No primeiro volume deste
Arquivo, na página 135, foi
relatado um pleito do tempo d'eI rei D. Afonso V entre
João de Albuquerque e Fernão Pereira, sobre a posse
dos termos de Cabanões e de Ovar; porque − alegava
aquele − as primitivas doações mencionavam só as terras e
fôra esta palavra falsificada para termos na carta de doação
de 1420 (1382). A tal propósito foi transcrita por extenso a
carta de D. Afonso V, de 23 de Junho de 1453, contendo a decisão final
do pleito contra o Albuquerque e reconhecendo
a posse dos termos aos Pereiras. Foi igualmente publicada a
carta de D. Fernando, de 27 de Janeiro, da era de 1420
(ano de 1382), doando a D. João Afonso, conde de Barcelos e aos
seus descendentes as Terras de Santa Maria com os seus julgados e termos ou terras de Cabanões de Ovar, na qual se fizera
a pretendida falsificação.
Por erro tipográfico faltou na data deste último diploma
um i, devendo ler-se, conforme foi verificado no livro terceiro
da chancelaria de D. Fernando, fl. 39 verso: «Era de mil iiijc
e XX Annos». Nem podia acreditar-se que fosse da era de 1320,
correspondente ao ano de 1282, quando ainda reinava D. Dinis
e não era nascido sequer o avô de D. Fernando.
Nesse artigo do Arquivo encontrei
a citação precisa da
carta doando as Terras de Santa Maria a Álvaro Pereira, em 8
de Abril de 1385.
Conhecia eu a carta de confirmação à condessa D. Joana,
passada em Lisboa a 15 de Junho de 1630 e registada a fl. 234
da chancelaria de D. Filipe III, que contém a transcrição de
todas as doações dessas terras que sucessivamente se vinham
confirmando umas às outras, excluindo porém a primitiva carta
a favor do marechal Álvaro Pereira. Assim, esse diploma
de 1630 copia os seguintes documentos:
1 − carta de D. Fernando dada em Rio Maior
aos 27 de Janeiro de 1421 (1383), a D. João Afonso, conde
/
77 /
de Barcelos, mandada incluir na carta adiante indicada sob o n.º 7, a pedido de D. Manuel (3.º conde da Feira);
2 − carta de D. João I dada no
Porto aos 19 de Agosto de 1424 (1386),
a João Alvares, filho de Álvaro Pereira;
3 − carta de D. Afonso dada em
Évora aos 6 de Abril de 1453, a Fernão
Pereira, filho de João Álvares Pereira;
4 − carta de D. Afonso V dada em Santarém aos 21
de Dezembro de 1467, a Rui Pereira;
5 − carta de D. João II dada em Lisboa aos 7 de
Dezembro de 1486, a D. Diogo Pereira (2.º conde da Feira);
6 − carta de D. Manuel I dada em Montemor-o-Novo
aos 10 de Março de 1496, ao mesmo D. Diogo Pereira;
7 − carta de D. Manuel I dada em Lisboa aos 16 de Abril de 1511, a D.
Manuel Pereira (3.º conde da Feira), transcrevendo a carta indicada com
o n. º 1;
8 − carta de D. João III dada em Lisboa aos
11
de Fevereiro de 1522, declarando o modo como o conde D. Manuel havia de
usar a jurisdição nas suas terras;
9 − carta de D. João III dada em
Évora aos 10 de
Maio de 1535, ao mesmo D. Manuel Pereira, conde da Feira;
10 − nota da venda da terra de Refoios a Manuel Cirne feita pelo (4.º)
conde D. Diogo Pereira e pela condessa D. Francisca Henriques, com
consentimento do primogénito D. Diogo, aos 2 de Janeiro de 1540, pelo
que, quanto a esta terra, não terão as doações daí em diante vigor
algum;
11 − alvará de 22 de Julho de 1595, fazendo mercê a D. João Forjaz
Pereira, «capitão mor da armada que, Este ano presente, vai às Ilhas»
(5.º conde da Feira ), dos bens da coroa que havia seu irmão D. Diogo Forjaz Pereira;
12 − carta de D. Felipe I dada em Lisboa aos 16 de
Fevereiro de 1596, a D. João Pereira (5.º conde da Feira), filho de D.
Manuel Pereira que foi o filho mais velho do conde da Feira D. Diogo
Pereira;
13 − alvará de D. Felipe II passado em Lisboa aos 26 de Janeiro de 1605,
ao mesmo D. João Pereira, conde da Feira, dispensando a lei mental uma
vez para na casa da Feira poder suceder filha ou irmão, do último
possuidor; e
14 − carta de D. Felipe II dada em Lisboa aos 12 de Outubro de 1620, a
D. Joana Forjaz Pereira (6.ª condessa da Feira), filha única do conde da
Feira D. João Forjaz Pereira.
Além da carta da primeira doação aos Pereiras, que o Arquivo me ensinou existir na chancelaria de D. João I, vi que
me faltava outra, na monumental obra de BRAAMCAMP FREIRE,
/
78 / Brasões da Sala de Sintra. Cita a «carta de 27 de Janeiro
de 1382, de doação da terra da Feira e outras»; mas, em
nota (5) a página 109, do livro 1.º, refere-se à «doação das
Terras de Santa Maria em a terra da Feira de 10 de Fevereiro
de 1410 (1372)» e indica que o documento se vê na chancelaria de D. Fernando, livro 1.º,
fl. 94 verso.
Despertou-me a curiosidade a existência dos dois diplomas da mesma
doação, à mesma pessoa, com dez anos de intervalo.
A amabilidade do sr. dr. Jorge Pires de Lima, terceiro conservador da Torre do Tombo, devo as cópias da primitiva
doação da era de 1410 e da de 1423 que, ambas, julgo útil
arquivar nestas páginas, não só para poderem confrontar-se as
de D. Fernando e deduzir o motivo da duplicação, como para
esclarecer a dúvida relativa aos termos de Cabanões de Ovar.
Vejamos o texto do privilégio primitivo de 1410:
Doaçam da Terra de Santa Maria julgado da Feira a Ioham Afomso Tello
Dom Fernando pella graça de Deus Rey de Portugal e do Algarue
A quantos esta carta virem fazemos saber que nos querendo fazer graça e
mercee a Ioham Afomso Telo nosso vassallo por muitos seruiços que deI
ata aqui sempre recebemos assy em guerras grandes que ouuemos como em
grandes agradamentos e outros muitos e mui boos seruiços que sempre
delle recebemos da nossa liure e pura vontade e da nossa certa scientia
damos e doamos e outorgamos e fazemos liure e pura doaçam antre os viuos
pera sempre valledoyra ao dicto Ioham Afomso as nossas terras de Sancta
Maria e a terra da Feira com seu iulgado e ho iulgado de Cabanõos de
Ouar e a terra de Caambra com seu iulgado e com seus termos e direitos e
perteensas dos dictos iulgados e lugares e terras e com o padroado das
igreias e com todas suas entradas e saidas e resios e montes e fontes e
rios e ribeiros e pescarias e com todas suas iurdiçoës crime e ciuel e
mero e misto imperio e sugeiçam assy nas pesoas como nos beës e com
todas rendas e trabutos e com todos seus foraës e posisoës e com
todollos outros direitos reaães e corporaaës e temporaaës sagraës
spirituaaës assy e tam compridamente como os nos auemos e de direito os
deuemos dauer e como os el milhor e mais compridamente pode auer que os
aia daqui en diante liuremente assi na propriedade como na posse como
sua propria herdade e posisam por iur de herdade e liures e issentos de
todo senhorio e iurdiçam e sugeiçam nossa e de qualquer outra pesoa ou
pesoas concelho ou concelhos e pera fazer nos dictos lugares e em elles
o que lhes aprouguer e por bem teuer como de sua herdade e de seu
proprio direito. E de nosso poder absoluto e da nossa certa scientia
quitamos e liuramos e tiramos os dictos lugares tam bem em nas
cousas do padroado e iurdiçam e sugeiçam nossa e de qualquer iulgado e
concelhos ou pesoas a que ata aqui forom ou eram sugeitas. E damol los e
outorgamol los por sugeitos ao dicto Ioham Afomso em todo e per todo.
Outrossy queremos e outorgamos e mandamos que a el respondam e acudam e
seiam obrigados em todo e per todo como a seu senhor resaluando pera
nosas
appellaçoês do crime. E queremos e outorgamos e mandamos que daqui en
diante sem nossa outra auctoridade mais que elle per ssi ou per outrem
possa filhar a posse real e corporal dos dictos lugares e husar delles e
dos direitos e propriedade e iurdiçoes delles sem nenhum embargo
Mandamos aos nossos almoxarifes e officiaaës que ata aqui por nos
colheram os direitos e rendas e foros dos dictos lugares que os leixem
daqui en diante colher e auer ao dicto Ioham Afomso e nom lhe ponham
sobre elles embargo nehuum. E outrossy
queremos e outorgamos que esta doaçam seia firme e stauel e
valledeira pera todo sempre e prometemos de a guardar e non reuogalla nem
hir contra ella per nos nem per outrem em nehuma maneyra e se algumas pesoas
/
79 /
quiserem hir contra esta doaçam mandamos que lhe nom possam empecer ca
nos queremos e outorgamos que esta doaçam que assy fazemos ao dicto
Ioham Afomso dos dictos lugares seja valiosa pera sempre nom embargando
quaeesquer direitos e custumes openioës façanhas e outras quaeesquer
cousas que sejam perque se esta doaçam possa ou puder embargar ou
contradizer as quaaees nos aqui afiemos per expresas e repetidas as
quaees nos aqui relinquimos e mandamos que nom ajam logo em esta doaçam
nem lhe possam empecer ca nos de nossa certa scientia e poder absoluto
que auemos mandamos que a dicta doaçam seja valliosa sem nehum
fallimento como dicto he e em testimunho desto mandamos dar ao dicto
Ioham Afomso este priuillegio asinado per nossa maão e sellado do nosso
seello de chumbo dante na cidade de Coinbra dez dias de Feuereiro el
rrey o mandou Steue Annes a fez era de mil quatrocentos e dez annos.
T. T. − Chancelaria de D. Fernando, livro. I, fol. 94 v.
[Nota:
Onde no documento se encontra um trema, deverá considerar-se um til]
Da comparação do documento atrás transcrito com o da
página 135 do 1.º volume resulta que o primeiro é só em nome
do rei, a quem, no segundo, se juntam a rainha e até a infanta. No
primeiro há referência às guerras grandes em que João
Afonso servira, omitida no segundo, onde já lhe é dado o título de conde
de Barcelos. No segundo alude-se aos serviços ao diante
esperados do conde e ao galardão que devem os bons reis conceder aos seus vassalos, e surge depois o motivo de se repetir a
doação. É que a de 1420 (1382) é não só feita a João Afonso, conde de
Barcelos, mas também «a todos aquêles que dêle descenderem por linha
directa», o que três vezes se repete
no diploma, mandando reverter à coroa as terras doadas na falta
de descendência. Nem resta dúvida de ser repetida esta doação;
porque a carta de 1420 (1382) claramente diz que o conde há
nas ditas terras os foros, pensões e todos os outros direitos reais;
e ainda porque se omitiu a fórmula de: − os almoxarifes, escrivães ou outros oficiais até aqui por nos terem colhido os direitos,
rendas e foros −, mostrando que já eram recebidos pelo João Afonso desde
a primitiva doação. Deve notar-se que o
privilégio de 1410 falava no padroado das igrejas e mais para
diante incluía de novo a palavra padroado e que a doação
de 1420 omite tal referência. Porquê? Não foi decerto pela
mesma razão que fez aumentar matos nas pertenças dos lugares e terras.
Diverso é também o nome que cada um dos diplomas se atribui no final. O
de 1410 diz-se privilégio e o de 1420 carta. Há ainda uma diferença na
ressalva das apelações que se
repete na carta de 1420, acrescentando-lhe a correição maior e
prolongando-a «para aqueles que de nós descenderem», talvez por também
beneficiar a carta os descendentes do agraciado.
A forma da designação das Terras de Santa Maria no
diploma agora transcrito é notável, parecendo indicar que são
terras de Santa Maria ambas as da Feira e de Cambra e que a
terra da Feira compreende os julgados da Feira e de Cabanões, enquanto
que a terra de Cambra tem só o seu julgado.
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80 /
Vejamos agora como entraram essas Terras na posse dos
Pereiras. Foi D. João I que delas fez mercê ao marechal Álvaro Pereira pelo seguinte diploma:
Doaçam de terra de Sancta Maria e Refoyos e Cambra a Aluaro Pereira
Dom Ioham pella graça de Deus Rey de Portugal e do Algarue a quantos
esta carta virem fazemos saber que nos veendo e consirando o
mujto seruiço que nos e estes regnus recebemos e entendemos de receber
mais ao diante Daluaro Pereira nosso vasallo portador desta carta.
Teemos por bem e damos lhe e doamos lhe e fazemos lhe liure e pura
doaçam antre os uiuos ualledoira pera todo sempre por iur derdade pera
elle e pera todos seus sucesores que despois deI vierem da nossa terra
de Sancta Maria e terra de Cambra e Refoyos todos tres com seus iulgados
e direitos rendas e fructos nouos foros e com todas suas iurdiçoões
crimes e ciuees e senhorio pella guisa e condiçam que as nos auemos e de
direito deuemos dauer e per aquella meesma guisa e condiçam que as Dom
loham Afomso conde que foe de Barcellos irmaão da Rainha tiinha (corrigido
para avia) deI rrey Dom Fernando nosso irmaão a quem Deus perdoe. Porem
mandamos aos iuizes dos dictos lugares (entrelinhado e iulgados) e a
todallas outras nossas iustiças dos dictos regnos a que esta carta for
mostrada que metam o dicto Aluaro Pereira ou seus certos procuradores
em posse dos dictos lugares e lhe façam responder e acudir com os
direitos e foros (corrigido para frutos)
e nouos e rendas dos dictos lugares pella guisa que dicto he e a nos auemos
e de direito deuemos dauer e nom consentam a nenhuum que lhe sobrello
ponha torua nem embargo e mandamos a quaaesquer almoxarifes e scriuaães
da comarca em que os dictos lugares soyam dandar (entrelinhado e nos
diuiamos dauer) que lhas leixem auer pella guisa que dicto he e lhe nom
ponham embargo sobrello nenhuum (corrigido para sobrello embargo
nenhuum) e (entrelinhado lhe) registrem esta carta em seus liuros pera
recadarem (entrelinhado por ela) em contos a qual mandamos que o dicto
Aluaro Pereira tenha por guarda de seu direito E em testimunho desto lhe
mardamos (sic) dar esta nossa carta asignada per nossa maão e sellada
do nosso seello pendente dada na mui nobre cidade de Coimbra VIII dias
dabril el rrey o mandou Gomez Eannes a fez era de mil IIII XXIII anos.
T. T. − Chancelaria de D. João I,
Livro I, fl. 128.
Confirmada esta doação ao
filho do marechal, João Alvares,
e ao neto, Fernão Pereira, pelos documentos 2 e 3, como fica
indicado, possuía-as este «per aquella mesma guisa e condiçam que as Dom
Ioham Afomso tiinha (ou auia)» e portanto incluindo todos os «seus
termos e díreitos e perteenças dos dictos iulgados
e lugares e terras» como extensamente refere o privilégio de 1410
(1372).
Bem resolvida foi a questão dos termos de Cabanões de
Ovar, rebatendo e afastando as pretensões de João de Albuquerque; porquanto
− ainda que na carta de 1420 (1382) não estivesse a
palavra termos, mas sim terras − esta doação abrangia tudo o doado pelo
privilégio de dez anos antes.
E não seria a emenda feita naquela carta tão inocente e bem
intencionada como as que se notam no registo da de 1423: tiinha
para auia, foros para frutos é a transposição de sobrello, que
mais parecem mero rectificar de ligeiros enganos ao transcrever
o diploma?
/
81 /
Resta-me consignar que na cópia da carta de 1630, em meu
poder, transcrevendo a de 1535; se diz:
«Eu Mandei ao dito conde Dom Manoel que offeressesse a dita carta (de
1420) em cumprimento do qual offereceo o treslado della tirado da Torre
do Tombo por dizer que se perdera a própria e se não achara: a qual
carta isso mesmo Mandei que se tresladasse de verbo ad verbum neste
caderno e o treslado della he o seguinte... Nossas terras de Santa Maria
da Feira com seos julgados e termos de Cabanões d'Ovar»...
Pelo visto, em 1535 lia-se oficialmente no livro da chancelaria de D.
Fernando termos e não terras, dando por boa a emenda,
conforme em 1453 fora julgado.
A minha referida cópia está num livro manuscrito encadernado em coiro,
com as armas reais em ambas as pastas, que contém transcrições do foral
manuelino da Feira (publicado a págs. 15 e 167 do volume V deste Arquivo, copiado directamente do
original), das doações referidas nesta nota, de títulos de coutadas, de
autos de posse e de mais documentos relativos a bens, foros e direitos
da Casa do Infantado, sucessora da da Feira. Pela cota de pagamento de
2$380 de selo em 10 de Dezembro
de 1814 e pelos vistos em correição apostos desde 1814, 1815 e
1816 até 1833, creio ter pertencido ao almoxarife na Feira da Casa do
Infantado. Apareceu entre os papeis velhos desprezados pelo alfarrabista
comprador do espólio da livraria do dr. Vitorino Correia de Sá, antigo
administrador deste concelho e presidente do município da Feira.
Extraiu-se talvez esse registo para substituir a parte mais necessária
do Tombo do Condado da Feira. Fôra este levado dos paços construídos
dentro do castelo, por um corregedor encarregado de retirar todo o
arquivo, nas vésperas do incêndio que, na noite de 15 para 16 de
Janeiro de 1722, inutilizou esse palácio, afim (reza a tradição) de não
servir de guarida ao infante D. Francisco, turbulento irmão de D. João
V.
Feira, 18 de Janeiro de
1941.
VAZ FERREIRA |