilar até para o estudo da toponímia, não vá acontecer procurarem-se explicações locais para nomes que nos vieram de muito longe.

Há, pelo menos, curiosas coincidências. Assinalámos acima Riva Ulliae e Valle Uriae. Já em alguns exemplares das supostas actas do concílio de Lugo (569) aparece um condado chamado de Ulia, que começava no monte de Spino e ia até Paramio (E. S., XL, 344 e 348). Na doação feita por Afonso III a Santiago de Compostela em 899, é citada entre várias vilas uma que se situa in ripa Ulliae (E. S., XIX, 340). Outros documentos mencionam vilas in ripa Umiae (E. S., XX, 188). Temos, pois, na Galiza os rios Ulia, Uria e Umia, e na Terra de Santa Maria os rios Ul ou Ur e Uíma, dando-se para mais a coincidência do locativo Riba Ul.
Naquela doação de Afonso III a Santiago, feita no dia da sagração da igreja (6 Maio 899), vem também incluída «uillam Valliga, que est iuxta sedem hiriensem cum terminis et adiacentiis suis (López Ferreiro, Historia... de Santiago
/ 67 / de Compostella, lI, pág. 47 dos Apêndices) ou, segundo a transcrição da E. S., «Villam Vallaga». Existe ainda na Galiza, na margem esquerda do rio Ulla, o município de Valga, que tem por cabeça Puente Valga, na paróquia de S. Miguel de Valga. E temos nós, no concelho de Ovar, a freguesia de Santa Maria de Válega. Outra simples coincidência.

Mais. Entre as doações feitas a Santiago e referidas na Historia Compostellana, aparece em ano impreciso a seguinte verba: «ln Salinensi vero confinio Oduarius Didacides(13) Villam Ovar (E. S., XX, 71). Este território, dito Salinense na Idade Média, era o vale que actualmente se chama de Salnés, formado pelo rio Umia na província de Pontevedra. Nas tais actas do concílio de Lugo de 569, já se atribuem à sé de Iria as terras Salinense e de Pestomarcos. Em 886, o rei Afonso III deu a Santiago «Salinas in Cõmisso qui dicitur Saliniense», que tinham pertencido a Ermegildo e a sua mulher Hiberia e das quais os privou por crime de rebelião (E. S., XIX, 340). Pois, muito bem. No ano de 922, o rei Ordonho II veio ao mosteiro de Crestuma (Castrumia) visitar o bispo Gomado, resignatário de Coimbra, com os condes Lucídio Guimarães e Rodrigo Luci, e o primeiro destes fez ao bispo larga doação em que se incluíam muitas propriedades na Terra de Santa Maria, entre elas algumas igrejas situadas in ripa de ul e uma in porto de Obal − Ovar (Dipl., n.º 25). E quem era este conde Lucídio Guimarães, mencionado aliás em outros documentos nossos e tão rico em bens nesta região? Nada menos que o senhor da Comenda ou Condado de Pistomarcos, na Galiza, pois no ano de 934 Ramiro lI doou a Santiago de Compostela «Commissum Pistomarcos ab integro secundum illud obtinuit Lucidus Vimarani, de Ulia in Tamare, entre os rios Ulla e Tambre (E. S., XIX, 364). Temos, pois, Ovar na Galiza e Ovar na Terra de Santa Maria, e em ambas as regiões bens pertencentes ao mesmo proprietário.

Percorrendo os preciosos volumes da España Sagrada e outras colecções documentais, podem colher-se muitos outros elementos para elucidação do tema que me limito a indicar. Apontaremos apenas mais uma curiosidade.

Na referida doação do conde Lucídio Guimarães ao mosteiro de Crestuma, fala-se na «uilla mahamudi», a conhecida Mafamude junto de Gaia. O topónimo é claramente árabe, o que é raro nesta região, e derivado de nome pessoal. Mas quem seria o sujeito? Será difícil identificá-lo. Todavia, / 68 / Afonso lI, no já citado documento de 27 de Março de 832, conta um episódio algo interessante. Apareceu-lhe um árabe chamado Mahamud, que se dizia fugido de Mérida ao rei Abderramen e vinha pedir acolhimento na Galiza. D. Afonso recebeu-o muito bem, mas em breve o muçulmano o atraiçoava, reunindo gente da sua seita para usurpar a Galiza ao rei cristão. Foi este à catedral de Lugo implorar para as suas armas o patrocínio da Virgem Maria e, no dia seguinte, atacou Mahamud, venceu-o e matou-o. Grato à protecção da Virgem, fez-lhe generosa doação de bens naquele documento em que lhe exalta a glória (E. S., XL, III e 369; Cf. Chronicon Albeldense, n.º 58, Chron. Sebastiani, n.º 22. Silense, n.º 30). Não sobreviverá em Mafamude o Mahamud?

Para uma conclusão segura sobre as origens da designação de Santa Maria, requere-se evidentemente maior soma de elementos. Mas destas aproximações e coincidências resultará ao menos uma hipótese. A origem dos nomes Cesar e Ovar, que alguém relacionou etimologicamente com o rio Ul, terá antes de buscar-se nos genitivos Cesarii e Odvarii, lembrados por J. LEITE DE VASCONCELOS (Opúsculos, III, 319-320). A identificação topográfica e a sucessão histórica de Lancobriga, Civitas Sanctae Mariae e Vila da Feira, longe de se abonarem, são contraditadas pelos documentos, como notámos num estudo sobre a vila de Ovar (Arquivo do Distrito de Aveiro, VIII, 66-68).

P.e MIGUEL DE OLIVEIRA

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(1) Segundo o sr. Tenente-Coronel Costa Veiga, Scálabis seria em Alcanhões ou Vale-de-Figueira.

(2) P. RIBEIRO, Diss. Cron., tomo I, doc. n.º 36 do Apêndice. 

(3) − Ver para tal fim os artigos publicados por PATRÍCIO T. ÁLVARES FERREIRA, na Gazeta de Albergaria, em 1927 e 1928; aproveitamos deles algumas informações.

(4) Archeologo Portugues, voL XVII, pág. 771.

(5) Além dos acima citados, ver Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. II., págs. 26 e 27.  

(6) Torre do Tombo − Sala B, estante 49, n.ºs 1, 2 e 3.

(7) Guias-Dicionários Regionais, vol. I (Espinho, 1933), pág. 22.

(8) Torre do Tombo − Memórias Paroquiais, tomo VII, pág. 1187-1193. 

(9) O Districto de Aveiro (Coimbra, 1877), pág. 69.  

(10)Anais do Município de Oliveira de Azeméis, pág. 384.

(11) Veja-se, no entanto, o documento publicado pelo Prof. TORQUATO DE SOUSA SOARES, em Revista Portuguesa de História, 1, 151 e seg.

(12)A Crónica Albeldense diz que D. Afonso III «Conimbriam ab inimicis possessam eremavit, et Gallaecis postea populavit» (E. S., XIII, 454, n.º 61).

(13)Houve um Odoario Didaci, sobrinho do rei Ramiro II, que morreu assassinado (Doc. de 937, em E. S., XXXIV, 248).

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