JUNTO ao túmulo de mármore, que na
Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Aveiro, fica no lado do Evangelho, está uma pequena lápide, na qual se lê:
TÚMULO
DE
D. BEATRIZ
DE LARA
−−−
FUNDADORA
DESTE
CONVENTO
Beatriz de Lara! E
este nome trouxe-nos à memória a linda figurinha de
romance, que foi sorriso e encanto na corte de D. Manuel I.
Admirada por sua extraordinária beleza e alto espírito, cobiçada para noiva dos mais gentis e valorosos fidalgos, grandes de
Portugal, na época brilhante do Renascimento, em que tudo desperta num
clamor de vitória e criação
− esta rapariga, tão bela e tão inteligente,
soube brilhar e deixou um rasto de luz no ambiente e no tempo em que
viveu. Os poetas exaltaram-lhe a formosura, a «gentil presença» e as
trovas cantavam-lhe a graça e a frescura numa homenagem constante. O seu
sorriso foi uma tentação e o seu olhar um enigma atraente. Olhá-la era
admirá-la, era sentir-se preso e seduzido.
Sobrinha de EI-Rei,
um momento houve em que o herdeiro do trono se deixou prender e enfeitiçar também.
«Além de ser muito discreta, foi
uma das formosas, e bem
/ 54 / dispostas
mulheres, que em seu tempo houve nestes reinos, com as quais partes, e
nobreza de sangue, e bom dote que tinha» o que não obstou a que El Rei
achasse mais conveniente para a política do reino a aliança matrimonial
do príncipe com uma princesa de espanha.
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Túmulo de D. Brites de Lara e Meneses |
Tratou pois de a casar com o filho do marquês de Vila Real (mais tarde o
3.º marquês) insinuante rapaz recém-chegado a Lisboa, aureolado de glória,
gozando o prestígio que a
fama das façanhas de África conferiam
−
duplo título de nobreza para um
homem ser querido das mulheres do seu tempo. Desse enlace nasceu a que
mais tarde seria a primeira duquesa de
Aveiro.
Mas... basta de
devaneios; o nome de Beatriz de Lara os
inspirou. A verdade porém, é que o convento do Carmo é de
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fundação muito posterior à morte desta Senhora(1). Outra Beatriz de
Lara ali foi dormir o derradeiro sono.
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A grande nomeada que por toda a parte gozavam os frades carmelitas, que
em Coimbra tão bem doutrinavam e na Universidade tanto se distinguiam,
tornou-os conhecidos e desejados do bom povo da vila de Aveiro, a qual «entre as notáveis
deste reyno tem avantajado logar, por ser empório tão frequentado de
naos estrangeiras e naturaes que excede a muitos grandes e compete com
os maiores da nossa costa».
As pessoas que mais devotas da Ordem se mostravam, começaram «a agenciar
a sua fundação» ali, esperando, com o melhor interesse, ocasião
propícia. É nessa altura que passa
por Aveiro, a caminho do Porto, o Padre Provincial Fr. Bernardo de St.ª Maria, acompanhado pelo Reitor de Coimbra, frei Lourenço
da Madre de Deus. Recebidos carinhosamente em casa de Pero Tavares,
senhor de Mira (um dos que mais entusiasmo sentiam por o estabelecimento
dos carmelitas na vila e
mais esperava de seu alto exemplo e salutar virtude) da sua boca ouviram
uma larga prática, com que pretendeu persuadir o Padre Provincial que
fundasse um mosteiro ali, onde a bondade e capacidade da terra oferecia
grandes comodidades para seu modo de vida e instituto; por ser tão aprazível sítio, tão temperado no clima, tão mimoso de frutas e pescaria e finalmente tão
provida de tudo o necessário para sustento da vida humana que
de todos os que têm experiência da sua abundância e barateza de
mantimentos se faz sobre estimada apetecida.
O Provincial mostrou-se inclinado a aceder, e continuou a
sua viagem, deixando em Aveiro o seu Secretário e o Padre
Félix, para convenientemente estudarem o assunto, investigarem se
haveria local apropriado e verem se os vereadores aceitavam
de bom grado a fundação. Estes não puseram obstáculo, e, aIguns locais lhe pareceram bons.
O Padre Provincial regressou desanimado do Porto, perdida a coragem de
lá instalar a Ordem, «sem tirar da jornada
mais que voltar para Coimbra muito doente». Por tudo isto tratou de alcançar, para Aveiro, a licença do Definitório Geral,
mas não a conseguiu porque guardou Deus esta ventura para seu sucessor o
Padre frei Miguel da Virgem. Logo que este foi eleito Provincial, obteve
as licenças necessárias, tendo-se para tal fim
retinido a Câmara em 22 de Julho de 1613.
O Senhor D. Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra,
ajudou muito, com seu infinito carinho, esta aspiração.
Parecendo ao Padre Provincial que para fundar em terra
/ 56 / de Senhor bastavam as licenças dele, do Bispo e da Câmara,
tanto que teve estas duas, procurou a outra e a pediu pessoalmente
ao Duque de Aveiro D. Álvaro de Alencastre que a concedeu benignamente.
Assim, foram para a vila muito virtuosos religiosos
com o P.e frei Joseph de Jesus Maria, recolhendo-se nas casas
escolhidas, que eram de Gil Homem da Costa, junto a S. Gonçalo.
Deram ao Convento o nome de Nossa Senhora do Carmo
e começaram os Religiosos a exercitar a vida que sempre viveram, e os primeiros tempos tiveram pobreza, fome e miséria, mas estavam
contentes.
Apesar de tanta resignação e humildade, tiveram inimigos
que os acusaram de fundar sem licença, e, foram avisados de que não
podiam continuar com a casa. As duas vilas, Aveiro e
Esgueira, «impediram que o convento acabasse, com grandes
instâncias, e a provisão foi recebida com muita alegria».
A humidade das casas afligia os religiosos, juntamente com
outros males que só padecendo-os os conheceram, e por tal motivo
mudaram para a rua de S. Paulo, junto a Sá.
Ainda aí os padres se sentiam mal porque
as casas estavam velhíssimas.
Era preciso começar com obras. Foi então que o P.e frei Domingos de
St.º Ângelo pediu à Senhora Dona Brites de Lara e Meneses (a esse tempo
recolhida no mosteiro de
Jesus) para lhes emprestar umas Casas que aquela Senhora
possuía, o que ela fez da melhor vontade e com a maior satisfação.
Trabalhavam os padres com entusiasmo, mas os recursos eram poucos e a
pobreza afligia-os.
E, quando menos confiança havia de se acabar o convento começado,
a
Senhora D. Brites de Lara e Meneses, filha de
D. Manuel de Meneses, duque de Vila Real(*) e mulher que
foi de Dom Pedro de Medicis filho do Grão Duque de Florença, Conde de Medicis,
tomou o seu padroado, e nele quiz repousar
em paz na Morte.
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57 /
Esta Senhora, na escritura de contrato que fez, ordenou
que por sua morte o padroado passasse ao herdeiro da casa de
Vila Real; mas como esta casa se acabou ainda em sua vida, por
morte do marquez seu irmão D. Luiz de Noronha e Meneses e de seu filho
D. Miguel,(2) duque de Caminha, fez segunda escritura
no mes de Fevereiro de 1648 em que declarava que não queria que parente
algum ou herdeiro herdasse o padroado e que houvesse nelle em qualquer tempo outra memoria alem da sua. |
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Brasão que encima o túmulo de D. Brites de Lara e Meneses |
Deitou a
1.ª pedra da igreja que hoje tem, o Padre frei
Miguel da Madre de Deus. Assistiu ao deitar della a padroeira.
Levava a pedra de Armas de sua Excelencia e um letreiro que
declarava qual era a padroeira daquele convento, e qual era o
/
58 / sumo pontifice e o Rey deste reyno no tempo que se começou
aquela obra, a qual se acabou em extremada perfeição no ano
de 1643.
Mais tarde, a Senhora D. Brites de Lara e Meneses quis
fundar uma casa de religiosas(3). Pôs toda a sua influência ao
serviço dessa ideia, mas as coisas não corriam à feição do seu
desejo. Moveu dificuldades várias, mas não conseguiu destruir todos os
entraves, e, essa contrariedade mortificava-a tanto, que
a saúde se lhe ressentiu.
Esperava sempre, com ansiedade, que as licenças pedidas
chegassem às suas mãos trémulas de impaciência. Mas tais notícias tardavam. Por isso, começou a entristecer e, se alguém
adregava de lhe perguntar o que tinha, respondia invariavelmente:
«Estou doente de mal de correios».
Certo dia em que a tristeza lhe punha um véu mais denso
no olhar, interrogou um dos padres que a visitava, sobre se
eram chegadas algumas novas do que tão aflitivamente a interessava. Como
lhe fosse respondido que era vindo o correio sem
trazer a licença de EI-Rei, «fechou os olhos e sem mais palavra
por espaço de dez horas, deu a alma ao Senhor em 4 de Junho de 1648».
Foram a seus paços buscar o corpo, ao qual acompanharam
também os frades de S. Domingos e todos os clérigos.
O povo, piedosamente, seguia o fúnebre cortejo, e, em homenagem às
virtudes manifestadas em vida, chamou-lhe a
«mãe dos pobres, o amparo dos órfãos e viúvas, consolação de
atribulados e remédio de afligidos».
Foi sepultada no sepulcro que à parte do Evangelho se levanta, formado de jaspes brancos, negros e vermelhos, lustrados
e brunidos, que o fazem majestoso, mas nem assim, digno de tal
Senhora, que para o ser pedia extremos de sumptuoso.
Do que fica escrito, apura-se que a Senhora D. Brites de
Lara e Meneses não foi a fundadora do Convento do Carmo,
mas sim a sua padroeira, título e honra que tanto lhe agradavam, que, por determinação sua, a mais ninguém poderia
pertencer.
Parece-nos que seria útil, aos visitantes e aos estudiosos
das nobres velharias da nossa terra, que a lápide a figurar junto
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59 /
do túmulo da igreja do Carmo, contivesse uma informação mais
completa e de molde a não estabelecer confusões. A legenda
conveniente, talvez não ficasse mal assim redigida:
TÚMULO DE D. BRITES (ou BEATRIZ) DE LARA
E MENESES, PADROEIRA DESTE
CONVENTO.
MORREU EM 4 DE JUNHO DE 1648.
CELESTE COSTA
BIBLIOGRAFIA
DAMIÃO DE GÓIS
−
Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel
−Parte I
A. BRAAMCAMP FREIRE
−
Brasões da Sala de Sintra
P.e BELCHIOR DE
St.ª ANA
−
Chrónica dos Carmelitas Descalços
−
De como se
fundou o Mosteiro de Nossa Senhora do Carmo na villa de Aveiro: e das
contradições que teve.
MARQUES GOMES
−
Memórias de Aveiro.
MARQUES GOMES
−
Districto de Aveiro.
CONDE DE SABUGOSA
−
Neves de Antanho.
CELESTE COSTA |