Os cronistas
monásticos
opulentaram os seus livros com
tanta fantasia, que podem induzir em erro até os mais prevenidos. Para
justificarem precedências e privilégios dos respectivos institutos, inventavam ou falsificavam documentos
com a maior sem-cerimónia. Todos sabemos isto, mas nem sempre nos
lembramos de duvidar do seu testemunho no momento próprio.
A propósito de outro estudo, ocorreu-me verificar os títulos com que se
apresentam diversos personagens como fundadores ou reedificadores do
mosteiro de Cucujães. Talvez sejam de alguma utilidade as conclusões
dessa breve digressão histórica. Aqui as exponho, sem esquecer os
estudos do rev. P.e JOÃO DOMINGUES AREDE, que consagrou a Cucujães e ao
mosteiro trabalhos de paciência beneditina, mas apenas por devoção à
história local em que este meu distinto amigo já era mestre, quando eu
ensaiava os primeiros passos.
Passemos em sumária revista as várias hipóteses.
D. EGAS MONIZ, O GASCO. − Tudo quanto se escreveu
sobre os Gascos se baseia no seguinte passo do Livro de Linhagens do
conde D. PEDRO (tit. 36):
«Este dom Moninho Veegas o Gasto primeiro veo a Portugall em tempo
delrrey dom Ramiro de Leom, e veo de Gasconha e outro seu irmãao com el
que foy bispo do
Porto e avia nome dom Sesnamdo, este morreo e jaz em Villa-Boa do Bispo.
E veo com elle o bispo dom Nonego
que jaz no moesteiro de Coyaos e veerom com elle dous seus filhos, huum
ouue nome dom Egas Moniz o Gasto e ho outro ouue nome dom Garçia Moniz o
Gasto» (P. M. H., Scriptores, pág. 316).
Com tão magras informações, aventou-se a hipótese de que
D. Egas Moniz seria sobrinho de D. Nonego e construiria o
/
13 /
mosteiro em que foi sepultado o tio. Houve cronista que mudou a hipótese
em certeza, e logo outros se entretiveram a desenvolvê-la. Assim se
formou uma cadeia de autoridades, todas excelentes, mas que se
dispensaram de aduzir uma só prova documental. Quem discordar,
arrisca-se a ficar na situação do soldado da anedota. «−Como se chama? pergunta o cabo.
− José Fernandes. − Não pode ser, porque o nosso
sargento diz que morreu o soldado desse nome. − Mas eu estou vivo. − Ora
essa! então você quer saber mais do que o nosso sargento?»
D. NONEGO. − Fizeram dele tudo, desde bispo de Vandoma a bispo do Porto.
Como o Nobiliário lhe chama bispo, os historiadores mais sérios
identificam-no com um Eunegus Portucalense Sedis Episcopus que confirma
um documento do ano de 1025; mas será absolutamente segura esta
identificação?
Diz o Nobiliário que ele «jaz no moesteiro de Coyaos». Daqui
concluíram alguns que ele foi o fundador do mosteiro; outros
contentam-se com dizer que lá faleceu e foi sepultado.
Por que artes mágicas se passou de Coyaos para Cucujães −
explique-o quem souber. Coyaos é, sem dúvida, palavra deturpada pelos
copistas, que só pode entender-se cotejando este
passo com o de outros nobiliários. E lá está, no mesmo volume
dos Scriptores, o Livro Velho II, em que se lê: « e veyo com elle (Monio
Gasco) seu irmão o bispo D. Sesnando que jaz em Villaboa do Bispo, e o
bispo D. Enego seu irmão, que jaz em Tuyas». Mais um que fica eliminado
da história de Cucujães.
D. EGAS MONIZ, O AIO. − Teve também os seus defensores, só por
identidade de nome com o Gasco. Os argumentos são de igual quilate, isto
é, de nulidade absoluta.
D. PAIO GUTERRES DA SILVA. − É o favorito de D. RODRIGO DA CUNHA, no
Catálogo dos Bispos do Porto. Vá lá
que tem um texto em sua defesa. Lê-se no tít. 58 do Nobiliário
de D. Pedro: «dom Paay Goterrez da Sillua, o que fundou o moesteiro de
Cujaaes». Porém, no tít. 36 ficou dito: «dom
Paay Goterrez da Silua, o que emcontou o moesteiro de
Tiuãaes». Dois mosteiros à conta de D. Paio?
Vejamos outro Nobiliário. O
Livro Velho I chama-lhe num passo «D. Pay
Guterres de Cunhaens» ou, segundo a variante,
«de Truuhaens»; adiante, «D. Payo Guterres que fez Cucuaies»
ou, pela variante, «Tivaes»; mais adiante, «D. Pay Guterres
que fez Tibaens».
Quem tiver umas luzes de paleografia, descobrirá sem custo o motivo da
confusão: Tiuães assemelhava-se na escrita a Cuiães, como
Treixemil a
Creixomil, etc. Para admitir o D. Egas Moniz
/
14 /
e não rejeitar D. Paio Guterres, alguns fizeram deste o reedificador de Cucujães. Creio que nem isso foi, porque ainda não
existia o mosteiro.
D. URRACA VIEGAS. − Teve esta dama o voto de Fr. GREGÓRIO DE ARGAIZ,
como informa o seu confrade beneditino
MANUEL PEREIRA DE NOVAIS. Base? Sempre a mesma: errada interpretação de uma palavra do
Nobiliário de D. PEDRO. Diz este no tít. 37: «dona Orraca Ueegas que fundou o moesteiro de Tuyas filha de dom Egas
Moniz de riba de Douro e da minhana
dona Tareyia Affonso que fundou o moesteyro de Salzeda».
Onde se lê Tuyas, Fr. GREGÓRIO viu Tugaens; daí a Cujaens e
Cucujães era um passo, ainda mais fácil que o de Coyaos.
D. GODINHA PAIS. − Inclina-se para esta senhora o cronista beneditino Fr. LEÃO DE S. TOMÁS. E alega um documento que diz
existir no cartório de Arouca, datado de 13 das calendas
de Junho de 1129 (ano de 1091). D. Godinha faz uma composição com os monges de Arouca «Ordinis Sanctissimi Patris
nostri Benedicti», dando-lhes o mosteiro de Cucujães de que é padroeira
e recebendo o deles em troca, para lá meter as filhas,
parentes e outras virgens, «ut ibi monialem vitam gerentes, deinceps Deo
et Beatissimo Patri nostro Benedicto inseruiant».
Confiados em Fr. LEÃO, muitos autores citam ou reproduzem o documento. Trata-se, porém, de autêntica invenção do
insigne padre-mestre, em abono da antiguidade da sua Ordem.
Ninguém mais viu o original. Ele não figura na colecção
Diplomata et Chartae. São insólitas nos documentos da época as
insistentes referências à Ordem do nosso Santíssimo Pai Bento.
Nem vale a pena discutir outros pormenores.
D. EGAS ODORIZ. − Eis-nos, por fim, em terreno mais
firme. Sabemos que este cavalheiro existiu, teve propriedades
nesta região, esteve ligado ao mosteiro e foi reconhecido, já em
meados do século XIV, como seu fundador.
Os Monizes e os Gascos aparecem-nos sempre para os
lados de Riba-Douro. A família Odoriz, à roda de Cucujães.
Em 1131, Odório Alvares vendeu a Soeiro Odoriz uma herdade
na Agoncida (Baio Ferrado, fl. 105). Em 1146, fala-se no próprio Egas Odorici, numa carta de venda de herdades em
S. Vicente de Pereira aos Templários (Bib. Nac. de Lisboa,
ms. 736, fl. 325 v.).
Acima de tudo, porém, está o próprio texto da carta de
couto, dada ao mosteiro de Cucujães por D. Afonso Henriques,
a 7 de Julho de 1139. Nela se lê:
«Ego egregius infans anfonsus... uobis dominus martini necnon et
dominus egas odoriz facio cautum ad illud
/
15 /
monasterium sancti martini de cucugianes pro remedio anime mee et pro
seruitio quod mihi fecistis et facturi estis et etiam propter quod
predictus egas odoriz dedit mihi mille solidos et duos cabanos et habet
iacentiam predictum monasterium in loco qui uocatur cucugianes sub monte
castro recharei discurrente riunlo ur portugalensi territorio» (ABIAH E.
REUTER, Chancelarias Medievais Portuguesas, voI. I, pág. 125).
Para não faltar menção de Nobiliário, temos no Livro
Velho I «Egas Soares Uzurei de Cucuiaens».
É verdade que os textos não declaram quando e por quem foi fundado o
mosteiro, mas também se não encontrou até hoje nenhum documento
autêntico da sua existência, anterior a 1139.
Fundado pelo ano mil, pode lá admitir-se que o mosteiro fosse ignorado
ou ficasse em silêncio durante mais de um século?
Até prova em contrário, Egas Odoriz deve ter-se como fundador do
mosteiro, em data próxima à da carta do couto. E isto, afinal, não
constitui grande novidade. Já em 1358, como informa VITERBO, se decidiu
por sentença que «Egas Orez fora o Fundador do Mosteiro de Cucujaens».
Não estranharei, todavia, as opiniões discordantes, porque consta da
mesma sentença que «Bartholomeu Pires, Companhom de um dos Sobre juizes», não acordara nisto (Doc. das Bentas do Porto, cit. por VITERBO,
Elucidário, v. «Companhom»).
P.e MIGUEL DE OLIVEIRA |