A
8 de Agosto de 1937, e com a assistência das autoridades superiores do
Distrito, inaugurava, solenemente a sua vida oficial o Museu Municipal
de Ílhavo.
É o mais recente dos Museus
do Distrito; e não pretendendo senão documentar e estudar a vida e a
história locais, oferece, não obstante − ou justamente por isso −
aspectos e elementos de real interesse para a história do povo
português, que nenhum dos restantes Museus do País até agora proporciona
ao estudioso.
A razão é simples: se
excluirmos o fundo agrícola local, comum à generalidade da Nação,
verificamos facilmente que toda a economia do concelho de Ílhavo é, de
há muito, dominada pela vida marítima e pela indústria da porcelana.
Esta última, iniciada em
1824 na Vista Alegre, chegou a atingir, por vezes, a perfeição das
grandes fábricas europeias, de mundial renome, encontrando-se
presentemente em elevado grau de prosperidade e numa fase deveras
interessante da sua história.
A vida marítima local vem de
muito longe e é impossível determinar quando terá começado; a indústria,
da pesca e do sal praticavam-se já na região muito antes de Ílhavo
constituir circunscrição administrativa e de Portugal existir como
Nação. independente; o concelho, depois, encontrou sempre as águas do
Atlântico na sua projecção a Ocidente.
No século XVIII a expansão
demográfica da terra foi considerável; verdadeiras colónias de
pescadores ilhavenses se estabeleceram no Tejo, e os vendedores de peixe
nas ruas de Lisboa eram conhecidos genericamente pelos nomes de ílhos
e de ílhavos;
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só muito depois o predomínio dos vareiros e varinos se firmou,
absorvendo, por sua vez, todas as outras designações e ganhando
significado geral de profissão, em detrimento do toponímico original;
ainda no século XIX as colecções de gravuras, reproduzindo os trajos
pitorescos da Capital, incluem os ílhavos pescadores de sardinha e as
ílhavas vendedoras de sardinha (litografias JOUBERT, PALHARES,
etc.).
Mas não só para o Tejo
emigraram os pescadores ilhavenses; fixaram-se igualmente em muitos
outros pontos da costa; RAUL BRANDÃO encontrou a tradição deles na
Nazaré e em Olhão; em Matosinhos, Peniche e Setúbal a conhecemos nós; e
a Norte e a Sul do Mondego, na região da Figueira da Foz, fez-se em tão
grande número essa emigração que é impressionante a quantidade de
ascendentes ilhavenses acusada pelos registos paroquiais ainda no meado
do século XIX.
Com o desenvolvimento da
navegação, o pescador tornou-se marinheiro; e como as qualidades
profissionais por ele demonstradas lhe permitem facilmente conquistar as
primeiras categorias, o marinheiro ilhavense encontra-se hoje, a bem
dizer, em todas as tripulações e percorre todos os mares.
Procurando reflectir a vida
local e propondo-se subsidiar a sua história, o Museu Municipal de
Ílhavo havia necessariamente de ir buscar àqueles dois aspectos
regionais os seus núcleos mais importantes. Recordações locais de
variado sentido e alcance preencheriam o resto.
Ora em Portugal nenhum Museu
público dispensa à vida marítima atenção e organização comparáveis ao
que em Ílhavo se esboçou e se vai procurando desenvolver constantemente;
nem o actual Museu marítimo de Faro nem as curiosidades,
interessantíssimas, aliás, do Aquário Vasco da Gama, de Algés; apenas as
magníficas colecções particulares do Sr. Henrique Maufroy de Seixas, em
Lisboa, o excedem; pacientemente acumuladas durante grande número de
anos, com notável inteligência, e tendo ao seu serviço recursos a que o
Museu de Ílhavo nunca poderá aspirar, elas resgatam nobremente a
negligência do Estado em arquivar as recordações e estudar a evolução do
nosso contacto de muitos séculos com as águas do Oceano.
Também em nenhum outro Museu
do País as porcelanas e os antigos vidros da Vista Alegre encontram a
representação que até o presente nos foi já possível alcançar; em muitos
dos Museus de Portugal a evolução artística da nossa primeira fábrica de
porcelanas é inteiramente desconhecida; e recordo com tristeza a
insignificância da sua representação em certos outros Museus onde,
aliás, à secção de cerâmica foi sempre dispensada carinhosa organização
e distinto apreço.
É por estas razões que o
Museu Municipal de Ílhavo, Museu dum modestíssimo concelho de 3.ª
classe, pobre de recursos, veio
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contribuir para o preenchimento dos quadros representativos da vida
nacional, cotando em interesse e significado gerais utensílios e
aspectos que pareciam confinados apenas à categoria de particularidades
da região.
Assim o compreendi em 1933,
quando − solicitado para corporizar a generosa e nobilíssima ideia que,
havia anos, lutava por enraizar e poder expandir-se − tive a honra de
apresentar à Comissão Municipal Administrativa as bases para a
organização do Museu(1),
dela recebendo, em seguida, o delicado e dificílimo mandato, que ainda
hoje perdura, de instalar e dirigir a prestimosa instituição.
Preconizei então, atendendo
«à vida natural do Município ilhavense, passada e presente», duas
secções fundamentais: a marítima, com todo o desenvolvimento que ela
é susceptível de comportar; e a cerâmica, que documentasse largamente a
vida histórica da fábrica da Vista-Alegre.
A par destas, propunha uma
secção de vida agrícola local, outra de pintura e desenho,
uma sala de Arte antiga, outra de indústrias locais de
pequena representação que não justificassem sala especial para cada uma,
outra de recordações locais − miscelânia da vida histórica e
civil -, núcleos de comparação, biblioteca regional, e
sala de arquivo.
Vão passados seis anos sobre
a apresentação desse plano de Museu, demasiadamente modesto para os
loucos sonhadores de grandezas e os demolidores profissionais de todo o
esforço alheio, e que a timidez de certos outros espíritos considerava
impraticável por falta de essenciais condições do meio a que se
destinava.
Os estudos de Etnografia
marítima não tinham grande ambiente ainda no nosso país e colecções
desta natureza eram desconhecidas da maioria dos ilhavenses; duvidava-se
das próprias forças e receava-se que o visitante procurasse apenas
mostruário de preciosidades artísticas, desinteressando-se das
miniaturas dos barcos da Ria, dos lugres bacalhoeiros, do
poleame, dos trabalhos de marinheiro, da agulha da rede, da macola da
peixeira, do bolim do moliceiro.
Com a apresentação daquelas
bases, no entanto, robusteceu-se a fé e redobrou a acção dessa alma de
fina têmpera que é Américo Teles, o criador da ideia do Museu,
trabalhador infatigável de todas as horas que em serviço do seu sonho
soube congregar todos os esforços aproveitáveis, dando constantemente o
exemplo edificante dos mais extraordinários sacrifícios pessoais para
que o Museu pudesse triunfar e constituir prometedora realidade.
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O projecto teve a boa sorte
de ser compreendido por alguém.
A Câmara Municipal acudiu
com casa indispensável, mais tarde com um guarda e a pequenina verba que
lhe foi possível consignar do seu modestíssimo orçamento; da comissão
organizadora, o pintor Teodoro Craveiro e os oficiais náuticos José
Cajeira e Manuel Matias prestaram de bom grado o serviço que pela
Direcção lhes foi solicitado por variadíssimas ocasiões e angariaram
fundos para as avultadas despesas de mobiliário e instalação geral.
Na medida das suas forças,
todos acorreram e cumpriram nobremente.
E assim se criou e se tem
mantido o Museu; entregue em 1937 ao Município, apresenta já uma secção
de navegação organizada com certo desenvolvimento, outra de pesca, outra
relativa à indústria do sal, bastante completa, uma sala de porcelanas
da Vista Alegre com magnífica documentação histórica, e tem esboçadas
subsecções de fauna e flora da Ria, a sala do moliceiro, a sala do
trajo, esperando em breve instalar as muitas recordações históricas
locais que possui.
O aplauso alheio tem sido
reconfortante; o visitante retira agradavelmente impressionado, e a
população compreende o seu Museu, reconhecendo-se a si própria na
exemplificação das colecções apresentadas.
Esboça-se e vai-se definindo
a fisionomia colectiva deste povo.
Entre os muitos objectos de
real valor e de alto e salutar significado que o Museu exibe,
impressiona o visitante, pelas suas dimensões e pelo realismo da sua
execução, a escultura do artista portuense AMÉRICO GOMES, intitulada
O Homem do Leme; é a maquette original do bronze que
presentemente ornamenta a avenida marginal da Foz do Douro.
AMÉRICO GOMES realizara o
seu trabalho para a Exposição Colonial do Porto, de 1934; aí o vimos,
dominando admiravelmente o conjunto da nave do Palácio de Cristal,
emprestando-lhe grandeza e dalguma maneira dando sentido e direcção a
tudo o que ali se acumulava.
Impressionava, sobretudo, a
vida que o escultor soubera comunicar à maquette; não era uma
estilização a compreender e a estudar; o artista transmitia ao
observador a realidade que surpreendera, sem artifícios, naturalmente,
com sinceridade e correcção absolutas.
Manifestado o desejo, de que
a expressiva obra de arte recolhesse ao Museu de Ílhavo, terminada que
fosse a Exposição, um favorável conjunto de circunstâncias e de boas
vontades o permitiu; restava saber como se combinaria a escultura com as
colecções do Museu, de dimensões reduzidas e em salas que
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ficavam a perder de vista da grandiosidade da nave para a qual o
trabalho tinha sido realizado.
Era um problema delicado,
que ameaçava inutilizar a cedência que de boa mente fora feita a Ílhavo.
Submetida assim a tão
extraordinária prova, foi então que a solidez da concepção do escultor
se revelou perfeita e completa.
Colocada num ambiente de
exclusiva e forte evocação marítima, de absoluta e integral realidade, a
escultura não destoou nem pelas dimensões nem pelo pensamento; ganhou
novo sentido e integrou-se admiravelmente no conjunto, logo constituindo
uma das mais impressionantes peças do incipiente Museu e causando a
justa admiração de quantos a observavam.
Era o triunfo da Arte, a
glorificação do Artista.
Moldada depois em bronze
pela diligência duma benemérita comissão em que injustiça seria não
destacar o esforço e a modelar organização que lhe imprimiu o portuense
Sr. Almiro Braga, quis ainda essa distinta comissão consagrar o artista
organizando um primoroso álbum com palavras alusivas à obra de Arte,
traçadas na quase totalidade por eminentes escritores e artistas do
nosso país, expressamente convidados.
O Director do Museu de
Ílhavo recebeu a imerecida e desvanecedora honra de ser chamado a tão
distinta companhia; disse, singelamente, o paradeiro último da
maquette e procurou explicar a escultura no seu novo meio. O álbum
de autógrafos foi depositado no Museu Municipal do Porto; fez-se, porém,
uma luxuosa edição reproduzindo os originais recolhidos, mas de reduzida
tiragem e exclusivamente destinada a ser distribuída pelos colaboradores
e subscritores, componentes da lista previamente organizada.
O álbum ficou assim
constituindo, por seu turno, uma preciosidade bibliográfica
interessantíssima.
Porque o artigo do Director
do Museu Municipal de Ílhavo constitui, de certo modo, um elemento para
a história desta benemérita instituição, e reproduzirá, porventura, a
opinião do próprio povo que sente, como ninguém, a verdade e a vida da
impressionante escultura, com autorização dos distintos organizadores da
merecidíssima homenagem ao trabalho de AMÉRICO GOMES aqui se reproduz
tal como no referido álbum saiu.
As gravuras que o acompanham
pertencem igualmente à magnífica publicação.
Divulgando esta homenagem,
pretendemos chamar a atenção para a expressiva obra de Arte, para o
distinto escultor, e para o Museu que muito se honra com a preciosidade
que possui.
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Aspecto do «Homem do Leme» |
*
« DA EXPOSIÇÃO COLONIAL DO
PORTO, DE 1934,
AO MUSEU MUNICIPAL DE ÍLHAVO
.
NA ARTE COMO NA VIDA
O ulterior destino, em hora
feliz proporcionado à maquette do «Homem do Leme», cujo
expressivo realismo fortemente me impressionou desde que na Exposição
Colonial do Porto tive ensejo de admirar tão equilibrada composição
escultórica, veio pôr em evidência as reais e extraordinárias qualidades
de observação e a técnica apurada do seu consciencioso autor.
Na verdade, pensado para
simbolizar o esforço consciente e tenaz das navegações portuguesas e
realizado expressamente para a vasta nave do Palácio de Cristal, o «Homem
do Leme», na salinha aconchegada do Museu Municipal de Ílhavo, onde
veio encontrar carinhoso e seguro abrigo, nem destoa pelo inevitável
contraste das suas dimensões nem corre o perigo de deixar incompreendido
o pensamento que o inspirou.
Direi mais: no Museu de
Ílhavo, em que à Etnografia marítima é dispensado particular
acolhimento, onde cada objecto nos evoca o Oceano e o trabalho árduo e
ignorado do nosso marinheiro, a realização do artista valoriza-se com o
especial ambiente que a cerca; a atitude daquela figura, meramente
simbólica na sua origem, humaniza-se mais e adquire maior compreensão:
ganha em naturalidade o que, porventura, possa perder em valor de
símbolo colocada neste meio, todo ele de evocação marítima também.
Desde a máscara enrugada
pelo vento cortante de largos mares, fronte contraída dominando a
emoção, atenção concentrada no horizonte distante, procurando divisar a
linha da costa, até o oleado e o sueste por aquele corpo envergados,
tudo se transmudou ali no marinheiro ilhavense que não receia desafiar
as procelas medonhas nem as vagas alterosas dos mais longínquos mares do
globo, onde a vida de tantos tem sido o preço da heróica aventura
constantemente renovada.
Como a bordo dos humildes
veleiros de Ílhavo, parece também que os nossos ouvidos ouvem bradar:
− «Seja louvado e adorado
Nosso Senhor Jesus Cristo! Leva acima, ó Senhores do quarto, olha a quem
toca o leme e a vigia!», que tal é o tradicional chamamento do
quarto, à voz
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do qual o «Homem do Leme» se encaminha ao seu posto de provação e
sacrifício por toda a tripulação.
− «Seja louvado e adorado
Nosso Senhor Jesus Cristo», pronuncia ele ao chegar junto do
camarada que vai render.
E logo se descobre, se o
tempo o permite, faz o sinal da cruz que o verdadeiro homem do Mar
jamais esquece, e recebe o leme das mãos enregeladas que o precederam,
ouvindo, em resposta à sua secular saudação, a breve e sentida fórmula,
igualmente consagrada − «Para sempre seja bendito!»
Na religiosidade do momento
sem par, um arrepio de emoção sincera passa naqueles dois homens fortes,
em pleno alto mar, em face de Deus e do mistério insondável das águas.
Tudo isto, com particular
felicidade, a escultura de AMÉRICO GOMES evoca, e eu, sinceramente
rejubilo por ver a expressiva obra de Arte no Museu da minha terra natal
− glorificação do trabalho do Mar, para quem o souber compreender −, que
organizei e que tenho a honra de dirigir.
O Artista, procurando um
símbolo de ordem geral que consubstanciasse a própria vida marítima,
realizou, afinal, a plasticização do marinheiro de Ílhavo, que sulca
todos os mares, intemerato, e tripula todos os navios.
NA ARTE COMO NA VIDA!
Ílhavo, Dezembro de 1937.
ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL
Director do Museu Municipal
de Ílhavo »
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Outro aspecto do «Homem do Leme» |
*
Está em organização o catálogo do Museu. O Público que não tiver ensejo
de visitar directamente as colecções representativas da actividade do concelho e de seguir
este colorido e
animado cortejo que nos permite a compreensão da vida local,
poderá com os elementos do catálogo integrar o ilhavense no
quadro geral do povo português e situá-lo na história da Humanidade; ali encontra os seus barcos de pesca de tipo normando,
reminiscência viva das incursões dos Vikings no Ocidente da
Península, suficientemente documentadas já; o tipo mediterrânico dos moliceiros da Ria evoca-lhe as passadas civilizações
que por aqui se cruzaram; a epopeia portuguesa do Oceano
revive na evolução das nossas embarcações do alto mar, lembrada em algumas dezenas de miniaturas que o próprio marinheiro
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ex-votos da sua Fé
imorredoira e da sempre viva confiança na protecção incomparável do Senhor Jesus dos Navegantes da sua terra.
O estudioso encontrará no catálogo relacionados todos os
variadíssimos elementos de estudo que foi possível arquivar:
trajos, utensílios, indústrias, Religião, actividade artística, actividade literária, a História, a Vida.
Percorrendo, contudo, essas páginas de descritivo e de evocação
− que assim as projecto − há-de certamente no seu espírito,
e talvez também no seu coração, desejar arquitectar o tipo do
marinheiro ilhavense; é então que a escultura de AMÉRICO GOMES
lhe surgirá com todo o seu luminoso valor de síntese; compreenderá então verdadeiramente o que é e o que significa
«O Homem do Leme».
A. G. DA ROCHA MADAHIL
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