Ao FERREIRA NEVES E AO
JOSÉ TAVARES, MEUS DEDICADOS CAMARADAS NA DIRECÇÃO DO Arquivo do
Distrito de Aveiro.
O
TRAJO POPULAR E A ETNOGRAFIA
− Consequência, sempre, do Meio (físico e social), grande número de vezes, também, produto natural da região
a considerar − e só por isso explicável − o vestuário ocupa no quadro
geral da Etnografia lugar inconfundível,
nitidamente diferenciado como aspecto impressionante na vida material do
homem.
Pode o observador, ao primeiro relance, não surpreender relação imediata
entre o Meio e o Trajo; um pouco de reflexão
lhe mostrara, porém, que determinadas espécies e certas formas
de vestuário são impostas pelas condições geográficas do Lugar (Meio
físico) ou pelas exigências de civilização da Sociedade (Meio social); e
ainda espécies e formas que se afiguram mais directamente comandadas
apenas por convenções de ordem estética − arbitrárias, portanto − essas
mesmo encontram a sua aceitação dependente das condições do Meio físico.
Apesar de tudo, a soberania da Moda não domina o Mundo em absoluto: o
homem é produto da Terra e o vestuário tem de reflectir sempre aspectos
locais. Quando o Meio o não determine expressamente, é forçoso, pelo menos, que não exista
incompatibilidade entre as condições físico-sociais do Meio e as formas
e espécies do vestuário proposto.
/
I46 /
Com o teor de vida individual se encontra
ele intimamente
relacionado, e remotos factos históricos e sociais explicam determinadas
particularidades suas; resultam daí sólidas e admiráveis sobrevivências, restos,
mesmo, de passadas civilizações, que em nossos dias se torna ainda possível observar e seguir;
mas, a par de inamovíveis fidelidades ao Passado longínquo, o vestuário do povo revela um lento trabalho de adaptação a
algumas das novas formas trazidas pela Estética, pela Indústria, pela
evolução do Gosto. São, ambos, fenómenos do maior interesse científico
que a Etnografia regista e cuidadosamente acompanha.
Se passarmos em revista as
conclusões de alguns dos mais
consagrados etnógrafos, facilmente se verifica a grande atenção
concedida pela Ciência ao trajo popular.
LOUIS MARIN, presidente da afamada Sociedade de Etnografia de Paris,
dedica-lhe um capítulo inteiro na minuciosa «table
d'analyse» que em 1925 publicou, ainda hoje o melhor guia
técnico de que pode dispor o etnógrafo que deseje recolher metodicamente,
sistematizando os materiais.
Para o referido autor, na escala das necessidades individuais, o
vestuário situa-se antes até da habitação ou abrigo; depois de ter
dedicado o primeiro capítulo ao alimento, que classifica de
preocupação e ocupação primordiais de todos os agrupamentos humanos, MARIN estuda no segundo os cuidados corporais e
analisa em terceiro lugar o vestuário «parce qu'il est un élément plus compliqué. Alors que l'alimentation ne sert qu'un besoin, le
vêtement protège, d'une part, contre la chaleur, le froid, l'humidité;
d'autre part, contre les frottements et les
piqures; la pudeur le nécessite; l'esthétique lui réclame beaucoup.»
Considera, no seu estudo, as
peças de que é composto; os
seus múltiplos
objectivos (protecção, fim moral e estético, significado social); o
modo de usar cada peça; o
regímen do vestuário;
os materiais, de que
ele é feito;
os métodos de confecção e
de manutenção; a
utensilagem aplicada; e a
significação especial
do vestuário.
Descrevendo «Le folklore de la Touraine», em 1931, J. M.
ROUGÉ, que é talvez o melhor conhecedor daquela característica região
francesa, coloca o vestuário em segundo lugar; estuda primeiro l'Homme
(naissance, mariage, déces); em
seguida Costumes (vêtements, coiffure et objects de toilette) e só
depois considera Maison (habitation, mobilier, ustensiles,
outils et instruments, jeux et jouets).
O Manuel de Folklore, de P. SAINTYVES, recentemente publicado (1936), obra
toda ela muito bem pensada, inclui um plano
de inquérito global deveras apreciável; o vestuário ocupa aí o
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terceiro lugar, depois do estudo do solo e do alimento, e precedendo
imediatamente o da habitação.
O grande etnólogo MICHAEL HABERLANDT, director do Museu de Etnografia
de Viena de Áustria, considera também o vestuário na sua Etnografia (2.ª
ed. espanhola, traduzida da 3.ª alemã por TELESFORO DE ARANZADI em
1929) escalonando o seu estudo após o da alimentação e o do albergue;
intitula-o adorno y vestido porque foi levado a concluir «que el hombre
pensó antes en adornar su cuerpo que en cubrir su desnudez».
Questionário muito criterioso e prático empregou em Espanha o etnógrafo RICARDO DEL ARCO para a elaboração da sua monografia
EI traje popular
altoaragonés − aportación aI estudio deI traje regional español −
publicada em 1924.
E é sempre de recordar, pelos grandes ensinamentos práticos que ministra, a
Etnografía española; cuestionario y bases para el estudio de los Trajes regionales (notas preliminares) de LUIZ DE
HOYOS SAINZ, de 1922.
Em Portugal também o trajo tem sido considerado de há muito como
importante elemento etnográfico; TEÓFILO BRAGA não o esqueceu no estudo
que dedicou em 1886 à Ethnographia portuguez − O Povo nos seus costumes, crenças e tradições,
repositório precioso, conquanto confusamente metodizado, de costumes e
vida doméstica, crenças e festas públicas, tradições e saber popular;
depois de considerar a «persistencia dos typos anthropologicos,
determinada pelos costumes populares», os «rudimentos da actividade espontanea», as «industrias locaes e tradicionaes», os
«estados sociaes representados nos costumes portuguezes», organiza o capítulo
quinto subordinando-o ao título geral de «Automatismo organico na
Imitação e na Tradição» e nele inclui o estudo de «Modas, trajos e
formas cerimoniaes» mas relacionando em primeiro lugar « A linguagem emocional
− Parlendas e Jogos infantis», e ainda «Os Jogos
infantis e populares».
Ao vestuário consagrou o etnógrafo português FRANCISCO ADOLFO COELHO
o grupo quinto do notável programa que elaborou para a Exposição ethnographica
portugueza de 1896, depois da terra e o homem, da alimentação, da
habitação, e do mobiliário; a esse tempo, como ele próprio deixou
registado nas observações prévias ao referido programa «o vestuário das
classes populares não (fora) ainda descrito e desenhado no seu
conjunto, comparativamente, na sua distribuição geográfica: (tinha)
sido apenas objecto de notas destacadas, de reproduções de curiosos de
momento. Algumas publicações destinadas a figurá-los pela estampa (fotografia,
gravura, aguarela, etc.)
/ 148 /
ficaram incompletas e apenas nalgumas exposições, nalguns
museus (industrial do Porto, agrícola de Lisboa) figuram uns
raros manequins representando exemplares avulsos».
ADOLFO COELHO agregava ao estudo do vestuário o das armas, por lhe
parecerem complemento daquele.
Em consideração à grande raridade do referido programa
e à utilidade incontroversa da metódica que propõe para o
estudo do vestuário, aqui se transcreve o mencionado Grupo V tal como o
ilustre etnógrafo o apresentou:
«Grupo V − Vestuário e armas.
1. Vestuário das creancinhas: cueiros, tiras umbilicaes,
fachas, cintas, mantéus (mantilhas), papagaios, envoltas,
vestidos, mandriões, batas, bibes, babadoiros, camisolas,
calças, calções, meias, piugas (carpins, meotes, pealhos,
coturnos, calcetas). Sapatos, botinhas (botinas), chinelos.
Lenços de cabeça, etc. Toucas, barretes, garruço (carapuço),
chapéus, bonnés, boinas, cachuchas. Fatos de baptisado.
2. Vestuario das creanças crescidas e de adultos. Trajos
do sexo masculino, do sexo feminino, de viuvo, de viuva,
ordinarios, domingueiros, de festa, de casamento, de lucto.
Vestuario do homem: Piugas (carpins, etc.), sapatos (ferrados, etc.), tamancos (samancos, sócos, chalocas), cloques, chiolas,
abarcas (alpargatas ou alparcatas), botas, chinelas,
chinelos. Polainas, safões. Calças (pantalonas), calças de
bôca de sino e calções (de alçapão, etc.) ceroulas, bragas.
Suspensórios (alças). Jaqueta, jaquetão, nisa, rabona, jaleco, colete,
camisa, camisola, gabão (varino, gabinardo), capa,
capote e em especial capote á alemtejana, capote de honras ou de
honricas de Miranda, capa de palha (coroça), mantas, carapuça, carapuço, capucha, barrete, chapéu (desabado, braguez, etc.), gorro, bonné com chavelhos (S. Miguel).
Lenços d'algibeira, do pescoço, cintas.
Vestuario de mulher: Meias, etc., ligas. Sapatos, chinelas, chinelinha, tamanquinhas, sócos. Calças, saias, anagoas e
saiotes, coletes, roupinhas, chambres, casaveques, bajús,
batas, algibeira (patrona). Lenço do peito, da cabeça,
capas, capuchas, salpim (ou susalpim, capote de grande
cabeção de S. Miguel), touca (coca). Lenços d'algibeira,
véu, bioco, chapéu, penteador.
3. Ornamentos diversos, pela maior parte feminis: Anneis,
xorcas, pulseiras, braceletes, manilhas, collares, gargantilhas
(afogadores), alfinetes, broches, cordões, corações, cadeias,
brincos das orelhas, arrecadas (ciganas, pendengues, cabaças), cintos. Pentes. Alamares.
4. Mortalhas.
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5. Guarda-sol (barraca), sombrinha.
6. Varapau, pampilho, cajado, fingueira, cacheira,
moca, cacete,
bordão, cachamorra, ladra, bengala. Muletas. Chuço, navalha, faca de
mato, funda, clavina, bacamarte, arcabuz.
7. Caixas de rapé. Bolsas de tabaco.
8. Manequins com os vestuarios completos caracteristicos das diveras
localidades.
9. Litteratura do vestuario popular português, comprehendendo os usos e
superstições que se lhe ligam. Representações graphicas.»
Dois volumes vão já publicados do importantíssimo «tentame de sistematização» de
Etnografia portuguesa do maior etnógrafo
português da actualidade, o Dr. JOSÉ LEITE DE VASCONCELOS; no primeiro deles expõe-se o plano da obra, mas não logramos
atingir o lugar que o Autor destina ao vestuário, principalmente pelo
que respeita à sua inserção na sequência dos diversos capítulos, pois
sobre a efectividade da sua inclusão na obra não devem restar dúvidas
algumas: na página 305 desse volume primeiro encontra-se um capítulo de
Ergologia, subdivisão de Literatura especial, onde efectivamente se fala
de vestuário; o Autor não diz, porém, a sistematização que propõe. Na ordenação
conferida à secção etnográfica portuguesa no Museu Etnológico de que o
Dr. LEITE DE VASCONCELOS foi activo organizador e director muito
ilustre, publicada na História do Museu
Etnológico Português, em 1915, o vestuário ocupava o terceiro lugar,
imediatamente depois da alimentação e da casa e seu arranjo. Era um
critério muito defensável.
Para o distinto etnógrafo português Sr. LUÍS CHAVES, «entre os factores humanos do mapa etnográfico estão as culturas e aproveito do
solo, as artes domésticas e indústrias regionais, a arquitectura e artes
decorativas, entre estas o trajo» (Etnografia
portuguesa) Lisboa, 1935, pág. 23).
Toda a secção etnográfica das monografias locais consagra
ao trajo maior ou menor número de linhas, consoante a extensão do
material a recensear.
O ensino universitário coimbrão documenta com as magníficas
Lições de Geografia Humana que o Pof. Dr. ARISTIDES DE
AMORIM GIRÃO publicou em 1936 a sua posiçao perante o problema.
Considera o ilustre Professor como necessidades fundamentais da espécie
humana a alimentação, a habitação e o vestuário, enumeradas assim por
ordem decrescente de importância;
/ 150 / o vestuário será a «última necessidade fundamental da espécie
humana, e precisamente aquela que melhor a distingue das outras espécies
animais» (op. cit., págs. 38 e 39).
|
Em 1926 distribuiu-se em Portugal minucioso questionário
preparatório duma exposição de trajos regionais patrocinada pelo Ministério do Comércio, que
para o fim especial havia no ano transacto instituído a comissão respectiva, Não teve, infelizmente,
realização o projectado certame;
o questionário era incontestavelmente bem elaborado; acompanhava-o uma
divisão regional do país destinada a facilitar agrupamentos, e embora
nalguns pontos a divisão proposta não correspondesse talvez
inteiramente ao que na prática se observa, do conjunto só havia a
esperar uma exibição magnífica e de proveitosos ensinamentos.
Em Setembro de 1935 levou o
Secretariado da Propaganda Nacional a
Genebra uma inteligente exposição de arte popular portuguesa que foi ao
mesmo
tempo revelação e encantamento
para a vista, sempre curiosa, de estrangeiros; a sua parte mais
impressionante era constituída, seguramente, por vinte manequins vestindo
trajos populares,
reproduzidos a rigor (figs. 1 e 2).
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Fig. 1 − Varina. Manequim da exposição da Propaganda Nacional.
Actualidade |
Repetiu-se, em Junho do ano imediato, essa exposição, em Lisboa, mais desenvolvida porém; eram 48 os manequins de trajos; foi igualmente apreciadíssima.
Nesse mesmo ano, a Associação Comercial de Lisboa
expusera na Capital 131 bonecas vestindo trajos populares, acompanhadas
de abundante documentação gráfica.
Em 1936, ocupou-se também do trajo popular a
Comissão de Estudo das
características das Festas Regionais incluindo no
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inquérito que dirigiu a todas as comissões administrativas dos
municípios do Continente e Ilhas as perguntas seguintes:
...7. Há nesse concelho trajo ou trajos regionais característicos ou
tradicionais? Em que zona?
8. Esse trajo está descrito? Onde?
9. Se está inédito ou defeituosamente descrito, pede-se que o descreva
com indicação de modelo, cores, nomes e enviando desenhos ou
fotografias.
10. Quando se usa e quem, de preferência, usa tal trajo?
Em Lisboa e na Província,
vários desfiles folclóricos se têm realizado nestes últimos tempos,
acolhidos sempre com extraordinário e vivo interesse, e com retumbante
sucesso.
Apraz-nos destacar, dentre eles, o de Lisboa, de 1917, e
o de
Aveiro, pela Páscoa de 1938; se o da Capital teve organização
primorosa e larga representação do País, o de Aveiro, modesta tentativa
que pela primeira vez veio a público na cidade, (figs. 3 a 7)
relaciona-se muito de perto com o âmbito que o presente esboço abrange,
motivo pelo qual o sublinho aqui.
Por fim, neste corrente ano de 1938, mais uma vez o
Secretariado da Propaganda Nacional chamou a
atenção para o trajo popular, enquadrado, agora, no seu meio geográfico
próprio
sem o qual se não compreende completamente, e, sobretudo,
se não explica: o programa do concurso da aldeia mais portuguesa de
Portugal estabelece na sua base primeira o seguinte, que importa
registar também como doutrina: |
|
Fig. 2 − Tricana de
Coimbra. Manequim da exposição da Propaganda Nacional. Época de
1910, aproximadamente. |
As condições essenciais a que deverão subordinar-se as aldeias
portuguesas do Continente, admitidas a concurso,
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são, em referência às tradições etnográficas e folclóricas das
respectivas províncias, a maior resistência oferecida a decomposições e
influências estranhas e o estado de conservação no mais elevado grau de
pureza das características seguintes:
1.º − Habitação.
2.º − Mobiliário e alfaia doméstica.
3.º − Trajo.
.....................................
Do que ligeiramente deixámos relacionado e que por agora
não desejamos desenvolver, se infere já que, embora possa variar o
critério da sistematização, o estudo do trajo popular constitui
reconhecidamente um importante capítulo da Etnografia e nunca se afasta
grandemente do estudo da alimentação e
da habitação.
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Fig. 3 − SERRANAS DO ARESTAL E CAMPONESAS DE ROCAS. ACTUALIDADE.
Aspecto do desfile folclórico de Aveiro em 1938. |
Mais se verifica a grande estima que por
toda a parte, nos
meios cultos e nos populares, o estudo do trajo regional provoca e encontra de facto. Bastava um pouco de iniciativa e de
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inteligência para aproveitar condignamente tamanho interesse e
canalizá-lo no sentido de estimular a manutenção do que ainda persiste
de característico, e também − porque não? − de fazer ressurgir formas
locais abandonadas pelo aliciamento de desvairadas modas, de intuitos
meramente comerciais, que não estéticos, como são as que orientam o
trajo feminino senhoril nos centros elegantes de todo o mundo.
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Fig. 4 − TRAJOS DE OVAR NO SÉC. XIX.
Aspecto do desfile folclórico de Aveiro em 1938. |
ÂMBITO DO PRESENTE ESBOÇO
− Agrupando a investigações pessoalmente realizadas apontamentos locais espalhados
por variadíssimas publicações, tenta-se no presente esboço o panorama do
trajo popular na Beira Litoral através de alguns aspectos seus que foi
possível ainda surpreender e coleccionar. Primeira tentativa de
agrupamento, reconhecidamente incompleto, fica ele sujeito a todas as
ampliações resultantes de documentação que não pôde agora ser
conhecida e que se procurará recolher para uma futura remodelação deste
brevíssimo estudo.
Em primeiro lugar, convém definir e marcar a zona geográfica a que
desejamos limitar as nossas observações; como
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noutro lugar tivemos ensejo de escrever (Grande Enciclopédia Portuguesa
e Brasileira), da divisão provincial promulgada com o código
administrativo de 1936, resultou, entre alterações várias ao arranjo
circunscricional do país, a província da BEIRA LITORAL, cuja capital é
Coimbra.
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Fig. 5 − TRICANAS DE AVEIRO MOSTRANDO A EVOLUÇÃO
DA SUA MANEIRA DE VESTIR DESDE 1850 ATÉ À ACTUALIDADE
Aspecto do desfile folclórico de Aveiro em 1938. |
Província que aparece pela primeira vez agora no sistema administrativo
nacional, ela corresponde, de facto, a uma região geográfica distinta,
assinalada já pelo geógrafo BARROS GOMES em 1878 nas suas notáveis
Cartas elementares de Portugal como
sendo uma «região sub-plana, abrangendo os extensos campos
do Vouga, do Mondego, do Lis, e os maiores areais da beira-mar; muito costeira, adjacente a terras altas».
Os limites já então propostos em pouco diferiam dos que vieram a ser-lhe fixados na remodelação provincial de 1936;
criteriosamente se atendeu, como não podia deixar de ser, às
suas características geológicas, orográficas e climáticas, pois são os
factores desta natureza que concorrem para fazer da Beira Litoral, como em 1922 escrevia o Prof. DR. AMORIM
GlRÃO, uma
das mais bem caracterizadas divisões naturais do nosso país.
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«Formações geológicas de natureza exclusivamente sedimentar, relevo
pouco acentuado, menor oscilação térmica anual, maior humidade como
resultado da influência marítima e lagunar, associações vegetais
caracterizadas pelo carvalho português e, em grande parte, pela
oliveira, população muito densa e com especiais características
etnográficas, casas de habitação com formas arquitectónicas mais
elegantes e ornamentação mais variada, vias de comunicação numerosas e
geralmente evitando o curso dos rios, além
de sensíveis modificações nas outras formas de ocupação do solo pelo
homem: tais são as características diferenciais dessa zona litoral»
(AMORIM GIRÃO, Bacia do Vouga, pág. 166).
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Fig. 6 − GRUPO DE TRICANAS VESTINDO A MANTILHA, À MODA DE 1850
Aspecto do desfile folclórico de Aveiro em 1938 |
O Professor SILVA TELES considerava que a Beira Litoral
é «o prolongamento, ao Sul do Douro, do Minho peneplano e vai até onde
as águas do Mondego se aproximam das do Lis» (Portugal − Aspectos geográficos e climáticos, Lisboa, 1929, pág. 16).
/ 156 /
Quatro antigos distritos contribuíram para a formação da nova Província:
o de Aveiro e o de Coimbra na sua quase totalidade, metade, aproximadamente, do de Leiria, e uma pequena
parcela do distrito de Santarém, resultando deste agrupamento que, ao Norte, Ovar, São João da Madeira e Vale de Cambra são os seus
concelhos extremos; do Nascente, envolvem a Província as elevações bem marcadas da Serra da Freita, do Arestal, das
Talhadas, do Caramulo, do Buçaco, da Estrela, da Louzã
e da Serra de Porto de Mós. Ao Sul, uma linha bastante irregular, incluindo Fátima e Batalha e subindo pouco depois entre
Leiria e Marinha Grande, a apanhar a margem direita do Lis,
pela qual segue até o Atlântico; o Oceano constitui toda a sua extrema
Poente.
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Fig. 7 − CAMPONESAS DA GAFANHA DA NAZARÉ. ACTUALIDADE.
Aspecto do desfile folclórico de Aveiro em 1938 |
Esta frente marítima extensíssima, a que corresponde larga faixa de
areais, os vales do Vouga, do Mondego e do Lis, o
acidente geográfico sem par na Península, que é a Ria de Aveiro, toda a alta muralha de serras, ao Nascente, levaram naturalmente à constituição de outras tantas sub-regiões geográficas;
essas mesmas causas e ainda a existência de quatro cidades na
/ 157 /
Província, com a sua natural acção transformadora (Aveiro, Coimbra,
Figueira da Foz e Leiria) determinaram, por sua vez, zonas de certa
diferenciação etnográfica; importa muito ao nosso estudo fixar umas e
outras, se é possível.
Perfeitamente caracterizadas, encontra o
Prof. Dr. AMORIM GIRÃO, geógrafo
que melhor tem estudado a divisão regional do País, estas sete:
− a sub-região de Cambra, (concelhos de S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis
e Vale de Cambra); a da Ribeira do Vouga, (Albergaria-a-Velha,
Águeda e Sever do Vouga); a da Ria, (Ovar, Estarreja, Murtosa, Aveiro,
Ílhavo, Vagos e Mira); a da Bairrada, (Oliveira do Bairro, Anadia e
Mealhada, além duma pequena área dos concelhos de Águeda e
Cantanhede); a do Baixo-Mondego, (Coimbra, Penacova, Arganil, Góis, Poiares, Lousã, Miranda do
Corvo e Penela); a do Mondego Litoral, (Cantanhede, Montemor-o-Velho,
Condeixa, Soure e Figueira da Foz); a do Lis, (Pombal, Leiria e
Marinha Grande)(1). (Esboço duma carta regional de Portugal, Coimbra,
1933, 2.a ed., pág. 80).
Uma dúzia de regiões, pelo menos, distingue nesta nossa área o
Prof. Dr.
VERGÍLIO CORREIA, enumerando-as desta maneira no relatório do júri da
Província da Beira Litoral, que à sua grande competência de etnógrafo
foi justamente confiado, para o concurso da aldeia mais portuguesa de
Portugal, a que já acima fizemos referência:
− «a Costa, a Ria de Aveiro, as margens do Vouga na parte em que o
rio corre entre serras; a Cândara de Cantanhede, a
Borda do Campo, no Baixo-Mondego; a zona de pequenas elevações que
envolve Coimbra, a mancha serrana do Buçaco a Penacova e Poiares, a
cadeia montanhosa calcária que segue de Condeixa a Pombal e à Serra de
Aire, o retalho fronteiriço de Pedrógão-Figueiró-Alvaiázere, a Gândara
de Leiria, a Serra da Lousã, e por fim a área serrana dos concelhos de Pampilhosa da Serra,
Góis e Arganil» (Diário de Coimbra, n.º 2630, de
3 de Julho de 1938).
Estes critérios serão apenas, creio eu, condicionados pelos
factores geográficos locais, não lhes correspondendo agrupamentos
etnográficos distintos.
Ainda na Província que estamos considerando assinala
LUÍS
CHAVES, conceituado etnógrafo e distinto Conservador do Museu Etnológico
Português, na obra acima citada, as seguintes zonas que se lhe afiguram
etnograficamente diferenciadas e que o
povo designa desta forma:
− a Ria; a Ribeira do Vouga (S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis,
Águeda para o Sul); a Ribeira de Ovar, a Foz do Mondego, o
Campo do
Mondego subdividido em Campo de Coímbra
/ 158 / e
Campo de Montemor; terras de Coimbra, Bairrada e terras da Bairrada, a
Gândara; a Casconha (terras altas de
Penacova, Arganil e Oliveira do Hospital; esta última parte,
fora, já, da nossa Província).
Observa igualmente o Autor que, na Beira Litoral, Marinha
designa a região corrente ao comprido do Mar, entre este e a
Serra, ou zona alta; Costa é a vaga faixa litoral, por Portugal
abaixo.
Trata-se, evidentemente, de zonas etnográficas gerais e não
de agrupamentos organizados tendo expressamente em vista a
distribuição do trajo.
O traçado da carta etnográfica dó vestuário em Portugal
ainda se não fez; é como subsídio para ela que vamos reunir
alguns aspectos do trajo popular, na Beira Litoral.
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Fig. 8 − TRAJO POPULAR DE ESGUEIRA.
Fotografia anterior a 1900. |
A. G. DA ROCHA MADAHIL
Continua na pág. 213 −
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