Examinado o processo de habilitação de António dos Santos, do Viveiro,
datado, como dissemos, de 1722, vejamos agora o que consta da diligência
de DOMINGOS ANTÓNlO RODRIGUES, que tem o n.º 576 e se
encontra no maço n.º 31 da respectiva secção do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo
(1).
Domingos António Rodrigues nascera nas Ribas da Picheleira, freguesia do Salvador, de
Ílhavo, onde foi baptizado, em
1695 (Liv. respect.º, fl. 55); era filho legítimo de Manuel Francisco, lavrador, e de Maria Manuel, naturais da mesma localidade, onde casaram em 29 de Abril de 1694; foram seus avós paternos
António Roiz, barbeiro, natural de Verdemilho, e Isabel Miguéis, das Ribas da Picheleira; por sua mãe, era neto de
António Manuel, lavrador, natural da freguesia de S. Miguel, da
Vila de Soza, e de Antónia João, da Coitada de Ílhavo.
À data da habilitação para familiar do Santo Ofício, Domingos António Rodrigues era cirurgião aprovado e morava em
Lisboa, bairro ocidental, na Rua da Sombreiraria, freguesia de
S. Nicolau; tinha já contraído matrimónio, e forçoso foi inquirir-se também
de genere de sua esposa; chamava-se esta Isabel
Maria, e era natural de Cela, termo de Alcobaça, onde foi
baptizada em 21 de Março de 1693; seu pai chamava-se Manuel
Murteira e sua mãe Isabel da Costa, ambos naturais de Cela;
desta localidade eram igualmente seus quatro avós: os paternos,
Manuel Murteira e Catarina Marques; maternos, André Lopes e Antónia da
Costa.
Que romance se oculta no registo deste casamento é ponto
/
312 /
que dificilmente se poderá, já agora, conhecer; sabemos apenas que se
realizou em Lisboa, a 25 de Janeiro de 1719, e que o noivo se
encontrava, na ocasião, preso no Aljube (consta dos registos da
freguesia de S. Julião, a fl. 190).
Para a habilitação, o Santo Ofício inquiriu, como de costume, abundante
lista de testemunhas, que merece a pena registar, pois, como dissemos,
os respectivos nomes são outros tantos elementos para o conhecimento do
onomástico local e das profissões ao tempo.
Por parte do habilitando, depuseram: João Francisco Pereira, lavrador,
de Alqueidão, de cerca de 70 anos; Domingos António Donado, familiar do
Santo Ofício, de Alqueidão, de cerca de 78 anos; Maria André, viúva de
Braz Domingues, lavrador, natural de Ílhavo, de cerca de 71 anos; Maria
Miguéis, viúva de Domingos da Silva, tanoeiro, de Ribas da Picheleira,
de cerca de 90 anos; Manuel João da Fragosa, lavrador, da Coitada, de
cerca de 60 anos; Manuel Barelho, lavrador, do Cabeço
da Coitada, de cerca de 60 anos; Inácio António dos Santos, de Ribas do
Viveiro, lavrador, de cerca de 70 anos; João André Brana, marnoto, do
Cabeço da Coitada, de cerca de 70 anos; António da Silva, lavrador, da
Coitada, de cerca de 71 anos; Maria Manuel, viúva de João Baptista,
ferreiro, de Alqueidão, de cerca de 70 anos; Manuel Martins, sapateiro,
de Verdemilho, de cerca de 70 anos; Jacinto Manuel, lavrador, de Verde
milho, de cerca de 70 anos; Veríssimo Nunes, lavrador, de Verdemilho,
de cerca de 70 anos; Manuel Simões, lavrador, da Cardosa de Verdemilho,
de cerca de 70 anos; Maria Francisca, mulher de Jacinto Manuel,
lavrador, de Verdemilho, de cerca de 75 anos; Antónia da Rocha, mulher
de Manuel André, alfaiate, de
Alqueidão, de cerca de 70 anos; Antónia dos Santos, viúva de Manuel
Francisco, de alcunha «Briguigam», lavrador, da Coitada, de cerca de 86
anos; João dos Santos, da Alagoa, lavrador, de cerca de 70 anos; Maria
Simões, viúva de Domingos Francisco, lavrador, da Coitada de Ribas da
Picheleira, de cerca de 70 anos; João Lopes, lavrador, de Salgueiro, São
Miguel de Soza, de cerca de 80 anos; Luiz André, viúvo, lavrador, de
Salgueiro, de cerca de 82 anos; André Lopes, viúvo, lavrador, de
Salgueiro, de cerca de 85 anos; António Simões, lavrador, de Salgueiro,
de cerca de 70 anos.
As testemunhas foram contestes em afirmar a limpeza do sangue e os bons
costumes do ilhavense Domingos António Rodrigues; como uma delas, Inácio
António dos Santos, tivesse informado que o P.e António Leite, que fora
para o Porto, era filho duma irmã de António Roiz, avô paterno do
habilitando, a Inquisição desejou saber se de facto assim era, ou qual o
grau de parentesco entre o tal P.e António Leite, que tinha sido capelão
da Misericórdia do Porto, e o cirurgião Domingos António Rodrigues.
/ 313 /
[Vol. III - N.º 12 - 1937]
Afinal não foi possível averiguar nada, e os inquiridores contentaram-se
com os restantes depoimentos.
Um dos comissários do Santo Ofício, Manuel Simões, informou-se na
vila de Linhares acerca do 3.º avô paterno do habilitando, Manuel Raiz,
que se havia ausentado da terra para Lisboa; um irmão deste, sacristão
e, ao que parece, notável músico, fixara-se no Alentejo; eram filhos dum
proprietário que vivia do amanho de suas fazendas, inteiro cristão-velho.
Esse 3.º avô Manuel Roiz, no entanto, passava em S. Pedro de Aradas por
infamado, como verificou José Pereira Homem, que no processo relata
porquê. Fora o caso que em Verdemilho apareceu um homem morto e
despedaçado, e correu então que o assassino teria sido Manuel Roiz, e
que era, decerto, judeu quem tal tirania cometera.
Nada se provou, tendo-se verificado, antes, que os antepassados do
cirurgião Domingos António Rodrigues foram sempre tementes a Deus, e que
a fama lançada em Aradas era falsa.
Aquele suspeito Manuel Roiz, afinal, reabilitado, viera de Linhares e
casara com Isabel Manuel, natural de Verdemilho; desse casamento nascera
então Filipa Rodrigues, mulher que foi de Domingos Francisco, da Vila do
Botão; estes vieram a ser os pais do barbeiro António Roiz, avô paterno
do habilitando.
Por parte da mulher de Domingos António Rodrigues depuseram como
testemunhas o P.e João Marques, de cerca de 55 anos; Domingos de Afonseca, lavrador, de
cerca de 66 anos; João Marques, o velho, oficial
de alfaiate, de cerca de 80 anos; António Rebelo, oficial de tanoeiro,
de cerca de 55 anos; Lourenço de Almeida, lavrador, de cerca de 65 anos;
Manuel de Abreu, oficial de tanoeiro, de cerca de 75 anos; João Queires,
lavrador, de cerca de 100 anos; Manuel Rodrigues de Aguiar, de cerca de
77 anos; João Rebelo, oficial de tanoeiro, de cerca de 70 anos; António
de Macedo, Alferes de Ordenanças, de cerca de 70 anos também; Máxima da
Cunha, viúva de Francisco Heitor, de cerca de 75 anos; Luísa de Sousa
«mulher donzela», filha de António de Sousa, de cerca de 80 anos.
Eram todas naturais de Cela, à excepção do Alferes de Ordenanças, que
nascera em Nossa Senhora da Ajuda mas residia em Cela, donde, como
vimos, era natural a mulher do habilitando; do depoimento das
testemunhas nada consta contra esta, ou sua ascendência; daí não vinha
impedimento à pretensão do requerente.
Verificado, portanto, que o cirurgião vivia limpa e abastadamente e que
era homem capaz de segredo, como declarou o
Comissário Manuel Alves Souto, verificada a falsidade da fama
que correra contra o 3.º avô paterno, foram as diligências aprovadas pelos deputados António Ribeiro de Abreu, Inácio de
/
314 /
Cabedo e Vasconcelos, António G. Alves, e João Álvares
Soares.
A carta tem a data de 13 de Abril de 1739, o que condiz com o índice dos
diplomas registados na Câmara de Ílhavo a que nos referimos, e que
constituiu o nosso fio condutor para este inocente bisbilhotar acerca de
ilhavenses familiares do Santo Ofício, assunto em que
iremos prosseguindo.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
|