Celeste Costa, D. Brites de Lara e Meneses, Vol. IV, pp. 53-59.

D. BRITES DE LARA E MENESES

PADROEIRA DO CONVENTO DO CARMO DE AVEIRO

JUNTO ao túmulo de mármore, que na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Aveiro, fica no lado do Evangelho, está uma pequena lápide, na qual se lê:

TÚMULO
DE
D. BEATRIZ
DE LARA

−−−

FUNDADORA
DESTE
CONVENTO

Beatriz de Lara! E este nome trouxe-nos à memória a linda figurinha de romance, que foi sorriso e encanto na corte de D. Manuel I.

Admirada por sua extraordinária beleza e alto espírito, cobiçada para noiva dos mais gentis e valorosos fidalgos, grandes de Portugal, na época brilhante do Renascimento, em que tudo desperta num clamor de vitória e criação esta rapariga, tão bela e tão inteligente, soube brilhar e deixou um rasto de luz no ambiente e no tempo em que viveu. Os poetas exaltaram-lhe a formosura, a «gentil presença» e as trovas cantavam-lhe a graça e a frescura numa homenagem constante. O seu sorriso foi uma tentação e o seu olhar um enigma atraente. Olhá-la era admirá-la, era sentir-se preso e seduzido.

Sobrinha de EI-Rei, um momento houve em que o herdeiro do trono se deixou prender e enfeitiçar também.

«Além de ser muito discreta, foi uma das formosas, e bem / 54 / dispostas mulheres, que em seu tempo houve nestes reinos, com as quais partes, e nobreza de sangue, e bom dote que tinha» o que não obstou a que El Rei achasse mais conveniente para a política do reino a aliança matrimonial do príncipe com uma princesa de espanha.

Túmulo de D. Brites de Lara e Meneses

Tratou pois de a casar com o filho do marquês de Vila Real (mais tarde o 3.º marquês) insinuante rapaz recém-chegado a Lisboa, aureolado de glória, gozando o prestígio que a fama das façanhas de África conferiam duplo título de nobreza para um homem ser querido das mulheres do seu tempo. Desse enlace nasceu a que mais tarde seria a primeira duquesa de Aveiro.

Mas... basta de devaneios; o nome de Beatriz de Lara os inspirou. A verdade porém, é que o convento do Carmo é de / 55 / fundação muito posterior à morte desta Senhora(1). Outra Beatriz de Lara ali foi dormir o derradeiro sono.

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A grande nomeada que por toda a parte gozavam os frades carmelitas, que em Coimbra tão bem doutrinavam e na Universidade tanto se distinguiam, tornou-os conhecidos e desejados do bom povo da vila de Aveiro, a qual «entre as notáveis deste reyno tem avantajado logar, por ser empório tão frequentado de naos estrangeiras e naturaes que excede a muitos grandes e compete com os maiores da nossa costa».

As pessoas que mais devotas da Ordem se mostravam, começaram «a agenciar a sua fundação» ali, esperando, com o melhor interesse, ocasião propícia. É nessa altura que passa por Aveiro, a caminho do Porto, o Padre Provincial Fr. Bernardo de St.ª Maria, acompanhado pelo Reitor de Coimbra, frei Lourenço da Madre de Deus. Recebidos carinhosamente em casa de Pero Tavares, senhor de Mira (um dos que mais entusiasmo sentiam por o estabelecimento dos carmelitas na vila e mais esperava de seu alto exemplo e salutar virtude) da sua boca ouviram uma larga prática, com que pretendeu persuadir o Padre Provincial que fundasse um mosteiro ali, onde a bondade e capacidade da terra oferecia grandes comodidades para seu modo de vida e instituto; por ser tão aprazível sítio, tão temperado no clima, tão mimoso de frutas e pescaria e finalmente tão provida de tudo o necessário para sustento da vida humana que de todos os que têm experiência da sua abundância e barateza de mantimentos se faz sobre estimada apetecida.

O Provincial mostrou-se inclinado a aceder, e continuou a sua viagem, deixando em Aveiro o seu Secretário e o Padre Félix, para convenientemente estudarem o assunto, investigarem se haveria local apropriado e verem se os vereadores aceitavam de bom grado a fundação. Estes não puseram obstáculo, e, aIguns locais lhe pareceram bons.

O Padre Provincial regressou desanimado do Porto, perdida a coragem de lá instalar a Ordem, «sem tirar da jornada mais que voltar para Coimbra muito doente». Por tudo isto tratou de alcançar, para Aveiro, a licença do Definitório Geral, mas não a conseguiu porque guardou Deus esta ventura para seu sucessor o Padre frei Miguel da Virgem. Logo que este foi eleito Provincial, obteve as licenças necessárias, tendo-se para tal fim retinido a Câmara em 22 de Julho de 1613.

O Senhor D. Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra, ajudou muito, com seu infinito carinho, esta aspiração.

Parecendo ao Padre Provincial que para fundar em terra  / 56 / de Senhor bastavam as licenças dele, do Bispo e da Câmara, tanto que teve estas duas, procurou a outra e a pediu pessoalmente ao Duque de Aveiro D. Álvaro de Alencastre que a concedeu benignamente. Assim, foram para a vila muito virtuosos religiosos com o P.e frei Joseph de Jesus Maria, recolhendo-se nas casas escolhidas, que eram de Gil Homem da Costa, junto a S. Gonçalo.

Deram ao Convento o nome de Nossa Senhora do Carmo e começaram os Religiosos a exercitar a vida que sempre viveram, e os primeiros tempos tiveram pobreza, fome e miséria, mas estavam contentes.

Apesar de tanta resignação e humildade, tiveram inimigos que os acusaram de fundar sem licença, e, foram avisados de que não podiam continuar com a casa. As duas vilas, Aveiro e Esgueira, «impediram que o convento acabasse, com grandes instâncias, e a provisão foi recebida com muita alegria».

A humidade das casas afligia os religiosos, juntamente com outros males que só padecendo-os os conheceram, e por tal motivo mudaram para a rua de S. Paulo, junto a Sá.

Ainda aí os padres se sentiam mal porque as casas estavam velhíssimas. Era preciso começar com obras. Foi então que o P.e frei Domingos de St.º Ângelo pediu à Senhora Dona Brites de Lara e Meneses (a esse tempo recolhida no mosteiro de Jesus) para lhes emprestar umas Casas que aquela Senhora possuía, o que ela fez da melhor vontade e com a maior satisfação.

Trabalhavam os padres com entusiasmo, mas os recursos eram poucos e a pobreza afligia-os.

E, quando menos confiança havia de se acabar o convento começado, a Senhora D. Brites de Lara e Meneses, filha de D. Manuel de Meneses, duque de Vila Real(*) e mulher que foi de Dom Pedro de Medicis filho do Grão Duque de Florença, Conde de Medicis, tomou o seu padroado, e nele quiz repousar em paz na Morte. / 57 /

Esta Senhora, na escritura de contrato que fez, ordenou que por sua morte o padroado passasse ao herdeiro da casa de Vila Real; mas como esta casa se acabou ainda em sua vida, por morte do marquez seu irmão D. Luiz de Noronha e Meneses e de seu filho D. Miguel,(2) duque de Caminha, fez segunda escritura no mes de Fevereiro de 1648 em que declarava que não queria que parente algum ou herdeiro herdasse o padroado e que houvesse nelle em qualquer tempo outra memoria alem da sua.

Brasão que encima o túmulo de D. Brites de Lara e Meneses

Deitou a 1.ª pedra da igreja que hoje tem, o Padre frei Miguel da Madre de Deus. Assistiu ao deitar della a padroeira. Levava a pedra de Armas de sua Excelencia e um letreiro que declarava qual era a padroeira daquele convento, e qual era o / 58 / sumo pontifice e o Rey deste reyno no tempo que se começou aquela obra, a qual se acabou em extremada perfeição no ano de 1643.

Mais tarde, a Senhora D. Brites de Lara e Meneses quis fundar uma casa de religiosas(3). Pôs toda a sua influência ao serviço dessa ideia, mas as coisas não corriam à feição do seu desejo. Moveu dificuldades várias, mas não conseguiu destruir todos os entraves, e, essa contrariedade mortificava-a tanto, que a saúde se lhe ressentiu.

Esperava sempre, com ansiedade, que as licenças pedidas chegassem às suas mãos trémulas de impaciência. Mas tais notícias tardavam. Por isso, começou a entristecer e, se alguém adregava de lhe perguntar o que tinha, respondia invariavelmente:

«Estou doente de mal de correios».

Certo dia em que a tristeza lhe punha um véu mais denso no olhar, interrogou um dos padres que a visitava, sobre se eram chegadas algumas novas do que tão aflitivamente a interessava. Como lhe fosse respondido que era vindo o correio sem trazer a licença de EI-Rei, «fechou os olhos e sem mais palavra por espaço de dez horas, deu a alma ao Senhor em 4 de Junho de 1648».

Foram a seus paços buscar o corpo, ao qual acompanharam também os frades de S. Domingos e todos os clérigos.

O povo, piedosamente, seguia o fúnebre cortejo, e, em homenagem às virtudes manifestadas em vida, chamou-lhe a «mãe dos pobres, o amparo dos órfãos e viúvas, consolação de atribulados e remédio de afligidos».

Foi sepultada no sepulcro que à parte do Evangelho se levanta, formado de jaspes brancos, negros e vermelhos, lustrados e brunidos, que o fazem majestoso, mas nem assim, digno de tal Senhora, que para o ser pedia extremos de sumptuoso.

Do que fica escrito, apura-se que a Senhora D. Brites de Lara e Meneses não foi a fundadora do Convento do Carmo, mas sim a sua padroeira, título e honra que tanto lhe agradavam, que, por determinação sua, a mais ninguém poderia pertencer.

Parece-nos que seria útil, aos visitantes e aos estudiosos das nobres velharias da nossa terra, que a lápide a figurar junto / 59 / do túmulo da igreja do Carmo, contivesse uma informação mais completa e de molde a não estabelecer confusões. A legenda conveniente, talvez não ficasse mal assim redigida:

TÚMULO DE D. BRITES (ou BEATRIZ) DE LARA
E MENESES, PADROEIRA DESTE CONVENTO.
MORREU EM 4 DE JUNHO DE 1648.

CELESTE COSTA


BIBLIOGRAFIA

DAMIÃO DE GÓIS Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel Parte I

A. BRAAMCAMP FREIRE Brasões da Sala de Sintra

P.e BELCHIOR DE St.ª ANA Chrónica dos Carmelitas Descalços De como se fundou o Mosteiro de Nossa Senhora do Carmo na villa de Aveiro: e das contradições que teve.

MARQUES GOMES Memórias de Aveiro.

MARQUES GOMES Districto de Aveiro.

CONDE DE SABUGOSA Neves de Antanho.

CELESTE COSTA

____________________________________________
(1) Casou em 1520 e morreu cerca de 1541. 

(*) − MARQUES GOMES, nas Memórias de Aveiro, diz, a pág. 106: «D. Beatriz de Lara era primogénita de D. Manuel de Meneses, 3.º marquês e 1.º duque de Vila Real, por mercê de Filipe III, e de D. Maria da Silva, etc.». Ora o 3.º marquês de Vila Real foi D. Pedro de Menezes, o marido da primeira Beatriz de Lara de que tratamos, o qual com ela casou em 1520. O 5.º marquês de Vila Real é que foi o primeiro duque, por carta de 19 de Fevereiro de 1585, e se chamou D. Manuel de Menezes. Morreu em 1590.

Ainda outra coisa que gera confusão a quem se interessa por este assunto, é o facto de o mesmo autor e na mesma obra, a propósito do 1.º duque de Aveiro, dizer: ... casou com D. Beatriz de Lara, filha de D. Pedro de Meneses, 3.º marquês de Vila Real. O Duque casou com D. Juliana de Lara, filha daquela Senhora D. Beatriz de Lara e de D. Pedra de Menezes, 3.º marquês de Vila Real.  

(2) Decapitados em Agosto de 1641 por haverem tomado parte na conspiração contra D. João IV.

(3) O convento das Carmelitas foi o desejado por D. Brites de Lara, que tratou de conseguir as precisas licenças, mas faleceu sem as ter obtido. A isso se refere a Crónica dos Carmelitas.

 

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