A. G. da Rocha Madahil, A carta de doação de Alquerubim em 1090, Vol. IV, pp. 71-74.

RELÍQUIAS PALEOGRÁFICAS DO DISTRITO

A CARTA DE DOAÇÃO DE

ALQUERUBIM EM 1090

No fértil e povoado território de entre Douro e Mondego, a região do Vouga, largamente batida por invasores e disputada com tenacidade desde remotas eras, proporcionou aos cartórios conventuais documentação copiosa, que sem exagero algum se pode classificar de notável, tais, e tão variados, são os elementos de estudo que esses frágeis monumentos nos perpetuaram.

Zona cuja acção não foi ainda completamente estudada perante os altos problemas da organização política e económica de Portugal, ela fornecerá também abundante material arqueológico aos Museus quando metodicamente explorada; permite-nos ajuizá-lo o que já conhecemos dela, embora produto de pequeníssimas sondagens; a ela se ligam perturbantes problemas sem solução ainda, como o das populações pré-históricas dos seus castros, e os das cidades luso-romanas desenvolvidas como devem ter sido Lancóbriga, Cacia, Talábriga, Vácua, Marnele, etc.

Justificação mais do que suficiente para a organização em Aveiro dum Instituto de estudos arqueológicos e duma Comissão de escavações, sonho obsidiante, desde há largos anos, de quem isto escreve, animado sempre por esse formosíssimo espírito que foi Jaime de Magalhães Lima, acarinhado igualmente pelo grande conhecedor da região, que é o Dr. Alberto Souto, cujo trabalho pessoal de arqueólogo e de investigador muito tem conseguido já esclarecer e classificar, e acompanhado ainda com interesse pelo Dr. Amorim Girão, o historiador da Bacia do Vouga e abalizado geógrafo que todo o País admira.

Da secção inferior daquela zona, ligada com o problema da formação da Ria, várias vezes se tem falado em Alquerubim, e num documento que serve para marcar a antiga linha da costa, / 72 / pois coloca tal povoação «inter paus et marnelle discurrente ribulo uauga prope litore maris».

Já o inventário das propriedades e igrejas de Guimarães, de 1059, regista a villa alcaroubim integra et cum sua prestancia et con suas salinas, remetendo para o célebre testamento da riquíssima Mumadona, de 959, que incluía «in territorio Colimbrie villa de alcaroubim quomodo illa obtinuit froya guntesindiz per incartationem de Gondisindo suariz cum omnibus prestationibus suis» (Port. Mon. Hist. Dip. et Ch., págs. 257 e 44).

Efectivamente a Ria não existia ainda então e um braço de mar penetrava numa vasta reentrância da costa, perceptível, por exemplo, no Portulano de FRANClSCO PIZIGANO(1), de 1367; nesse braço desaguavam o Cértima, o Águeda e o Vouga.

Alquerubim e S. João de Loure ficavam à vista do oceano e era possível a existência de marinhas nesses lugares, muito distantes hoje da linha de maré.

De Alquerubim, um dos poucos topónimos vouguenses que ficaram recordando a ocupação muçulmana, muitos documentos inéditos conhecemos, e em mais de um cartório; possivelmente deles nos ocuparemos também; por agora deter-nos-emos, e um momento só, na apresentação gráfica da carta de doação que data de 1090, a mesma acima citada como localizando Alquerubim prope litore maris.

HERCULANO publicou o diploma, e vários estudiosos têm referido os elementos topográficos nele contidos; mas HERCULANO conheceu apenas uma cópia, presumivelmente um apógrafo, feito no século XVIII, existente na Academia das Ciências; por ela fez a publicação que nos Diplomata et Chartae tem o n.º DCCXLV, a pág. 444; no entanto, o original existe e é, justamente, uma das maiores preciosidades paleográficas do Arquivo onde se encontra (o da Universidade de Coimbra) e uma verdadeira relíquia paleográfica do Distrito, pois os documentos coevos, na sua grande maioria, apenas se conservaram trasladados em cartulários. De poucos se conhecem os originais.

É unicamente esse aspecto que desejamos frisar nesta publicação; depois de HERCULANO, reproduziu o teor do documento, servindo-se do original, e eminente historiador, DR. ANTÓNIO DE VASCONCELOS, no Anuário da Universidade para o ano lectivo de 1900-1901, salientando o valor filológico que possui(2); mas em reprodução zinco gráfica, que permita apreciar o seu aspecto paleográfico, é esta a primeira vez que o documento vem a público. / 73 /

A nossa gravura [na pág. seguinte] redu-lo algum tanto; o original é uma tira de pergaminho grosseiro, sem preparo, que mede 474x184 mm, e a caligrafia em que o monge notário, Pelágio, o escreveu é ainda a chamada visigótica minúscula, denunciando todavia influência da letra francesa que então se usava já e veio a ter larga difusão, como é geralmente sabido e aqui não importa relatar.

Do estado de conservação permite a nossa gravura fazer-se ideia suficiente.

Nas costas do documento vários sumários se foram lançando; no século XII, ou no XIII, registaram: flamule onoriguiz de alquarouim; mais tarde, no século XV, ao que parece, escreveram: doacõ antigua de muitas terras de micinhata ë Vouga era 1114 letra goda; em caligrafia do século XVI, lê-se também: Carta antiga que pertëce a herdade dalcarouim e paaos direita pello Rycio do uouga ataa o mar; no século XVIII acrescentaram ao primeiro sumário paos alcorouuim; e por fim, JOÃO PEDRO RIBEIRO sumariou desta forma a doação: «Pedrozo. Igreia de Alcarouvim, e herdade em Páos; Carta de doaçaõ feita na era de 1128, por hum certo homem chamado Flamula, ao Mosteiro de S. Pedro de Pedrozo, da porçaõ, ou terça, que lhe pertencia da Igreia de Alcarovim, e da herdade, ou herança, cita entre Páos, e Marnelle por onde corre o rio Vouga Junto da praya do mar. Reinando o Snr Rey Afonso, e Arcebispo em Braga Pedro».

O documento é o único, avulso, que o Arquivo da Universidade possui deste tipo de letra; veio à sua posse em virtude dos foros e rendas do Mosteiro de Pedroso terem sido incorporados na fazenda da Companhia de Jesus (em 1567); quando da extinção desta, a doação régia de 4 de Julho de 1774 entregou à Universidade toda a riqueza constituída pelo património da Companhia; com os bens vieram os títulos que lhes diziam respeito; entre eles, esta carta de doação ao mosteiro de Pedroso de tudo o que em Alquerubim Flâmula Honoriguiz possuía.

O Arquivo tem hoje unicamente este diploma, do grupo dos avulsos, escrito nesta visigótica minúscula, como acima dizemos; outros lhe pertenciam legitimamente; mas HERCULANO visitou-o em 1853, com o fim de escolher documentos que servissem para a História de Portugal, e que eram todos os que alcançassem o século XIII; marcou o que ao seu plano convinha, e delegados seus vieram depois recolher quanto quiseram; levaram para Lisboa 497 pergaminhos avulsos, do cartório da Universidade, onde nunca mais voltaram, constituindo hoje elementos preciosos das colecções especiais da Torre do Tombo que subsidiam os estudos dos primórdios da Nacionalidade.

Mais duma vez me tenho referido a essa incorporação, absolutamente desastrada e ruinosa para os arquivos provinciais, que não encontra justificação perante a técnica arquivística, e que há longos anos clama a restituição das espécies desviadas aos seus lugares de origem.

/ 74 / A carta que hoje pela 1.ª vez aparece aos olhos do Público na sua forma externa, escapou, felizmente, à colheita dos emissários de HERCULANO; o leitor especializado pode cotejá-la com o apógrafo dos Diplomata et Chartae; 8 divergências de transcrição, aliás de pequena monta, lhe encontramos nós; uma delas, no entanto, devemos assinalar, sem, aliás, a pretensão doentia de emendarmos quem quer que seja; é onde os Diplomata escrevem secundum, em vez de sicut, como nós lemos.

Etc. O exame completo de quanto esse remoto Pelágio escreveu levar-nos-ia longe demais para o Arquivo do Distrito de Aveiro; os leitores habituados a estes exercícios paleográficos vão entreter-se com o nosso fac-simile; os restantes não nos perdoariam nunca a seca digressão.

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

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(1) − Existe na Biblioteca Nacional de Parma, e torna-se notável pelo rigor do recorte litoral e pela beleza de execução. A reentrância do Vouga está melhor desenhada do que no portulano de PETRUS VISCONTI, de 1318.

(2) − São cheias de interesse as anotações do erudito historiador a várias passagens do documento, bem como a identificação dos textos bíblicos nele abundantemente transcritos à maneira de exórdio.

NOTA - Onde se encontrar um trema, deverá considerar-se um til.

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