A
HISTÓRIA da fundação, desenvolvimento e vida inicial do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, da Ordem de
S. Domingos, tem por base um antigo códice membranáceo, escrito, segundo parece, no próprio Convento,
de cujo espólio transitou, após a implantação da República e a criação
do Museu de Arte de Aveiro, para as colecções desta
magnífica instituição, a que presentemente pertence.
Ocupa considerável parte do referido códice a narração da
emocionante vida de piedade da filha de D. Afonso V, que no
silêncio do Mosteiro voluntariamente encerrou e deixou extinguir a luz
esmeraldina dos seus olhos garços.
Utilizaram directamente o códice os grandes cronistas do
Mosteiro e da Infanta, como FR. NICOLAU DIAS, FR. JERÓNIMO
ROMAN, FR. LUÍS DE SOUSA, D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, FERNANDO CORREIA DE LACERDA, FR.
LUCAS DE SANTA CATARINA, afora
ainda outros; conheceram-no também JOÃO PEDRO RIBEIRO e MARQUES GOMES;
mais historiadores se lhe referem, sem contudo
acusarem conhecimento directo do venerando texto, que é, cronologicamente, um dos últimos que a Idade Média
à historiografia monástica inspirou.
Todavia, apesar
de tão largamente extratada, a crónica
manteve-se, até hoje, inédita no seu conjunto.
Conhecendo a sua incontestável importância histórica e
elevado merecimento filológico, tentei, de há muito, a sua
publicação integral; copiei-a, assim, em 1928, por incumbência
da Imprensa da Universidade de Coimbra, que ajustara comigo
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publicá-la numa série de textos arcaicos, o que, todavia, nunca
realizou; cedi, depois, a cópia, que recolhi quando em
1934 a Imprensa foi extinta, a uma empresa da Capital, que incluiu a
publicação no seu programa e a anunciou; também desta vez o tempo foi
passando sem que alguém quebrasse o encanto da velha crónica...
Surge, entretanto, o
Arquivo do Distrito de Aveiro a impulsionar os estudos históricos na região e a congregar boas vontades
dispersas; logo nova combinação se estabelece, desta vez segura e
insofismável: os encargos da edição foram tomados, generosa e
desinteressadamente, pelo Sr. Dr. Ferreira Neves, inteligente gesto de
exemplar bairrismo; e todos os trabalhos de leitura, revisão e aparato
explicativo continuaram a
cargo exclusivo de quem esta notícia subscreve, como já para a cópia de
1928 havia sido combinado.
E foi assim que se imprimiu, finalmente, neste ano da Graça de 1937, a
belíssima Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e da
Infanta St.ª Joana, filha do Rei D. Afonso V, podendo agora o público
dispor dum volume, sob todos os aspectos acessível, com a reprodução do
famoso códice.
A presente notícia, acompanhando dois capítulos
dele, tem por
fim tornar conhecida a edição e as condições em que foi realizada.
Digamos por isso, sumariamente apenas, o que é o importante livro; no
prefácio da edição se pormenorizam os seus caracteres diplomáticos como
convém.
Compõe-se o precioso volume de 161 folhas de pergaminho da terra, com
preparo grosseiro, regradas a seco, muito discretamente, e escritas dos
dois lados, a duas colunas de 34 linhas em média; cadernos de 4 fIs.
duplas, com chamada de caderno para caderno, unicamente, e numerados, à
cabeça da 1.ª folha de cada um, com algarismos romanos; a isto juntaram
mais tarde, no século XVIII, 22 folhas complementares de papel narrando
sucessos subsequentes.
As folhas não receberam
chamada nem assinatura.
Medem presentemente 297 x 209 mm; e a
mancha de cada
coluna 205 x70.
A encadernação actual prejudicou algum tanto a primitiva numeração,
que era de algarismos árabes, como veio a ser a segunda.
Capitais a
vermelhão; maiúsculas tocadas, por vezes, de amarelo; caligrafia muito uniforme, notando-se, contudo, mesmo na parte
primitiva, a presença de leves variantes; por fim, as continuações, são
evidentemente de várias mãos.
Solidamente encadernado em pastas de madeira cobertas de
carneira ornamentada a ferros secos ao gosto do século XVI, o códice
apresenta-se marcado com o N.º 872 que na biblioteca do convento havia
recebido; não sendo razoável de supor a
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existência de 872 volumes manuscritos na casa, interpretamos
aquela numeração como extensível a documentos avulsos
−
membranáceos e cartáceos
−
e a códices, pois em cerca de dois
centos de avulsos, que da mesma proveniência conhecemos,
temos encontrado marcação semelhante e no mesmo tom desbotado de tinta cor de rosa.
O antigo cartório do Mosteiro é hoje impossível de reconstituir; mais de três quartas partes do seu recheio se extraviaram
e se devem, infelizmente, considerar perdidas.
É atribuída a autoria da crónica, na sua parte fundamental,
à irmã MARGARIDA PINHEIRO, sobrinha do P.e Fr. João de Guimarães, Prior do Mosteiro de Santa Maria da Misericórdia, de
Aveiro, religioso de bom conselho e provada ilustração, que
orientara os primeiros passos do novo Recolhimento.
Uma verba do capítulo intitulado «Memoryal de todas as Religiosas que
ffezerõ proffissom Neste Moesteyro de Jhesu Nosso
Senhor. E em que anno . E mes» regista a profissão de três sobrinhas de Fr. João dizendo:
Ho ãno do Senhor de Myl quatrocentos . sessenta e sete . lancarom ho avyto a tres sobrinhas do padre frey Joham de guimaraães . a saber . Marguarida pinheyra . E a sua lrmãa Catherina
Pinheyra . E a ynes eanes prima destas.
O nome de MARGARIDA PINHEIRO está sublinhado com tinta mais
recente, e à margem, em tinta igual, foi lançada, no século XVII
ou XVIII, uma cota que diz: esta escreveo a vida da Princeza St.ª.
Daqui, apenas, se presume a autoria da crónica; que é de
mão feminina, alcança-se pela especial redacção, delicadíssima,
de particular emoção até, que determinados passos receberam; dirigindo-se à indulgência do leitor, desculpa-se também, quem
compôs a crónica, dizendo: Nõ seria eu lndina presumir declarar
as docirinas e fallas suas ë
[Onde se
encontrar um trema deverá considerar-se um til]
estes autos... Conffeso sã prolixa (fis.
20 v b e 21 r a); a autora invoca ainda, por vezes, o testemunho da
sua própria presença em situações cuja intimidade a regra e o
recolhimento do Mosteiro não consentiam que se desenrolasse
perante olhares estranhos; registemos, para exemplificar, entre
várias outras, a declaração de fl. 110 r b, no capítulo final da
vida da Infanta:
certyjico e afyrmo ante ho Senhor deus e ante toda pessoa que
a leer e ouvyr . todo ser verdadeyra verdade . e scrycto per quë vio
a mayor parte. E ouvio da boca de pessoas de muita virtude . verdade e actoridade . que assy meesmo ho vyrã e pratycarã.
Houve, contudo, forçosamente, vários informadores, nem douta forma se compreende,
pois ao mesmo espectador não
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era possível estar simultaneamente nos diversos lugares em que as acções
iam decorrendo...
À erudição teológica
que por vezes irrompe do singelo
texto talvez não tenha sido alheio o próprio Fr. João de Guimarães; mas
de positivo nada podemos avançar.
De MARGARIDA PINHElRO, a indigitada autora, sabe-se, pelo
texto da crónica, a data em que entrou no Mosteiro e que idade tinha; em
Fevereiro de 1467 a Prioresa D. Beatriz Leitão Recebeo e lancou entõ ho avyto a algüas quaes
forõ tres sobrynhas do padre frey Johã de guimaraães mocas aynda. Hüa
de dez annos chamada Ines eanes. E outra de Seys . a que chamavã margaryda Pinheyra E hüa sua Irmãa mynyna de
tres ânos chamada
Catheryna Pinheyra. (fl. 29 v a).
A avaliar por isto, terá nascido em 1461.
Exerceu o cargo de sacristã e foi criada da Infanta (fls. 90
v b, 100 r b, 100 v b).
Teria, portanto, 29 anos à data do falecimento desta, ocorrido em 12 de
Maio de 1490, e podia bem ter sido testemunha
presencial de muitos sucessos que narra, se, de facto, foi ela a autora,
o que me não parece absolutamente provado.
MARGARIDA PINHEIRO acompanhou a Infanta quando em 27 de
Setembro de 1479 saiu de Aveiro, fugida à peste intensa que assolava o lugar (fls. 33 v a e 38 r a); voltaram em Agosto de 1480;
e em 1481, em Agosto também, dia de St.º Agostinho, MARGARlDA
PINHEIRO fazia a sua profissão (fl. 117 r b); teria então 20 anos.
A crónica não está datada nem se pode dizer com segurança quando foi escrita; começando por se reportar aos últimos
anos da primeira metade do século XV, a breve trecho (fl. 17)
alude ao falecimento da Infanta, que promete adiante contar; ora como
este facto se deu em 1490, não foi o texto composto antes dessa data; a
caligrafia da 1ª e da 2ª parte da crónica mantém-se também, no memorial
das religiosas que professaram, até às profissões de 1554; só daí por
diante a relação passa a outras mãos.
Mas autora e escrivã terão sido uma e a mesma pessoa?
O exame dos caracteres diplomáticos do códice levam-nos à
suposição de que um outro o tenha precedido; basta atentar na divisão do
códice em capítulos determinados, cujas epígrafes se traçaram antes de
qualquer deles ser escrito, donde resultou ficarem em branco
numerosas folhas por se não haver calculado
bem a extensão da cópia; mais: com letra uniforme, do mesmo
punho, se registaram sucessos entre os quais mediaram largos anos;
copiou-se, pois, em 1554, ou passou-se a limpo, uma primitiva minuta,
talvez pouco posterior a 1490, acrescentada com o registo das
religiosas, minuta que, aliás, se não conhece.
Nenhuma indicação existe também de quem tenha escrito
estas dezenas de folhas de pergaminho, bem caligrafadas,
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aliás, embora sem primores de ornamentação, como ainda então era uso.
Distribuem-se as matérias do seguinte modo:
FI. 1
− |
Em este Livro he scrito e se contem ho nacimëto prïcipio e
fundamëto deste moesteyro e Casa de lhesu nosso Senhor desta villa de
aveyro que pessoas ho fundarõ nos hediffiçios e Casa, etc
−
(até à fl,
44). |
|
|
FI. 48
− |
Segue sse em breve ho Memorial . da muito excellente Princessa .
E muito virtuosa Senhora, ha Senhora Iffante dona lohanna nossa Senhora .
ffilha do muy Catholyco e cristianissymo Rey . dom affomso . quinto. E da Senhora Rainha dona Isabell sua molher
−
(até à fl.
110, v.º). |
|
|
FI. 113
− |
Memoryal das cousas santas que foram da dita excellente
princessa e muito virtuosa Senhora . ha Senhora Iffante dona lohanna
−
(termina nessa mesma folha). |
|
|
FI. 115
− |
Memoryal de todas as Religiosas que
ffezerõ proffissom Neste
Moesteyro de lhesu Nosso Senhor, E em que anno . E mes
−
(até à fl. 140,
mas acrescentado por várias mãos). |
|
|
FI. 143
− |
Memoryal das Madres E Irmãas que nesta Casa de Nosso Senhor
lhesu jfallecerom. a saber. Ho anno E tenpo ë que desta vida presente sse foram
pera a gloria eternall
−
até à fl. 149, mas acrescentado por
várias mãos). |
|
|
FI. 151
− |
Titulo das servidoras E do tëpo que em este santo Carramento
entrarõ a sservir E ajudar as Religiosas deste moesteyro de lhesu nosso
Senhor
−
(termina nessa mesma folha). |
|
|
FI. 151 vº
− |
Escritura de doasão que o excellentissimo Senhor duque de
aveiro mandou a Santa prinseza com os alampádarios (séc. XVIII; até à
fl.
155). |
|
|
FI. 156 vº
− |
[notícias sobre a devoção do Duque de Aveiro pela memória da Infanta] (séc. XVIII; até à
fl. 157). |
|
|
FI. 161
− |
Título das servidoras que nesta Casa dëtro falleceram
−
(termina
nessa mesma folha). |
Seguem-se depois os acrescentos, do século XVIII, à crónica primitiva,
escritos em papel. Ocupam 21 folhas.
Tudo é transcrito na nossa edição.
/ 214 /
Os capítulos que seguidamente reproduzimos ocupam no
original as folhas 73 v b a 77 r a; refere, o primeiro, o incidente ocorrido no Convento de Jesus de
Aveiro entre a Infanta
e seu irmão quando este tomou conhecimento da profissão por
ela feita, impossibilitando assim o casamento político que ao país
então convinha; o outro conta a doença e provações que o seu
grande ânimo e anseio de martírio alegremente suportaram.
São dois trechos de boa prosa portuguesa, de ingénuo e
vigoroso realismo, onde a sociedade medieval nitidamente se
reflecte.
Como ho princepe seu Irmãao da dita Senhora Iffante nossa Senhora soube
que ella tinha tomado ho avyto da santa Religiã . Como lyam Ruginte se
assanhou fortemête . cobryndo sse de doo e barba: ([ Fallou... ...
... ... ...
NOTA - Em virtude de não ser possível reproduzir em html o texto, devido
a notações léxicas não permitidas pelos sistemas informáticos, as
páginas 214 a 219 vão reproduzidas em formato PDF.
TEXTO EM PDF
[1,3 MB]
/ 219 /
Resta alguma coisa dizer quanto ao processo de transcrição que adoptámos
na nossa edição.
Como era essencial conservar todo o interesse filológico que o texto
apresenta, respeitou-se a sua forma o mais possível; apenas, para o
tornar acessível ao leitor não especializado, desdobraram-se as abreviaturas; e quando ocorriam i i e u u com
valor de consoante, assim se transcreveram; paralelamente,
transcreveu-se o j e o v por i e por u quando na palavra o seu valor era
este.
Separaram-se palavras indevidamente ligadas, e uniram-se
sílabas impropriamente separadas.
A isto se reduziu a nossa intervenção.
O desdobramento das abreviaturas não vai feito a itálico,
como deve ser e nós usamos, por uma razão de considerar; a
/ 220 /
edição não é oficialmente subsidiada, o que equivale a dizer que
há necessidade de ser vendida; ora o desdobramento das abreviaturas em itálico dá à palavra um aspecto rebarbativo que
assusta o leitor e afasta o comprador; desdobrámos, portanto, em redondo, também.
|
Convento de Jesus, de Aveiro, tal como chegou aos
nossos dias.
Nele se encontra instalado o Museu de Arte, continuando, porém, a
celebrar-se o culto na respectiva igreja [cuja entrada se vê no canto
inferior direito].
(Substituímos a
imagem da publicação pelo postal fotográfico de onde foi obtida,
existente no espólio Morais Sarmento) |
Se o nome do copista é penhor de alguma confiança, o filólogo
trabalhará com o texto sem receio de que erros graves
se tenham deixado passar; se é desconhecido ou não, oferece
garantia, não era por desdobrar em itálico que se acreditava, e
a dúvida existiria sempre.
Trabalhando com o maior cuidado e escrúpulo, creio ter
conseguido conciliar o justo interesse do editor com o respeito devido à
pureza do texto.
Nem doutra forma me abalançaria a trazer a público tão
precioso códice como é a Crónica da fundação do Mosteiro
de Jesus, de Aveiro, e da Infanta St.ª Joana, filha deI Rei
D. Afonso V.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
|