Alberto Souto, O retrato de Santa Joana no Museu de Aveiro, Vol. III, pp. 161-178.

O RETRATO DE SANTA JOANA

DO MUSEU DE AVEIRO

ASSIM conhecida, a tábua quatrocentista que se guarda no Museu Regional de Arte da cidade de Aveiro, é o retrato fidedigno da princesa e infanta D. Joana, filha de D. Afonso V e irmã de D. João lI.

Representa a infanta em traje de corte e deve ter sido tomado, originariamente, antes da sua entrada no Convento, pois não é crível que depois de recolhida ao seio duma comunidade religiosa, embora mantendo-se como secular, a infanta despisse o hábito para envergar as vestes da moda real e se prestasse a posar para o artista que a retratou.

Se se trata efectivamente de uma cópia, o original deve ter sido pintado durante a campanha de Arzila ou logo após a chegada de seu pai «o Africano» à capital do Reino. O que é positivo é que este retrato se encontrava há muito no Convento de Jesus, em cujo coro de cima foi arrolado após a proclamação da República.

Parece ser o único o único verídico que resta dos vários que pela tradição sabemos terem existido.

Pela tradição e pela história, afinal, e não apenas por aquela, direi melhor, pois se podemos considerar tradição não só os relatos verbais comunicados de geração em geração, mas também as pequenas crónicas monásticas mais ou menos adornadas de lendas piedosas quase sempre ingénuas e muitas vezes inverosímeis, devemos dar categoria histórica às referências sérias de autores dignos de crédito ou de notória responsabilidade, bem como aos verdadeiros documentos.

Um dos retratos da Princesa Infanta, também em traje do século, levou-o para o seu paço o bispo de Coimbra D. João de Melo, com assentimento das religiosas, quando em 1669, por ordem do papa Inocêncio XI, veio a Aveiro proceder ao exame das cinzas de D. Joana e fazer o inquérito para o processo da sua beatificação. /162 /

Esse retrato estava exposto no altar-mor da igreja de Jesus, o que, parecendo estranho, pode admitir-se à vista dos painéis que na capela-mor da mesma igreja historiam alguns episódios da vida de St.ª Joana e em que a veneranda filha do africano é representada não só com o hábito de noviça mas também, em patente anacronismo, aliás, com indumentária secular.

Levou-o o bispo e desapareceu.

Procurou-o MARQUES GOMES em Coimbra inutilmente. Dele ninguém sabe nem nos deixou qualquer outra notícia e não é admissível a hipótese de que o retrato levado pelo bispo D. João de Melo possa identificar-se com a St.ª Joana Princesa de Portugal que se encontra na colecção da Universidade de Coimbra, pois este quadro, como outro análogo do Museu de Aveiro, não passa de uma pintura de fantasia sem veracidade e posterior ao século XVII.

Tratava-se de colher elementos para um processo de beatificação. Vê-se dos autos que houve cuidado e escrúpulo no exame da ossada. O bispo não deixaria de ler a passagem do códice 872 do arquivo do Convento em que D. MARGARIDA PINHEIRO retrata a infanta e relata pormenorizadamente a sua vida e a sua morte, e escolheria o retrato que lhe parecesse mais perfeito.

Ora o pseudo-retrato do Museu de Aveiro, bem como o seu próximo parente do Museu universitário, apresenta-nos a Princesa vestida à moda do século XVIII segurando nos braços o Menino-Deus. Já houve quem desconfiasse de que o pintor quis colocar nos braços da Princesa o infante D. Jorge de Lencastre, bastardo do rei seu irmão, D. João II, que no convento de Jesus, com especial dispensa eclesiástica, a bondosíssima senhora criou como príncipe e seu verdadeiro sobrinho.

O resplendor, aureolando a fronte do menino, tira-nos, porém, todas as dúvidas.

O pintor desenhou e pintou uma St.ª Joana, falecida no século XV, como desenharia e. pintaria uma dama da corte de Luís XV ou de D. João V e não lhe deu qualquer expressão que denote terem sido as suas feições copiadas de um autêntico retrato. Um painel nitidamente do século XVIII, em que a lnfanta já é apresentada como santa, não poderia ser levado para Coimbra em 1669, 24 anos antes da beatificação que é de 4 de Abril de 1693.

Temos de concluir, portanto, que o retrato de que D. João de Melo se apoderou, era uma pintura coeva e fidedigna, e tinha merecimento para ser posto no altar-mor da igreja e acompanhar o bispo que procurava reconstituir a virtuosa vida e a santa morte da real beatificanda.

Quem sabe se seria esse o retrato original, e o que hoje possuímos uma mera cópia dele?

Esse retrato da Infanta teria presentemente um valor inestimável, pois, a tratar-se de uma tábua autentica do século XV, / 163 / estudado à face da crítica moderna, podia lançar luz sobre muitas das questões da nossa história artística e sobre alguns dos enigmas dos painéis do Museu Nacional de Arte Antiga e do próprio quadro que temos presente com a vera-efígie da Princesa-Infanta.

Infelizmente não seremos a seu respeito bafejados pela sorte que bafejou a arqueologia pré-histórica portuguesa, há quatro anos, com a descoberta das pinturas rupestres do Cachão da Rapa que eram dadas como perdidas e que o Sr. Dr. Santos Júnior foi encontrar nas penedias do Douro.

Daqui, porém, faço um apelo a todos os investigadores de velharias e de história da Arte, para que continuem as pesquisas encetadas por MARQUES GOMES em Coimbra, a ver se aparece ainda esse retrato da Infanta cujo achado teria, sem dúvida, uma altíssima importância.

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É vasta a iconografia de St.ª Joana. O Sr. Dr. PEDRO VITORINO publicou na Terra Portuguesa uma curiosa. colecção de registos e gravuras de que existem alguns exemplares no Museu de Aveiro. Mas nenhuma dessas gravuras reproduz os traços fisionómicos da Princesa. Não considero também como um retrato, na rigorosa e corrente acepção do termo, a gravura publicada no Anacephalaeoses, do padre ANTÓNIO DE VASCONCELOS, a página 392 do Tomo I, edição de 1773, Coimbra, Typis Academicis.

Será essa a reprodução, alterada embora, da gravura de Boutats de que nos deu notícia o falecido mestre Dr. JOAQUIM DE VASCONCELOS, afirmando que fora feita na Flandres, sobre o retrato de Aveiro, na primeira metade do século XVII, habilmente, mas com pouca fidelidade?

Confesso que não compreendo bem esta passagem do erudito crítico de arte, pois não sei explicar-me como é que Boutats, na Flandres, poderia gravar o retrato de Aveiro sem o ter presente, a não ser que lhe fosse remetida uma cópia ou um desenho.

Ou será essa gravura do Artacephalaeoses (inferior, como gravura, à da primeira edição, segundo me informa António da Rocha Madahil) uma reprodução de qualquer outro retrato dos muitos que existiram?

Afirma MARQUES GOMES que na província havia muitos desses retratos, em que St.ª Joana aparece com o hábito de freira. Dum desses «retratos» de St.ª Joana, até hoje desconhecido, deu-me há pouco notícia o ilustre professor do liceu de Santarém, Sr. Dr. José Barata. Não recebi ainda a reprodução fotográfica, mas registo já a sua descoberta. Deverá tratar-se de imagens, pinturas sem veracidade. / 164 /

O que tenho por demonstrado e firme, é que a tábua da colecção dos primitivos do Museu que dirijo, conhecida desde sempre como Retrato de St.ª Joana, é efectivamente um retrato, verídico e autêntico, da excelsa irmã do Príncipe Perfeito, ou tirado do natural, como até há pouco todos julgávamos, ou, como pretende agora o Sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, copiado de um original directo que poderia ter sido pintado por Nuno Gonçalves, isto é, pelo mestre dos célebres painéis encontrados em S. Vicente de Fora e hoje expostos no Museu das Janelas Verdes.

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Do arquivo do extinto convento de Jesus que D. Brites Leitão, viúva de D. Diogo de Ataíde, fundara em Novembro de 1458, ficou no Colégio de St.ª Joana das Terceiras de S. Domingos, que no mesmo edifício continuaram a vida monacal após a morte da última professa, e do Colégio transitou para o Museu Regional após a República, um códice precioso, o n.º 872, em que já falei, da autoria de D. MARGARIDA PINHEIRO.

Como se vê, do tempo da Princesa alguma coisa resistiu aos séculos, guardada na penumbra do Convento: este e outro códice que, como as relíquias, ninguém até hoje acusou de apócrifos. Primorosamente caligrafado em pergaminho, neste livro «é escrito e se contém o nascimento, princípio e fundamento do mosteiro e casa de Jesus» da então vila de Aveiro, bem como «a notícia das pessoas que o fundaram nos edifícios e casa».

D. MARGARIDA PINHEIRO, e não D. Bernarda Pinheiro, como por engano lhe chamou MARQUES GOMES no seu opúsculo sobre D. Joana de Portugal, não era uma criada da Infanta, como o mesmo autor disse na "Ilustração Moderna", do Sr. MARQUES DE ABREU, certamente também por desculpável equívoco.

D. MARGARIDA PINHEIRO era uma religiosa do Convento de Jesus, senhora de verdadeira cultura, que professara em 1467 uns cinco anos antes da vinda da Infanta para Aveiro como se verifica a página 116 do mesmo Códice: «no ano do Senhor de 1467 lançou-se o hábito a três sobrinhas do padre Frei João de Guimarães Margarida Pinheira e sua irmã D. Catarina Pinheira e a lnez Eanes, prima destas».

Urna fiel reprodução dessa valiosa obra saída de uma pena feminina que sabia escrever com relevo e singular elegância, feita pelo arquivista da Universidade, erudito investigador e
nosso patrício, ANTÓNIO DA ROCHA MADAHIL, vai ser em breve publicada, estando quase concluída a sua impressão.

Na fl. 48 desta obra coeva, começa a biografia da Senhora lnfanta ou seja o «memoriai da mui excelente Princesa e mui virtuosa Senhora a Senhora Dona Joana, nossa Senhora filha do / 165 / mui Catholico e Christianissimo Rei Don Afonso Quinto e da Senhora Rainha D. lzabel sua Molher».

D. MARGARIDA PINHEIRA conviveu com a Princesa, não como sua serviçal mas como irmã, e certamente até com a ascendência natural de hierarquia monástica, pois era religiosa professa, e a Infanta, que não passou nunca de simples noviça, cumpria fielmente a regra. A sua narrativa tem por isso especial autoridade e o seu testemunho indubitável valor, tanto mais quanto é certo que a Princesa Infanta não é por ela considerada uma santa do agiológio, mas uma senhora de admirável virtude.

Diz D. MARGARlDA PINHElRA:

«Corria por todas as partes da Cristandade a fama da grande excelencia da fermosura e industria do entender e saber desta Infanta-Princesa e todos os Reis e Principes de diversos Reinos punha em grande cobiça e desejo de a ver e ouvir e porque lhes era impossivel pela distancia e alongamento dos Reinos e terras mandavão pintores muito perfeitos que a vissem e tirassem pelo natural, para poderem assim pintada gozar de tanta fermosura.»

A esta fonte foram beber todos os cronistas e escritores que se têm ocupado da vida de St.ª Joana incluindo. FREI LUÍS DE SOUSA, mas excluindo, é claro, RUI DE PINA, e por isso não me deterei a aproveitar outros testemunhos menos valiosos e posteriores.

A Princesa foi retratada por vários e bons pintores estrangeiros para os quais posou, porque a tiraram do natural, como nos assevera a monja historiadora do Convento de Jesus.

É bem possível que pelas galerias europeias exista ainda hoje alguma dessas tábuas levadas de Portugal pelos pintores quatrocentistas aqui mandados pelos príncipes da época, mas o que não é crível é que, florescendo então em Portugal a arte do retrato e tendo tido D. Afonso V ao seu serviço numerosos pintores, a Princesa não tivesse sido retratada por nenhum artista nacional.

Não é crível, e porque tal seria um absurdo, temos de admitir que D. Joana foi retratada por artistas portugueses e estrangeiros antes da sua entrada em Odivelas, ou, pelo menos, antes da sua vinda para Aveiro, onde chegou com 20 anos de idade.

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Outros retratos nos ficaram da sua família; e o do seu bisavô, D. João I, identificado por JOAQUIM DE VASCONCELOS, encontra-se na antiga Galeria Imperial de Viena de Áustria.

Nos painéis de S. Vicente, segundo o Sr. Dr. JOSÉ DE FIGUElREDO, vê-se a figura de seu pai, de sua mãe, de seu irmão, de sua / 166 / avó, de seu tio o infante D. Henrique, etc. e todas as outras interpretações dos célebres painéis admitem a autenticidade de vários retratos de pessoas reais que ali estão representadas.

O Infante de Sagres tem o seu retrato em Paris, na Crónica da Guiné de GOMES EANES DE AZURARA. D, Afonso V está retratado nas tapeçarias de Pastrana, que eu tive a satisfação de ver em Madrid, já colocadas no Museu do Prado, em vésperas de projectado restauro. Ao tempo, era de uso corrente retratarem-se pelo pincel os personagens importantes, não se devendo esquecer que as obras de arte, como diz o ilustre Presidente da Academia Nacional de Belas Artes, viajavam mais do que os homens.

É o caso, referido pelo mesmo erudito investigador, do retrato de Jean sans Peur, pintura de Jean Malouel, oferecido pelo próprio duque de Borgonha ao nosso rei D. João I; é o caso de D. Afonso V, escusando-se para com o cronista Azurara, que se encontrava em África, de lhe não mandar o seu vulto pintado por o não ter na ocasião; é o caso do retrato da imperatriz da Alemanha, D. Leonor, filha do nosso D. Duarte; é o caso de terem vindo a Portugal vários pintores estrangeiros para retratarem a filha de D. Afonso V, de cujos dotes de beleza voara a fama pelas cortes de toda a Europa, cobiçosas já então de uma aliança pelo sangue com a corte de Portugal.

Não admira, pois, que seja a verídica figura da Princesa-Infanta D. Joana, a que se vê na tábua quatrocentista do Museu desta cidade.

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Que estamos na presença de um painel do século XV, não resta dúvida. Na lntroduction au Récueil de Documents publiés par l'Académie Nationale des Beaux-Arts, diz o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, com a sua especial autoridade:

«Quando se examina o quadro, constata-se que se está em frente de uma pintura que apresenta todas as características da época em que viveu a filha do rei D. Afonso V. Preparação do suporte, técnica, traje, espírito, tudo é bem do tempo a que pertencia o modelo.»

E o ilustre director do Museu de Arte Antiga, neste ponto de inteiro acordo com as opiniões dos mais notáveis críticos que tenho ouvido, afasta em seguida todas as dúvidas sobre a autenticidade do retrato. Não só pela tradição consagrada, mas pelo anel com o rubi que ela menciona no testamento, pela comparação da máscara com a do irmão que se vê retratado nos painéis de S. Vicente, e ainda pelos detalhes do vestuário que tanto se aproximam dos do vestuário da Rainha sua Mãe nos mesmos painéis, conclui que a figura do quadro de Aveiro não pode ser outra senão a da irmã de D. João II. / 167 /

Para os adeptos da interpretação dada pelo sr. Dr. José Saraiva aos painéis do Museu das Janelas Verdes, não deve haver relutância em admitir a autenticidade do retrato de Aveiro, pois que se o menino que se vê no painel do Infante fosse D. Afonso V e não o Príncipe-Perfeito em criança, nada importaria, pois a verdade é que frequentemente os filhos reproduzem os traços fisionómicos dos pais na meninice, e a semelhança da jovem de 18 anos da tábua de Aveiro com o menino do painel do Infante é incontestável.

Cheguei já a admitir a hipótese de estar retratada no mesmo painel do Infante, não a mãe de D. Joana, mas a própria Infanta.

Em Janeiro de 1927 escrevia eu ao secretário da Associação dos Arqueólogos de Lisboa, Sr. FRAZÃO DE VASCONCELOS, director da revista Brasões e Genealogias, como se vê da separata do n.º 2 desse arquivo:

«O vestuário é o mesmo, até, da figura real que no painel do Infante ajoelha no primeiro plano à esquerda, em frente de D. Afonso V, ou do pseudo D. Afonso V, e que o sr. dr. José de Figueiredo julga ser a Rainha D. Isabel, do que não discorda inteiramente o sr. dr. José Saraiva. Difere a touca: no retrato do Museu de Aveiro, cingindo os cabelos, contornando a cabeça elegante, cobrindo a testa, quase só o diadema de pedrarias...

A semelhança do retrato do painel do Infante, com o retrato de St.ª Joana, é flagrante. Será a mãe de St.ª Joana ou será a própria filha de D. Afonso V?».

O sr. ARMANDO LASSANCY (pseudónimo), num estudo publicado nesse mesmo número de Brasões e Genealogias, adoptou abertamente a ideia de ser a Princesa D. Joana a figura feminina ajoelhada no painel do Infante:

«...quem com atenção olhar para os dois retratos não poderá deixar de concordar que são ambos da mesma pessoa. No Museu de Aveiro apresenta-se a Infanta de mais idade, já com anel de prometida. Claro que os rostos das pessoas modificam-se com a idade. Uma rapariga aos doze ou treze anos não tem a mesma cara que aos dezasseis ou dezassete, depois de já ser mulher. Mas repare-se no nariz, na boca, nas sobrancelhas e não poderemos deixar de concordar que é a mesma pessoa que em ambos foi retratada. Passe-se depois a examinar o colo e o fato. Lá vemos, nos dois, uns fios e umas rendas semelhantes. No dos painéis, está ricamente vestida, tendo na cabeça um chapéu ornado de lírios azuis, de alto significado nobiliárquico.»

Depois de observar directamente os painéis no Museu das Janelas Verdes, fiquei com maiores dúvidas. São certas as afinidades: mãos, corpete, rendas, colo, pescoço, olhar e sobrancelhas, ombros descaídos, expressão fisionómica; mas os lábios e o nariz parecem-me diferir tanto que me retraí muito na defesa da hipótese da identidade dos dois retratos. Mas, como em / 168 / 1927,convictamente afirmo hoje: «o que se não pode negar é a identidade de traços fisionómicos, o ar de família, a semelhança que existe entre o retrato de Santa Joana do Museu de Aveiro e as figuras reais do políptico das Janelas Verdes!».

Poderia sofrer reparo o facto de se afirmar a semelhança fisionómica da Infanta com a mãe, na hipótese de JOSÉ SARAIVA, isto é, considerando-se ser o menino o pai de St.ª Joana e não seu irmão, o príncipe D. João, mais tarde D. João II, pois se assegurou que havia parentesco fisionómico do retrato de Aveiro com o retrato do menino que viria a ser o pai da Infanta.

Nem mesmo nesta hipótese resulta absurda a duplicidade de semelhança com o pai e a mãe simultaneamente, sendo os futuros pai e mãe tão jovens, e antes da concepção, desde que nos recordemos de que a mãe da Infanta era prima direita do pai, pois que, como se sabe, a rainha D. Isabel era filha do mártir de Alfarrobeira, tio paterno de D. Afonso V.

De resto, há famílias em que o ar de parentesco, o traço comum fisionómico, são muito mais acentuados em todos os membros do grupo, do que noutras famílias não menos puras de sangue e honestas de costumes, em que esse nexo fisionómico se não manifesta ou se dilui rapidamente.

Podemos admitir que na ínclita geração de Avis o ar de família fosse muito acentuado, imprimindo carácter a toda a parentela, porque não só os painéis de S. Vicente o demonstram, mas ainda o retrato de Carlos, o Temerário, neto de D. João I por sua mãe D. Isabel, casada com Felipe o Bom, duque de Borgonha, é de manifesta parecença com o do duro e tenaz infante D. Henrique, e a cor loira dos cabelos da Princesa D. Joana parece resultar da hereditariedade, do elemento genético descendente de Lencastre, vindo de D. Filipa, sua bisavó, mulher do fundador da dinastia, através de seu avô o rei D. Duarte e de seu pai e sua mãe, ambos netos da Inglesa, tão digna esposa do rei de Boa-Memória.

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D. MARGARIDA PINHEIRO descreve assim o vulto da Senhora Infanta:

«Era no rostro e corpo muy aposta: a fronte muito graciosa. os olhos verdes muito fremosos. ho naryz meão e de boa feyçam. a boca grossa e revolta. Rosto redondo. ho caram alvo cõ alguma, quantaquer, côr bem posta. muito fremosa gargãta e mãos mais do que se podesse achar e ver a nenhuma outra mulher. alta e grãnde de Corpo dereyto. muy aposto e ayroso. a vista e Representação de grãde Senhora e estado.»

Ora o retrato de Aveiro é perfeitamente concordante e harmónico com esta descrição do Códice n.º 872. A boca / 169 / [Vol. III - N.º 10 - 1937] curta, mas grossa e revolta como a do príncipe que ajoelha no painel do Infante. O nariz não é aquilino como o da figura feminina ajoelhada no mesmo painel, é meão. A cara, apesar de retocada em tempos longínquos, é branca com alguma cor bem distribuída, sem afoguear ou avermelhar demasiado as maçãs do rosto, e o pescoço e as mãos são, em verdade, de uma nobreza excepcional, próprios de distinta estirpe e alta linhagem.

A cor dos olhos não se constata em uma observação ligeira, mas, bem vistas as pupilas e examinadas com uma lupa, lá está o verde, um verde discreto, que é raro, e parece ser apanágio de almas profundas e belezas peregrinas.

E para que nenhuma dúvida nos restasse, a âmbula de prata do relicário da Infanta-Santa, do tesouro do Museu, mostra-nos um anel de cabelo loiro, cor que apesar das alterações sofridas, persiste, de uma maneira geral, nas madeixas que caem pelos ombros estreitos da figura real do retrato de Aveiro.

E essa cor loira, dos cabelos da Princesa, foi objecto de uma tradição iconográfica, baseada certamente numa tradição oral e nos retratos autênticos, tradição seguida por todos os pintores que procuraram representar a filha de D. Afonso V no século seguinte ao da sua beatificação. O loiro dos cabelos aparece efectivamente nos painéis, datados, da capela-mor da Igreja de Jesus, nos painéis da cela em que morreu a Infanta, nos pseudos-retratos do século XVIII de Aveiro e Coimbra, a que me referi acima, e ainda nos outros quadros setecentistas de não menos anacrónica indumentária que se encontram no Museu desta cidade.

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Como elementos de identificação, estes bastam e nenhuma objecção séria e consciente, afinal, até hoje se formulou.

A cor primitiva exacta dos cabelos do retrato é que constitui um problema.

O anel do cabelo do relicário é, como disse, loiro, de um loiro transparente, quase estriga de linho. E possível que 426 anos lhe tenham roubado cor; é bem possível, sim, que esses quase quatro séculos e meio tenham desmaiado os preciosos cabelos ali guardados, e é positivo que os cabelos do retrato sofreram alterações que lhes devem ter mudado, dentro da cor loira que subsiste, o tom primitivo hoje difícil de determinar.

Mas o fundo de oiro tradicional desses cabelos mantém-se, e comprova-se facilmente no retrato, sobretudo quando sobre ele incide uma luz intensa e não espelhante. O sr. Dr. José de Figueiredo que, como vimos, reconhece no quadro de Aveiro todos os caracteres duma pintura do fim do século XV e que não admite a possibilidade de se tratar doutra personagem
/ 170 / que não seja a irmã de D. João II, pergunta se o tom exacto dos cabelos da princesa, tais como os pintou o autor do retrato, seria o castanho dourado, ligeiramente cor de cinza ou se o castanho dourado, fortemente ruivo. É que, em seu douto entender, a camada superior da pintura desapareceu e a causa desse desaparecimento foi não resistirem as cores de terra de sena de pouco corpo, que serviram para pintar os cabelos, ao ingrediente de base alcalina com que se tentou lavar a pintura, enquanto as outras cores nada sofreram com este acto bárbaro, graças à sua grande solidez.

Isto não impede que se reconheça valor a esse elemento de identificação nem obsta a que, por força dele mesmo, se dê como segura a autenticidade deste retrato que as freiras de Jesus conservaram no seu coro, em lugar de honra, como conservaram no altar-mor da igreja o outro que o bispo D. João de Melo transferiu para Coimbra e que, provavelmente, mandou para Roma com o processo de beatificação.

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A tábua do Museu de Aveiro era quase desconhecida até 1895. MARQUES GOMES não falou nela nas Memórias de Aveiro, de 1875, nem se lhe referiu a propósito da exposição de 1889.

Apesar de tudo quanto é moda agora dizer-se, o extraordinário século XIX produziu em Portugal, depois da pacificação das nossas lutas políticas, um interessante élan cultural dimanado do movimento de renovação que as ideias liberais trouxeram ao país.

Aveiro foi uma das cidades do acanhado meio português em que mais se sentiu o reflexo do espírito novo do século, que produziu aqui, simultaneamente, um grande civismo, uma obra de investigação histórica e valorização artística, um anseio de melhoramentos de ordem material e um carácter popular bondoso e tolerante que fez da curiosa cidadezinha da Beira-mar uma das nossas terras mais pacíficas e de menor criminalidade, sem deixar de ser ciosa das suas tradições e regalias.

Pena foi que a decadência geral do baixo constitucionalismo tivesse deixado atrasar toda a nação do ritmo civilizatório em que caminhava o mundo!...

Ora no último quartel do século passado, Aveiro, que sob o impulso vigoroso de José Estêvão salvara a sua riqueza aquícola e toda a sua vida económica com as formidáveis obras da barra, que vira passar aqui o caminho de ferro, estenderem-se os fios do telégrafo, iniciar-se e desenvolver-se a viação ordinária, erguer-se o Liceu, abrir-se o asilo e congregar-se à sua volta um distrito belo e activo, realizou duas exposições de arte que marcaram na campanha de recuperação e disciplinamento / 171 / artísticos do país, que infelizmente foi prejudicada pela rapina duns, pela ignorância doutros e pela diminuta mentalidade dos governantes.

Lisboa fizera a exposição de arte ornamental de 1882, reunindo riquezas de toda a província, e o nosso distrito teve a honrosa representação.

Quando se encerrava a exposição de Lisboa, abria Aveiro uma exposição distrital promovida pelo Grémio Moderno, que teve lugar na escola primária de Vera-Cruz, exposição essa de iniciativa de MARQUES GOMES e em comemoração do centenário do Marquês de Pombal. Foi notabilíssima!

No seio da comissão organizadora viam-se os nomes de Mendes Leite, do par do reino Casimiro Barreto Ferraz Sachetti, do visconde de Azinheira, de Sebastião de Carvalho e Lima (pai de Sebastião e Jaime de Magalhães Lima), do presidente da Associação Comercial, Agostinho Pinheiro, do engenheiro Silvério Pereira da Silva, de Manuel Firmino, Gustavo Pinto Basto e Francisco Regala; de António Ferraz Sachetti, do Vigário Geral, padre José Cândido Gomes de Oliveira Vidal, do Dr. César de Sá, do médico Artur Ravara, de Carlos Faria, João Romão, Jaime Lima, Melo Freitas, Barbosa de Magalhães, Aníbal Fernandes Tomaz, etc!

Em 1895 repetiu-se o empreendimento, desta vez restrito a arte sacra, tendo lugar no Convento de Jesus e fazendo parte da Comissão, entre outros, o visconde de Alenquer, Aníbal Fernandes Tomaz, os drs. Manuel Joaquim Massa e Melo Freitas, Luís da Silva Melo Guimarães, o engenheiro Melo de Matos, Marques Gomes e Silva Rocha, único sobrevivente.

Foi então que o falecido mestre Dr. JOAQUIM DE VASCONCELOS, o inolvidável nome ligado a essa grande figura de mulher de letras que se chamou CAROLINA MICHAELIS, escreveu os célebres artigos do Comércio do Porto que tantos ensinamentos nos legaram e que, com a obra de MARQUES GOMES, tanto contribuíram para se dar à sociedade aveirense a consciência dos valores artísticos que nesta cidade se encontravam.

JOAQUIM DE VASCONCELOS colaborara já com MARQUES GOMES no soberbo catálogo da Exposição de 1882, cujos exemplares começam a ser raros, e que saiu ilustrado com magníficas fototipias de Emílio Biel.

Foi a exposição de arte religiosa do Convento de Jesus de 1895 que lhe forneceu o ensejo de tornar conhecido e devidamente apreciado o retrato de St.ª Joana a que me estou referindo, e cujo recente restauro satisfaz tanto a minha devoção artística como me satisfaria ver concluídas as grandes obras do edifício do Museu, obras que constituem hoje a minha maior aspiração de aveirense e de director desse estabelecimento. / 172 /

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No primeiro dos seus artigos, disse JOAQUiM DE VASCONCELOS:

«A fundação do real Convento de Jesus em 1462 e a sua crónica, sobretudo desde a entrada em 1472 da princesa D. Joana, filha de D. Afonso V, resumem uma boa parte da história da cidade até à extinção das Ordens religiosas. Como em Arouca, Lorvão e Santa Clara de Coimbra (fundações e jazigos de outras princesas ilustres) formou-se dentro da clausura no correr dos séculos um precioso museu de arte e uma escola de lavores de todo o género, que conservam ainda hoje uma feição local, com atractivos e até encantos capazes de subjugar o espírito mais rebelde.

Sobre o claustro cingido de formosas capelas, onde os mais deliciosos azulejos luzem discretamente numa fresca e perfumada penumbra, paira ainda o espírito gentil que dentro daqueles muros se enterrou voluntariamente, renunciando aos esplendores do trono, num século em que a mão de uma infanta portuguesa pesava a valer na balança do equilíbrio europeu.

Olha o visitante para o seu formoso rosto melancólico numa preciosa pintura coeva, suspensa no coro alto e por detrás surge a tragédia de Setúbal, e o cadafalso de Évora, um próximo parente apunhalado pelo irmão (D. João II), e outro parente, o duque de Bragança, cuja cabeça viu talvez em sonhos, rolando no pó do Alentejo, com uma penada do mesmo irmão.

Como viveu até 1490, viu tudo isso e o mais que encheu o reino de pavor e de admiração no curto mas glorioso e fecundo reinado do Príncipe Perfeito (14 anos).

Essa única obra, o retrato da princesa, vestida com todo o esplendor da corte, mas triunfante. sobretudo pela sua ideal beleza, vale uma viagem a Aveiro. É um encanto! Foi gravada no princípio do século XVIl, em Flandres, por Boutats, habilmente mas com pouca fidelidade, e parece não ter sido reconhecida até hoje na sua importância capital como Pintura coeva, intacta, facto que terá de ser comprovado com razões intrínsecas e técnicas. Deixamos essa tarefa para outro lugar pondo aqui em evidência somente a figura histórica que criou o singular e raro museu donde saiu o melhor quinhão para a exposição de arte religiosa de Aveiro.»

A promessa do ilustre crítico e investigador cumpriu-se mais tarde.

Na Arte Religiosa em Portugal, JOAQUIM DE VASCONCELOS versou com maior largueza o assunto, certamente depois de fazer novo exame e estudo do painel que lhe mostraram ser a
tábua de 0,60 m de altura por 0,40 de largura, com 7 milímetros
/ 173 / de espessura e estar já «bastante carcomida nas extremidades, apresentando numerosos furos das larvas dos vermes».

Nessa publicação escreveu então o seguinte:

«Além da preciosa touca há a notar, como enfeite, o anel de ouro com um grande carbúnculo, uma espécie de pulseira formada por um laço de galão de ouro talvez com significação simbólica que nos escapa. Um grosso cordão de ouro, torcido em quatro voltas, acompanha o recorte da camisa, mas não tem jóia pendente, nem sequer a Pérola tradicional».

«Para adorno de uma princesa e de uma noiva todo o aspecto da figura largamente decotada, o movimento da mão posta sobre o coração, indicam que se trata, com efeito, de uma noiva parece-nos modesto o atavio se não fora a preciosa touca.»

E descrevendo a touca diz que ela é formada por grossos cordões de fio de ouro torcido nos quais o joalheiro enclausurou uma abundância de pedraria rara: rubis, safiras e pérolas. A touca compõe-se de duas tiras largas que descem sobre o diadema da frente e se prendem a dois cantos menores que a fecham dos lados.

JOAQUIM DE VASCONCELOS verificou já, nesse tempo, a alteração da pintura primitiva dos cabelos, que só poderia constituir novidade em 1936 para quem nunca tivesse visto o painel. Atribuir o desgaste e retoque dos cabelos do quadro ao restaurador de 1935, seria, além de imperdoável injustiça, um erro grave devido ao desconhecimento da tão conhecida bibliografia do retrato da Infanta.

Tendo-se presente o que acima escrevi, veja-se agora o que JOAQUIM DE VASCONCELOS disse sobre o problema dos cabelos da Princesa e do retrato, problema tratado em 1935 pelo sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO na citada lntroduction au Récueil de Documents Publiés par l'Académie Nationale des Beaux-Arts e por mim no Povo de Aveiro:

«O maior ornamento e o mais encantador, não seria a touca cintilante; deveriam sê-lo os maravilhosos cabelos louros que descem em abundantes ondas sobre o busto.»

«Infelizmente o retocador destruiu esse encanto!»

Sobre os olhos, para provar que eles, no retrato, são verdes, como os descreveu D. MARGARIDA PINHEIRO no Códice n.º 872, JOAQUIM DE VASCONCELOS disse, a meu ver com inteira exactidão:

«Não tocou (o retocador) por fortuna, nos olhos garços que na estampa parecem muito escuros; o cronista afirma que eram verdes».  / 174 /

E continuando, o erudito publicista escreve assim:

«Como geralmente acontece com as belezas loiras, a tez rosada do rosto, a alvura acetinada do pescoço e do colo andam associadas; a suavidade da epiderme, a elegância intencional da mão aristocrática, o pescoço alto, os ombros descaídos denunciam a raça. Acresce a expressão reservada: o segredo dos lábios firmemente cerrados, onde se desenha já nos cantos um vinco amargo.»

Atente agora o leitor no período seguinte que tem a maior importância perante as críticas ao restauro recente:

«O nariz um tanto longo, mas muito delgado e mais ainda a pequena boca, contrastam com as faces muito cheias: eu diria inchadas se um exame cuidadoso da pintura não me indicasse que houve indiscretos retoques na carnação...»

Isto, como se vê, foi escrito por JOAQUIM DE VASCONCELOS na Arte Religiosa em Portugal, cujo fascículo 8.º foi publicado no Porto, pela casa Biel, em 1914, isto é, há 23 anos, sendo o estudo do autor de alguns anos antes, pelo menos do tempo da organização e abertura do Museu Regional, a que fez repetidas visitas.

*

*        *

Não passarei adiante sem invocar ainda HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA, entre os numerosos escritores que se têm referido ao retrato de St.ª Joana, não para discutir com ele o problema das causas do recolhimento da Infanta ao Convento de Jesus, pois tratei esse problema no Povo de Aveiro em 1928, mas apenas para transcrever este interessante trecho do brilhante académico, que se lê na separata do Boletim da Segunda Classe da Academia de Ciências de Lisboa, Vol. XII; Coill1bra, 1919:

«A beleza da Infanta é atestada pelo retrato hoje existente no Museu Regional de Aveiro. Seus cabelos louros descem sobre o busto virginal, destituído de mulíebres turgências. A cabeça oval, entoucada de fios de ouro em que encastram pedrarias e Pérolas, pousa sobre o colo que prolonga o decote aberto na camisa de cambraia, bordada a seda preta.

O corpete de brocado de ouro, com bordado semelhante, acusa o descaimento dos ombros franzinos.

Da manga golpeada do vestido emerge a mão direita, fina e alva, em cujo índice rutila um carbúnculo. / 175 /

E se nos lábios grossos se vislumbra profanidade de anelos, essa vaga expressão é temperada ou quiçá acentuada, pelo vinco amargo que lhes alonga a comissura.

Pois não se estão vendo encantos capazes de abrasar uma alma juvenil e apaixonada?»

E já agora, não esqueceremos D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, que na História Genealógica da Casa Real, assim descreve a Princesa: «era alta do corpo, rosto redondo, olhos verdes, nariz proporcionado, boca grossa, a cor mui alva e rosada, aspecto majestoso, muito ar e graça em toda a disposição do corpo», o que, como é fácil de inferir, demonstra a influência da narrativa de D. MARGARIDA PINHEIRO e perfeitamente se ajusta ao que anteriormente disse sobre o vulto da Infanta e veracidade geral do seu retrato.

*

*        *

Vejamos agora o problema da técnica da pintura e autoria do quadro de Aveiro.

JOAQUlM DE VASCONCELOS constatou que «a técnica esfumada não é do efeito primitivo: basta comparar a cor da epiderme do rosto com a do peito e das mãos; ali suja, aqui clara,» e acrescenta: «temos ouvido citar o nome de Nuno Gonçalves como autor; basta considerar uma condição no processo de pintar, para rejeitarmos tal nome. Esta Pintura, assim como outra que examinamos, estão executadas sobre intonaco, isto é, a tábua está preparada com uma camada de gesso, sobre a qual o artista assentou as cores, as quais não têm velaturas; a tinta é delgada, com pouca transparência.»

A minha impressão é, também, de que o retrato do Museu de Aveiro não foi executado pelo mestre dos Painéis do Museu da Janelas Verdes. Porém, sobre o assunto e para finalizar, noticiarei a opinião do sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO que, estudando minuciosamente o quadro em Lisboa, trouxe novos e importantes argumentos ao debate, contrários à atribuição da autoria da execução do retrato ao pintor Nuno Gonçalves.

Da autoria da execução, acentuo, pois o ilustre Director do Museu Nacional de Arte Antiga reconhece que esta pintura do Museu de Aveiro acusa o espírito de Nuno Gonçalves, isto é, do autor dos painéis de S. Vicente.

«Quem executou este retrato? Por enquanto não é possível dizê-lo», escreve o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO.

Documentação a seu respeito não foi ainda descoberta, e se por acaso se descobrisse um dia o documento da encomenda do original de que provém esta pintura, poderia dar-se um caso / 176 / de confusão, pois o ilustre presidente da Academia Nacional das Belas Artes considera o painel de Aveiro uma cópia de original que desconhecemos.

«É indiscutível que este quadro não pode ser, em nenhuma hipótese, obra de Nuno Gonçalves, que nem sequer é português, e que não foi executado do natural», diz o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO.

Porquê?

«De facto, se a sua técnica, em que predominam os glacis sobre uma espessa base de cola e de gesso, nada tem de comum com a técnica do nosso grande pintor do século XV e se o seu esmalte nitidamente vitroso, se acha tão afastado da matéria que constitui a epiderme da obra deste artista e da dos outros pintores portugueses da época, a falta de modelado da máscara do personagem mostra que nos encontramos diante do trabalho dum copista; tanto mais que o poder pictural do artista, autor do quadro, se afirma com a maior segurança na tradução do vestuário assim como em outros detalhes, para a realização dos quais pôde certamente ter modelos diante dos olhos.»

JOAQUIM DE VASCONCELOS supôs que a madeira do suporte da pintura fosse carvalho. O sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO verificou que é nogueira, e a propósito argumenta:

«A madeira sobre que este retrato foi Pintado combate igualmente, até certo ponto, a atribuição que dele se tem feito a Nuno Gonçalves ou a um outro artista português da mesma época. Eu não a encontrei trata-se de nogueira até hoje, senão em dois painéis; e ambos muito tardios, da nossa escola, isto é, da segunda metade do século XVI. As outras pinturas portuguesas dos séculos XV e XVI que conheço, cujo número atinge algumas centenas, são todas executadas sobre carvalho ou castanheiro.

O facto do emprego desta última madeira, é quase sempre uma prova certa de que as pinturas provêm da escola chamada de Viseu, ou pelo menos da Beira; onde o castanheiro abunda.»

E o ilustre investigador declara de todo o ponto possível que o retrato de Aveiro seja obra de um dos pintores estrangeiros que, para tal fim, vieram então a Portugal.

Diz o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO:

«Se às características do quadro, já mencionadas, acrescentarmos o tom verde-azeitona do fundo, frequente nas obras dos Pintores da Renascença da Alemanha do Sul, talvez que nos não enganássemos atribuindo o quadro a um artista desta região. O espírito de Nuno Gonçalves que esta Pintura do Museu de Aveiro acusa, encontrar-se-ia assim explicado pelo facto de ela ter sido executada segundo um outro quadro do nosso grande mestre. E aproximando este retrato da obra do Pintor de D. Afonso V, é intencionalmente que falamos do espírito que a caracteriza. / 177 /

Em um artista que possua as faculdades excepcionais de qué dispunha Nuno Gonçalves, o que há de menos imitável na sua obra é precisamente tudo o que ele contém puramente e restritivamente objectivo».

Apesar desta afirmação, o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, declara não menosprezar a subjectividade que anima a obra de Nuno Gonçalves e que lhe dá a sua força essencial, subjectividade que não prejudica nada o seu poder objectivo, como é próprio da grande capacidade dos artistas da sua alta categoria.

«E esta proveniência artística do retrato da Princesa Santa Joana, continua o eminente director do Museu Nacional de Arte Antiga, teria lógica e não seria mesmo um caso isolado entre nós. Conhecemos, como filiação análoga e muito aproximada deste, sob o ponto de vista da época, fora de Portugal, outros retratos de personagens lusitanas.

«Um deles é o da imperatriz da Alemanha, Dona Leonor, filha do nosso rei D. Duarte e mãe do imperador Maximiliano, avô de Carlos V. Se nos lembrarmos de que Maximiliano foi, segundo a tradição, antes de desposar Maria de Borgonha, um dos pretendentes à mão da filha de D. Afonso V, este facto, a ser exacto, poderia explicar a origem do retrato do Museu de Aveiro.

«Neste caso, conclui o mesmo escritor, a cópia teria sido feita na Alemanha pelo original português que daqui teria sido enviado a pedido do imperador Frederico IlI.»

*

*        *

A solução dada ao problema pelo sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, é, como se vê, diversa da que até aqui tinha sido apresentada.

O retrato de St.ª Joana do Museu de Aveiro seria a cópia tirada por um pintor alemão e na Alemanha, de um retrato original ido de Portugal e aqui pintado por Nuno Gonçalves.

A hipótese é admissível porque os argumentos do sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO são, em verdade, impressionantes.

Mas, sem entrar na crítica da abalizada opinião do ilustre académico, não quero deixar de fazer um reparo que corresponde a uma dúvida do meu espírito: como se justificaria a vinda do retrato da Alemanha para Portugal quando o lógico seria a sua remessa de Portugal para o estrangeiro?

A descoberta de documentos nos arquivos e do retrato levado de Aveiro para Coimbra pelo bispo D, João de Melo, poderiam fornecer-nos elementos preciosos para uma resolução positiva deste problema de arte.

Finalizando: parece-me não estar encerrado o debate sobre a origem e autoria do retrato que nem mesmo perante a hipótese / 178 / do sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO deixou de ter altíssimo valor histórico e excepcional merecimento artístico.

O que considero bem morta é qualquer dúvida sobre o escrúpulo do restaurador de 1935 que, como ficou demonstrado, deixou perfeitamente intacta a figura que encontrou da poética, excelsa e santa filha de D. Afonso V, apesar do meu e seu desejo de se reintegrar o retrato, expurgando-o dos retoques que em remota época sofreu.

Creio, porém, que o critério oficialmente adoptado é digno de acatamento, pois assim, chamada a atenção da alta crítica para o quadro, pelas referências feitas na introdução ao Corpus da Academia Nacional de Belas-Artes, referências que tiveram uma publicidade internacional, mais proficuamente poderá um dia proceder-se ao trabalho definitivo da sua completa reintegração.

ALBERTO SOUTO
Director do Museu de Aveiro

 

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