No fértil e
povoado território de entre Douro e Mondego, a região do Vouga,
largamente batida por invasores e disputada com tenacidade desde remotas
eras, proporcionou aos cartórios conventuais documentação copiosa, que
sem exagero algum se pode classificar de notável, tais, e tão variados,
são os elementos de estudo que esses frágeis monumentos nos perpetuaram.
Zona cuja
acção não foi ainda completamente estudada perante os altos problemas da
organização política e económica de Portugal, ela fornecerá também
abundante material arqueológico aos Museus quando metodicamente
explorada; permite-nos ajuizá-lo o que já conhecemos dela, embora
produto de pequeníssimas sondagens; a ela se ligam perturbantes
problemas sem solução ainda, como o das populações pré-históricas dos
seus castros, e os das cidades luso-romanas desenvolvidas como devem ter
sido Lancóbriga, Cacia, Talábriga, Vácua, Marnele, etc.
Justificação
mais do que suficiente para a organização em Aveiro dum Instituto de
estudos arqueológicos e duma Comissão de escavações, sonho
obsidiante, desde há largos anos, de quem isto escreve, animado sempre
por esse formosíssimo espírito que foi Jaime de Magalhães Lima,
acarinhado igualmente pelo grande conhecedor da região, que é o Dr.
Alberto Souto, cujo trabalho pessoal de arqueólogo e de investigador
muito tem conseguido já esclarecer e classificar, e acompanhado ainda
com interesse pelo Dr. Amorim Girão, o historiador da Bacia do Vouga e
abalizado geógrafo que todo o País admira.
Da secção
inferior daquela zona, ligada com o problema da formação da Ria, várias
vezes se tem falado em Alquerubim, e num documento que serve para marcar
a antiga linha da costa,
/ 72 / pois coloca
tal povoação «inter paus et marnelle discurrente ribulo uauga prope
litore maris».
Já o
inventário das propriedades e igrejas de Guimarães, de 1059, regista a
villa alcaroubim integra et cum sua prestancia et con suas
salinas, remetendo para o célebre testamento da riquíssima Mumadona,
de 959, que incluía «in territorio Colimbrie villa de alcaroubim quomodo
illa obtinuit froya guntesindiz per incartationem de Gondisindo suariz
cum omnibus prestationibus suis» (Port. Mon. Hist.
− Dip. et Ch.,
págs. 257 e 44).
Efectivamente
a Ria não existia ainda então e um braço de mar penetrava
numa vasta reentrância da costa, perceptível, por exemplo, no
Portulano de FRANClSCO PIZIGANO(1), de 1367;
nesse braço desaguavam o Cértima, o Águeda e o Vouga.
Alquerubim e
S. João de Loure ficavam à vista do oceano e era possível a existência
de marinhas nesses lugares, muito distantes hoje da linha de maré.
De Alquerubim,
um dos poucos topónimos vouguenses que ficaram recordando a ocupação
muçulmana, muitos documentos inéditos conhecemos, e em mais de um
cartório; possivelmente deles nos ocuparemos também; por agora
deter-nos-emos, e um momento só, na apresentação gráfica da carta de
doação que data de 1090, a mesma acima citada como localizando
Alquerubim prope litore maris.
HERCULANO
publicou o diploma, e vários estudiosos têm referido os elementos
topográficos nele contidos; mas HERCULANO conheceu apenas uma cópia,
presumivelmente um apógrafo, feito no século XVIII, existente na
Academia das Ciências; por ela fez a publicação que nos Diplomata et
Chartae tem o n.º DCCXLV, a pág. 444; no entanto, o original existe
e é, justamente, uma das maiores preciosidades paleográficas do Arquivo
onde se encontra (o da Universidade de Coimbra) e uma verdadeira
relíquia paleográfica do Distrito, pois os documentos coevos, na sua
grande maioria, apenas se conservaram trasladados em cartulários. De
poucos se conhecem os originais.
É unicamente
esse aspecto que desejamos frisar nesta publicação; depois de HERCULANO,
reproduziu o teor do documento, servindo-se do original, e eminente
historiador, DR. ANTÓNIO DE VASCONCELOS, no Anuário
da Universidade para o ano lectivo de 1900-1901, salientando o
valor filológico que possui(2); mas em
reprodução zinco gráfica, que permita apreciar o seu aspecto
paleográfico, é esta a primeira vez que o documento vem a público.
/ 73 /
A nossa
gravura
[na pág.
seguinte] redu-lo algum tanto; o original é uma tira de pergaminho
grosseiro, sem preparo, que mede 474x184 mm, e a caligrafia em que o
monge notário, Pelágio, o escreveu é ainda a chamada visigótica
minúscula, denunciando todavia influência da letra francesa que então se
usava já e veio a ter larga difusão, como é geralmente sabido e aqui não
importa relatar.
Do estado de
conservação permite a nossa gravura fazer-se ideia suficiente.
Nas costas do
documento vários sumários se foram lançando; no século XII, ou no XIII,
registaram: flamule onoriguiz de alquarouim; mais tarde, no
século XV, ao que parece, escreveram: doacõ antigua de muitas terras
de micinhata ë Vouga era 1114 letra goda; em caligrafia do século
XVI, lê-se também: Carta antiga que pertëce a herdade dalcarouim e
paaos direita pello Rycio do uouga ataa o mar; no século XVIII
acrescentaram ao primeiro sumário paos alcorouuim; e por fim,
JOÃO PEDRO RIBEIRO sumariou desta forma a doação: «Pedrozo. Igreia de
Alcarouvim, e herdade em Páos; Carta de doaçaõ feita na era de 1128, por
hum certo homem chamado Flamula, ao Mosteiro de S. Pedro de Pedrozo, da
porçaõ, ou terça, que lhe pertencia da Igreia de Alcarovim, e da
herdade, ou herança, cita entre Páos, e Marnelle por onde corre o rio
Vouga Junto da praya do mar. Reinando o Snr Rey Afonso, e Arcebispo em
Braga Pedro».
O documento é
o único, avulso, que o Arquivo da Universidade possui deste tipo de
letra; veio à sua posse em virtude dos foros e rendas do Mosteiro de
Pedroso terem sido incorporados na fazenda da Companhia de Jesus (em
1567); quando da extinção desta, a doação régia de 4 de Julho de 1774
entregou à Universidade toda a riqueza constituída pelo património da
Companhia; com os bens vieram os títulos que lhes diziam respeito; entre
eles, esta carta de doação ao mosteiro de Pedroso de tudo o que em
Alquerubim Flâmula Honoriguiz possuía.
O Arquivo tem
hoje unicamente este diploma, do grupo dos avulsos, escrito nesta
visigótica minúscula, como acima dizemos; outros lhe pertenciam
legitimamente; mas HERCULANO visitou-o em 1853, com o fim de escolher
documentos que servissem para a História de Portugal, e que eram
todos os que alcançassem o século XIII; marcou o que ao seu plano
convinha, e delegados seus vieram depois recolher quanto quiseram;
levaram para Lisboa 497 pergaminhos avulsos, do cartório da
Universidade, onde nunca mais voltaram, constituindo hoje elementos
preciosos das colecções especiais da Torre do Tombo que subsidiam os
estudos dos primórdios da Nacionalidade.
Mais duma vez
me tenho referido a essa incorporação, absolutamente desastrada e
ruinosa para os arquivos provinciais, que não encontra justificação
perante a técnica arquivística, e que há longos anos clama a restituição
das espécies desviadas aos seus lugares de origem.
/ 74 / A carta que
hoje pela 1.ª vez aparece aos olhos do Público na sua forma externa,
escapou, felizmente, à colheita dos emissários de HERCULANO; o leitor
especializado pode cotejá-la com o apógrafo dos Diplomata et Chartae;
8 divergências de transcrição, aliás de pequena monta, lhe encontramos
nós; uma delas, no entanto, devemos assinalar, sem, aliás, a pretensão
doentia de emendarmos quem quer que seja; é onde os Diplomata escrevem
secundum, em vez de sicut, como nós lemos.
Etc. O exame
completo de quanto esse remoto Pelágio escreveu levar-nos-ia longe
demais para o Arquivo do Distrito de Aveiro; os leitores habituados a
estes exercícios paleográficos vão entreter-se com o nosso fac-simile;
os restantes não nos perdoariam nunca a seca digressão.
ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL |