A. G. da Rocha Madahil, Breve notícia da crónica da fundação do mosteiro de Jesus, de Aveiro, e da ..., Vol. III, pp. 209-220.

BREVE NOTÍCIA DA CRÓNICA DA FUNDAÇÃO DO MOSTEIRO

DE JESUS, DE AVEIRO, E DA INFANTA ST.ª JOANA,

FILHA DEL REI D. AFONSO V

A HISTÓRIA da fundação, desenvolvimento e vida inicial do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, da Ordem de S. Domingos, tem por base um antigo códice membranáceo, escrito, segundo parece, no próprio Convento, de cujo espólio transitou, após a implantação da República e a criação do Museu de Arte de Aveiro, para as colecções desta magnífica instituição, a que presentemente pertence.

Ocupa considerável parte do referido códice a narração da emocionante vida de piedade da filha de D. Afonso V, que no silêncio do Mosteiro voluntariamente encerrou e deixou extinguir a luz esmeraldina dos seus olhos garços.

Utilizaram directamente o códice os grandes cronistas do Mosteiro e da Infanta, como FR. NICOLAU DIAS, FR. JERÓNIMO ROMAN, FR. LUÍS DE SOUSA, D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, FERNANDO CORREIA DE LACERDA, FR. LUCAS DE SANTA CATARINA, afora ainda outros; conheceram-no também JOÃO PEDRO RIBEIRO e MARQUES GOMES; mais historiadores se lhe referem, sem contudo acusarem conhecimento directo do venerando texto, que é, cronologicamente, um dos últimos que a Idade Média à historiografia monástica inspirou.

Todavia, apesar de tão largamente extratada, a crónica manteve-se, até hoje, inédita no seu conjunto.

Conhecendo a sua incontestável importância histórica e elevado merecimento filológico, tentei, de há muito, a sua publicação integral; copiei-a, assim, em 1928, por incumbência da Imprensa da Universidade de Coimbra, que ajustara comigo / 210 / publicá-la numa série de textos arcaicos, o que, todavia, nunca realizou; cedi, depois, a cópia, que recolhi quando em 1934 a Imprensa foi extinta, a uma empresa da Capital, que incluiu a publicação no seu programa e a anunciou; também desta vez o tempo foi passando sem que alguém quebrasse o encanto da velha crónica...

Surge, entretanto, o Arquivo do Distrito de Aveiro a impulsionar os estudos históricos na região e a congregar boas vontades dispersas; logo nova combinação se estabelece, desta vez segura e insofismável: os encargos da edição foram tomados, generosa e desinteressadamente, pelo Sr. Dr. Ferreira Neves, inteligente gesto de exemplar bairrismo; e todos os trabalhos de leitura, revisão e aparato explicativo continuaram a cargo exclusivo de quem esta notícia subscreve, como já para a cópia de 1928 havia sido combinado.

E foi assim que se imprimiu, finalmente, neste ano da Graça de 1937, a belíssima Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e da Infanta St.ª Joana, filha do Rei D. Afonso V, podendo agora o público dispor dum volume, sob todos os aspectos acessível, com a reprodução do famoso códice.

A presente notícia, acompanhando dois capítulos dele, tem por fim tornar conhecida a edição e as condições em que foi realizada.

Digamos por isso, sumariamente apenas, o que é o importante livro; no prefácio da edição se pormenorizam os seus caracteres diplomáticos como convém.

 

Compõe-se o precioso volume de 161 folhas de pergaminho da terra, com preparo grosseiro, regradas a seco, muito discretamente, e escritas dos dois lados, a duas colunas de 34 linhas em média; cadernos de 4 fIs. duplas, com chamada de caderno para caderno, unicamente, e numerados, à cabeça da 1.ª folha de cada um, com algarismos romanos; a isto juntaram mais tarde, no século XVIII, 22 folhas complementares de papel narrando sucessos subsequentes.

As folhas não receberam chamada nem assinatura.

Medem presentemente 297 x 209 mm; e a mancha de cada coluna 205 x70.

A encadernação actual prejudicou algum tanto a primitiva numeração, que era de algarismos árabes, como veio a ser a segunda.

Capitais a vermelhão; maiúsculas tocadas, por vezes, de amarelo; caligrafia muito uniforme, notando-se, contudo, mesmo na parte primitiva, a presença de leves variantes; por fim, as continuações, são evidentemente de várias mãos.

Solidamente encadernado em pastas de madeira cobertas de carneira ornamentada a ferros secos ao gosto do século XVI, o códice apresenta-se marcado com o N.º 872 que na biblioteca do convento havia recebido; não sendo razoável de supor a / 211 / existência de 872 volumes manuscritos na casa, interpretamos aquela numeração como extensível a documentos avulsos membranáceos e cartáceos e a códices, pois em cerca de dois centos de avulsos, que da mesma proveniência conhecemos, temos encontrado marcação semelhante e no mesmo tom desbotado de tinta cor de rosa.

O antigo cartório do Mosteiro é hoje impossível de reconstituir; mais de três quartas partes do seu recheio se extraviaram e se devem, infelizmente, considerar perdidas.

 

É atribuída a autoria da crónica, na sua parte fundamental, à irmã MARGARIDA PINHEIRO, sobrinha do P.e Fr. João de Guimarães, Prior do Mosteiro de Santa Maria da Misericórdia, de Aveiro, religioso de bom conselho e provada ilustração, que orientara os primeiros passos do novo Recolhimento.

Uma verba do capítulo intitulado «Memoryal de todas as Religiosas que ffezerõ proffissom Neste Moesteyro de Jhesu Nosso Senhor. E em que anno . E mes» regista a profissão de três sobrinhas de Fr. João dizendo:


Ho ãno do Senhor de Myl quatrocentos . sessenta e sete . lancarom ho avyto a tres sobrinhas do padre frey Joham de guimaraães . a saber . Marguarida pinheyra . E a sua lrmãa Catherina Pinheyra . E a ynes eanes prima destas.


O nome de MARGARIDA PINHEIRO está sublinhado com tinta mais recente, e à margem, em tinta igual, foi lançada, no século XVII ou XVIII, uma cota que diz: esta escreveo a vida da Princeza St.ª.

Daqui, apenas, se presume a autoria da crónica; que é de mão feminina, alcança-se pela especial redacção, delicadíssima, de particular emoção até, que determinados passos receberam; dirigindo-se à indulgência do leitor, desculpa-se também, quem compôs a crónica, dizendo: Nõ seria eu lndina presumir declarar as docirinas e fallas suas ë [Onde se encontrar um trema deverá considerar-se um til] estes autos... Conffeso sã prolixa (fis. 20 v b e 21 r a); a autora invoca ainda, por vezes, o testemunho da sua própria presença em situações cuja intimidade a regra e o recolhimento do Mosteiro não consentiam que se desenrolasse perante olhares estranhos; registemos, para exemplificar, entre várias outras, a declaração de fl. 110 r b, no capítulo final da vida da Infanta:

certyjico e afyrmo ante ho Senhor deus e ante toda pessoa que a leer e ouvyr . todo ser verdadeyra verdade . e scrycto per quë vio a mayor parte. E ouvio da boca de pessoas de muita virtude . verdade e actoridade . que assy meesmo ho vyrã e pratycarã.


Houve, contudo, forçosamente, vários informadores, nem douta forma se compreende, pois ao mesmo espectador não
/ 212 / era possível estar simultaneamente nos diversos lugares em que as acções iam decorrendo...

À erudição teológica que por vezes irrompe do singelo texto talvez não tenha sido alheio o próprio Fr. João de Guimarães; mas de positivo nada podemos avançar.

De MARGARIDA PINHElRO, a indigitada autora, sabe-se, pelo texto da crónica, a data em que entrou no Mosteiro e que idade tinha; em Fevereiro de 1467 a Prioresa D. Beatriz Leitão Recebeo e lancou entõ ho avyto a algüas quaes forõ tres sobrynhas do padre frey Johã de guimaraães mocas aynda. Hüa de dez annos chamada Ines eanes. E outra de Seys . a que chamavã margaryda Pinheyra E hüa sua Irmãa mynyna de tres ânos chamada Catheryna Pinheyra. (fl. 29 v a).

A avaliar por isto, terá nascido em 1461.

Exerceu o cargo de sacristã e foi criada da Infanta (fls. 90 v b, 100 r b, 100 v b).

Teria, portanto, 29 anos à data do falecimento desta, ocorrido em 12 de Maio de 1490, e podia bem ter sido testemunha presencial de muitos sucessos que narra, se, de facto, foi ela a autora, o que me não parece absolutamente provado.

MARGARIDA PINHEIRO acompanhou a Infanta quando em 27 de Setembro de 1479 saiu de Aveiro, fugida à peste intensa que assolava o lugar (fls. 33 v a e 38 r a); voltaram em Agosto de 1480; e em 1481, em Agosto também, dia de St.º Agostinho, MARGARlDA PINHEIRO fazia a sua profissão (fl. 117 r b); teria então 20 anos.

 

A crónica não está datada nem se pode dizer com segurança quando foi escrita; começando por se reportar aos últimos anos da primeira metade do século XV, a breve trecho (fl. 17) alude ao falecimento da Infanta, que promete adiante contar; ora como este facto se deu em 1490, não foi o texto composto antes dessa data; a caligrafia da 1ª e da 2ª parte da crónica mantém-se também, no memorial das religiosas que professaram, até às profissões de 1554; só daí por diante a relação passa a outras mãos.

Mas autora e escrivã terão sido uma e a mesma pessoa?

O exame dos caracteres diplomáticos do códice levam-nos à suposição de que um outro o tenha precedido; basta atentar na divisão do códice em capítulos determinados, cujas epígrafes se traçaram antes de qualquer deles ser escrito, donde resultou ficarem em branco numerosas folhas por se não haver calculado bem a extensão da cópia; mais: com letra uniforme, do mesmo punho, se registaram sucessos entre os quais mediaram largos anos; copiou-se, pois, em 1554, ou passou-se a limpo, uma primitiva minuta, talvez pouco posterior a 1490, acrescentada com o registo das religiosas, minuta que, aliás, se não conhece.

Nenhuma indicação existe também de quem tenha escrito estas dezenas de folhas de pergaminho, bem caligrafadas, / 213 / aliás, embora sem primores de ornamentação, como ainda então era uso.

Distribuem-se as matérias do seguinte modo:

FI. 1

Em este Livro he scrito e se contem ho nacimëto prïcipio e fundamëto deste moesteyro e Casa de lhesu nosso Senhor desta villa de aveyro que pessoas ho fundarõ nos hediffiçios e Casa, etc (até à fl, 44).

 

 

FI. 48

Segue sse em breve ho Memorial . da muito excellente Princessa . E muito virtuosa Senhora, ha Senhora Iffante dona lohanna nossa Senhora . ffilha do muy Catholyco e cristianissymo Rey . dom affomso . quinto. E da Senhora Rainha dona Isabell sua molher (até à fl. 110, v.º).

 

 

FI. 113

Memoryal das cousas santas que foram da dita excellente princessa e muito virtuosa Senhora . ha Senhora Iffante dona lohanna (termina nessa mesma folha).

 

 

FI. 115

Memoryal de todas as Religiosas que ffezerõ proffissom Neste Moesteyro de lhesu Nosso Senhor, E em que anno . E mes (até à fl. 140, mas acrescentado por várias mãos).

 

 

FI. 143

Memoryal das Madres E Irmãas que nesta Casa de Nosso Senhor lhesu jfallecerom. a saber. Ho anno E tenpo ë que desta vida presente sse foram pera a gloria eternall até à fl. 149, mas acrescentado por várias mãos).

 

 

FI. 151

Titulo das servidoras E do tëpo que em este santo Carramento entrarõ a sservir E ajudar as Religiosas deste moesteyro de lhesu nosso Senhor (termina nessa mesma folha).

 

 

FI. 151 vº

Escritura de doasão que o excellentissimo Senhor duque de aveiro mandou a Santa prinseza com os alampádarios (séc. XVIII; até à fl. 155).

 

 

FI. 156 vº

[notícias sobre a devoção do Duque de Aveiro pela memória da Infanta] (séc. XVIII; até à fl. 157).

 

 

FI. 161

Título das servidoras que nesta Casa dëtro falleceram (termina nessa mesma folha).

Seguem-se depois os acrescentos, do século XVIII, à crónica primitiva, escritos em papel. Ocupam 21 folhas. Tudo é transcrito na nossa edição. / 214 /

Os capítulos que seguidamente reproduzimos ocupam no original as folhas 73 v b a 77 r a; refere, o primeiro, o incidente ocorrido no Convento de Jesus de Aveiro entre a Infanta e seu irmão quando este tomou conhecimento da profissão por ela feita, impossibilitando assim o casamento político que ao país então convinha; o outro conta a doença e provações que o seu grande ânimo e anseio de martírio alegremente suportaram.

São dois trechos de boa prosa portuguesa, de ingénuo e vigoroso realismo, onde a sociedade medieval nitidamente se reflecte.

Como ho princepe seu Irmãao da dita Senhora Iffante nossa Senhora soube que ella tinha tomado ho avyto da santa Religiã . Como lyam Ruginte se assanhou fortemête . cobryndo sse de doo e barba: ([ Fallou... ...   ...   ...   ...

NOTA - Em virtude de não ser possível reproduzir em html o texto, devido a notações léxicas não permitidas pelos sistemas informáticos, as páginas 214 a 219 vão reproduzidas em formato PDF.

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/ 219 /
Resta alguma coisa dizer quanto ao processo de transcrição que adoptámos na nossa edição.

Como era essencial conservar todo o interesse filológico que o texto apresenta, respeitou-se a sua forma o mais possível; apenas, para o tornar acessível ao leitor não especializado, desdobraram-se as abreviaturas; e quando ocorriam i i e u u com valor de consoante, assim se transcreveram; paralelamente, transcreveu-se o j e o v por i e por u quando na palavra o seu valor era este.

Separaram-se palavras indevidamente ligadas, e uniram-se sílabas impropriamente separadas.

A isto se reduziu a nossa intervenção.

O desdobramento das abreviaturas não vai feito a itálico, como deve ser e nós usamos, por uma razão de considerar; a / 220 / edição não é oficialmente subsidiada, o que equivale a dizer que há necessidade de ser vendida; ora o desdobramento das abreviaturas em itálico dá à palavra um aspecto rebarbativo que assusta o leitor e afasta o comprador; desdobrámos, portanto, em redondo, também.

Convento de Jesus, de Aveiro, tal como chegou aos nossos dias.
Nele se encontra instalado o Museu de Arte, continuando, porém, a celebrar-se o culto na respectiva igreja [cuja entrada se vê no canto inferior direito].

(Substituímos a imagem da publicação pelo postal fotográfico de onde foi obtida, existente no espólio Morais Sarmento)

Se o nome do copista é penhor de alguma confiança, o filólogo trabalhará com o texto sem receio de que erros graves se tenham deixado passar; se é desconhecido ou não, oferece garantia, não era por desdobrar em itálico que se acreditava, e a dúvida existiria sempre.

Trabalhando com o maior cuidado e escrúpulo, creio ter conseguido conciliar o justo interesse do editor com o respeito devido à pureza do texto.

Nem doutra forma me abalançaria a trazer a público tão precioso códice como é a Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e da Infanta St.ª Joana, filha deI Rei D. Afonso V.

A. G. DA ROCHA MADAHIL

 

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