ASSIM conhecida, a tábua
quatrocentista que se guarda no Museu Regional de Arte da cidade de
Aveiro, é o retrato fidedigno da princesa e infanta D. Joana, filha de
D. Afonso V e irmã de D. João lI.
Representa a infanta em traje de corte e deve ter sido tomado,
originariamente, antes da sua entrada no Convento, pois não é crível que
depois de recolhida ao seio duma comunidade religiosa, embora
mantendo-se como secular, a infanta despisse o hábito para envergar as
vestes da moda real e se prestasse a posar para o artista que a
retratou.
Se se trata efectivamente de uma cópia, o original deve ter sido pintado
durante a campanha de Arzila ou logo após a chegada de seu pai «o
Africano» à capital do Reino. O que é positivo é que este retrato se
encontrava há muito no Convento de Jesus, em cujo coro de cima foi
arrolado após a proclamação da República.
Parece ser o único
−
o único verídico
−
que resta dos vários que pela
tradição sabemos terem existido.
Pela tradição e pela história, afinal, e não apenas por aquela, direi
melhor, pois se podemos considerar tradição não só os relatos verbais
comunicados de geração em geração, mas também as pequenas crónicas
monásticas mais ou menos adornadas de lendas piedosas quase sempre
ingénuas e muitas vezes inverosímeis, devemos dar categoria histórica às
referências sérias de autores dignos de crédito ou de notória
responsabilidade, bem como aos verdadeiros documentos.
Um dos retratos da Princesa Infanta, também em traje do
século, levou-o para o seu paço o bispo de Coimbra D. João de
Melo, com assentimento das religiosas, quando em 1669, por
ordem do papa Inocêncio XI, veio a Aveiro proceder ao exame
das cinzas de D. Joana e fazer o inquérito para o processo da sua
beatificação.
/162 /
Esse retrato estava exposto no altar-mor da igreja de Jesus,
o que, parecendo estranho, pode admitir-se à vista dos painéis que na
capela-mor da mesma igreja historiam alguns episódios da vida de St.ª
Joana e em que a veneranda filha do africano é representada não só com o
hábito de noviça mas também, em
patente anacronismo, aliás, com indumentária secular.
Levou-o o bispo e desapareceu.
Procurou-o MARQUES GOMES em Coimbra inutilmente. Dele
ninguém sabe nem nos deixou qualquer outra notícia e não é
admissível a hipótese de que o retrato levado pelo bispo D. João
de Melo possa identificar-se com a St.ª Joana Princesa de Portugal que se
encontra na colecção da Universidade de Coimbra, pois este quadro, como
outro análogo do Museu de Aveiro, não passa de uma pintura de fantasia
sem veracidade e posterior ao
século XVII.
Tratava-se de colher elementos para um processo de beatificação. Vê-se dos autos que houve cuidado e escrúpulo no
exame da ossada. O bispo não deixaria de ler a passagem do códice 872 do
arquivo do Convento em que D. MARGARIDA PINHEIRO retrata a infanta e
relata pormenorizadamente a sua vida e a sua morte, e escolheria o
retrato que lhe parecesse mais perfeito.
Ora o pseudo-retrato do Museu de Aveiro, bem como o seu próximo parente
do Museu universitário, apresenta-nos a
Princesa vestida à moda do século XVIII segurando nos braços
o Menino-Deus. Já houve quem desconfiasse de que o pintor quis
colocar nos braços da Princesa o infante D. Jorge de Lencastre,
bastardo do rei seu irmão, D. João II, que no convento de Jesus,
com especial dispensa eclesiástica, a bondosíssima senhora criou como
príncipe e seu verdadeiro sobrinho.
O resplendor, aureolando a fronte do menino, tira-nos, porém, todas
as dúvidas.
O pintor desenhou e pintou uma St.ª Joana, falecida no século XV, como
desenharia e. pintaria uma dama da corte de Luís XV ou de D. João V e não lhe deu qualquer expressão
que denote terem sido as suas feições copiadas de um autêntico retrato.
Um painel nitidamente do século XVIII, em que a lnfanta já é apresentada como santa, não poderia ser levado para Coimbra
em 1669, 24 anos antes da beatificação que é de 4 de
Abril de 1693.
Temos de concluir, portanto, que o retrato de que D. João
de Melo se apoderou, era uma pintura coeva e fidedigna, e tinha
merecimento para ser posto no altar-mor da igreja e acompanhar o bispo
que procurava reconstituir a virtuosa vida e a santa morte da real
beatificanda.
Quem sabe se seria esse o retrato original, e o que hoje
possuímos uma mera cópia dele?
Esse retrato da Infanta teria presentemente um valor inestimável, pois, a tratar-se de uma tábua autentica do século XV,
/ 163 /
estudado à face da crítica moderna, podia lançar luz sobre muitas das
questões da nossa história artística e sobre alguns dos enigmas dos
painéis do Museu Nacional de Arte Antiga e do próprio quadro que temos
presente com a vera-efígie da Princesa-Infanta.
Infelizmente não seremos a seu respeito bafejados pela sorte que
bafejou a arqueologia pré-histórica portuguesa, há quatro anos, com a
descoberta das pinturas rupestres do Cachão da Rapa que eram dadas como
perdidas e que o Sr. Dr. Santos Júnior foi encontrar nas penedias do
Douro.
Daqui, porém, faço um apelo a todos os investigadores de velharias e de
história da Arte, para que continuem as pesquisas encetadas por MARQUES
GOMES em Coimbra, a ver se aparece ainda esse retrato da Infanta cujo
achado teria, sem dúvida, uma altíssima importância.
*
* *
É vasta a iconografia de St.ª Joana. O Sr. Dr. PEDRO VITORINO publicou
na Terra Portuguesa uma curiosa. colecção de registos e gravuras de que
existem alguns exemplares no Museu de Aveiro. Mas nenhuma dessas
gravuras reproduz os traços fisionómicos da Princesa. Não considero
também como um retrato, na rigorosa e corrente acepção do termo, a
gravura publicada no Anacephalaeoses, do padre ANTÓNIO DE VASCONCELOS, a
página 392 do Tomo I, edição de 1773, Coimbra, Typis Academicis.
Será essa a reprodução, alterada embora, da gravura de Boutats de que
nos deu notícia o falecido mestre Dr. JOAQUIM DE VASCONCELOS, afirmando
que fora feita na Flandres, sobre o retrato de Aveiro, na primeira
metade do século XVII, habilmente, mas com pouca fidelidade?
Confesso que não compreendo bem esta passagem do erudito crítico de
arte, pois não sei explicar-me como é que Boutats, na Flandres, poderia
gravar o retrato de Aveiro sem o ter presente, a não ser que lhe fosse
remetida uma cópia ou um desenho.
Ou será essa gravura do Artacephalaeoses (inferior, como gravura, à da
primeira edição, segundo me informa António da Rocha Madahil) uma
reprodução de qualquer outro retrato dos muitos que existiram?
Afirma MARQUES GOMES que na província havia muitos desses retratos, em
que St.ª Joana aparece com o hábito de freira. Dum desses «retratos» de
St.ª Joana, até hoje desconhecido, deu-me há pouco notícia o ilustre
professor do liceu de Santarém, Sr. Dr. José Barata. Não recebi ainda a
reprodução fotográfica, mas registo já a sua descoberta. Deverá
tratar-se de imagens, pinturas sem veracidade.
/ 164 /
O que tenho por demonstrado e firme, é que a tábua da colecção dos
primitivos do Museu que dirijo, conhecida desde sempre como Retrato de
St.ª Joana, é efectivamente um retrato,
verídico e autêntico, da excelsa irmã do Príncipe Perfeito, ou
tirado do natural, como até há pouco todos julgávamos, ou,
como pretende agora o Sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, copiado de um original
directo que poderia ter sido pintado por Nuno Gonçalves, isto é, pelo mestre dos célebres painéis encontrados em
S. Vicente de Fora e hoje expostos no Museu das Janelas Verdes.
*
* *
Do arquivo do extinto convento de Jesus que D. Brites
Leitão, viúva de D. Diogo de Ataíde, fundara em Novembro de
1458, ficou no Colégio de St.ª Joana das Terceiras de S. Domingos, que no mesmo edifício continuaram a vida
monacal após a
morte da última professa, e do Colégio transitou para o Museu
Regional após a República, um códice precioso, o n.º 872, em
que já falei, da autoria de D. MARGARIDA PINHEIRO.
Como se vê, do tempo da Princesa alguma coisa resistiu
aos séculos, guardada na penumbra do Convento: este e outro
códice que, como as relíquias, ninguém até hoje acusou de apócrifos. Primorosamente caligrafado em pergaminho, neste livro «é escrito
e se contém o nascimento, princípio e fundamento do
mosteiro e casa de Jesus» da então vila de Aveiro, bem como «a
notícia das pessoas que o fundaram nos edifícios e casa».
D. MARGARIDA PINHEIRO, e não D. Bernarda Pinheiro, como
por engano lhe chamou MARQUES GOMES no seu opúsculo sobre D. Joana de Portugal, não era uma criada da Infanta,
como o
mesmo autor disse na "Ilustração Moderna", do Sr. MARQUES DE
ABREU, certamente também por desculpável equívoco.
D. MARGARIDA PINHEIRO era uma religiosa do Convento de Jesus,
senhora de verdadeira cultura, que professara em 1467
−
uns cinco anos antes da vinda da Infanta para Aveiro
−
como se
verifica a página 116 do mesmo Códice: «no ano do Senhor de 1467 lançou-se o hábito a três
sobrinhas do padre Frei João de
Guimarães
−
Margarida Pinheira e sua irmã D. Catarina Pinheira e a lnez Eanes, prima
destas».
Urna fiel reprodução dessa valiosa obra saída de uma pena
feminina que sabia escrever com relevo e singular elegância,
feita pelo arquivista da Universidade, erudito investigador e
nosso patrício, ANTÓNIO DA ROCHA MADAHIL, vai ser em breve
publicada, estando quase concluída a sua impressão.
Na fl. 48 desta obra coeva, começa a biografia da Senhora
lnfanta ou seja o «memoriai da mui excelente Princesa e mui
virtuosa Senhora a Senhora Dona Joana, nossa Senhora filha do
/ 165 / mui Catholico e Christianissimo Rei Don Afonso Quinto e da Senhora
Rainha D. lzabel sua Molher».
D. MARGARIDA PINHEIRA conviveu com a Princesa, não como
sua serviçal mas como irmã, e certamente até com a ascendência natural
de hierarquia monástica, pois era religiosa professa, e a Infanta, que
não passou nunca de simples noviça, cumpria fielmente a regra. A sua
narrativa tem por isso especial autoridade e o seu testemunho
indubitável valor, tanto mais quanto é certo que a Princesa Infanta não é
por ela considerada uma santa do agiológio, mas uma senhora de admirável
virtude.
Diz D. MARGARlDA PINHElRA:
«Corria por todas as partes da Cristandade a fama da grande excelencia da
fermosura e industria do entender e saber desta
Infanta-Princesa e todos os Reis e Principes de diversos Reinos
punha em grande cobiça e desejo de a ver e ouvir e porque lhes era
impossivel pela distancia e alongamento dos Reinos e terras mandavão
pintores muito perfeitos que a vissem e tirassem pelo
natural, para poderem assim pintada gozar de tanta fermosura.»
A esta fonte foram beber todos os cronistas e escritores que se têm
ocupado da vida de St.ª Joana incluindo. FREI LUÍS DE SOUSA, mas
excluindo, é claro, RUI DE PINA, e por isso não me deterei a aproveitar
outros testemunhos menos valiosos e posteriores.
A Princesa foi retratada por vários e bons pintores estrangeiros para os
quais posou, porque a tiraram do natural, como nos assevera a monja
historiadora do Convento de Jesus.
É bem possível que pelas galerias europeias exista ainda hoje alguma
dessas tábuas levadas de Portugal pelos pintores quatrocentistas aqui
mandados pelos príncipes da época, mas o
que não é crível é que, florescendo então em Portugal a arte do retrato
e tendo tido D. Afonso V ao seu serviço numerosos pintores, a Princesa
não tivesse sido retratada por nenhum artista nacional.
Não é crível, e porque tal seria um absurdo, temos de admitir que D.
Joana foi retratada por artistas portugueses e estrangeiros antes da sua
entrada em Odivelas, ou, pelo menos, antes da sua vinda para Aveiro,
onde chegou com 20 anos de idade.
*
* *
Outros retratos nos ficaram da sua família; e o do seu bisavô, D. João
I, identificado por JOAQUIM DE VASCONCELOS, encontra-se na antiga
Galeria Imperial de Viena de Áustria.
Nos painéis de S. Vicente, segundo o Sr. Dr. JOSÉ DE FIGUElREDO,
vê-se a figura de seu pai, de sua mãe, de seu irmão, de sua
/ 166 /
avó, de seu tio o infante D. Henrique, etc. e todas as outras interpretações dos célebres painéis admitem a autenticidade de
vários retratos de pessoas reais que ali estão representadas.
O Infante de Sagres tem o seu retrato em Paris, na Crónica da Guiné de
GOMES EANES DE AZURARA. D, Afonso V está retratado nas tapeçarias de
Pastrana, que eu tive a satisfação de ver em Madrid, já colocadas no
Museu do Prado, em vésperas de projectado restauro. Ao tempo, era de
uso corrente retratarem-se
pelo pincel os personagens importantes, não se devendo esquecer que as
obras de arte, como diz o ilustre Presidente da Academia Nacional de
Belas Artes, viajavam mais do que os homens.
É o caso, referido pelo mesmo erudito investigador, do retrato de
Jean
sans Peur, pintura de Jean Malouel, oferecido pelo próprio duque de
Borgonha ao nosso rei D. João I; é o caso de D. Afonso V, escusando-se
para com o cronista Azurara, que se encontrava em África, de lhe não
mandar o seu vulto pintado por o não ter na ocasião; é o caso do retrato
da imperatriz da Alemanha, D. Leonor, filha do nosso D. Duarte; é o
caso de terem vindo a Portugal vários pintores estrangeiros para
retratarem a filha de D. Afonso V, de cujos dotes de beleza voara a fama
pelas cortes de toda a Europa, cobiçosas já então
de uma aliança pelo sangue com a corte de Portugal.
Não admira, pois, que seja a verídica figura da Princesa-Infanta D.
Joana, a que se vê na tábua quatrocentista do Museu desta cidade.
*
* *
Que estamos na presença de um painel do século XV, não
resta dúvida. Na lntroduction au Récueil de Documents publiés par l'Académie Nationale des Beaux-Arts, diz o sr.
Dr. JOSÉ DE
FIGUEIREDO, com a sua especial autoridade:
«Quando se examina o quadro, constata-se que se está em frente de uma
pintura que apresenta todas as características da época em que viveu a
filha do rei D. Afonso V. Preparação do suporte, técnica, traje, espírito, tudo é bem do tempo a que pertencia o modelo.»
E o ilustre director do Museu de Arte Antiga, neste ponto de inteiro acordo com as opiniões dos mais notáveis críticos que tenho
ouvido, afasta em seguida todas as dúvidas sobre a autenticidade do
retrato. Não só pela tradição consagrada, mas pelo anel com o rubi que
ela menciona no testamento, pela comparação da máscara com a do irmão
que se vê retratado nos painéis de S. Vicente, e ainda pelos detalhes do
vestuário que tanto se aproximam dos do vestuário da Rainha sua Mãe nos mesmos painéis, conclui que a figura do quadro de Aveiro
não pode ser outra senão a da irmã de D. João II.
/ 167 /
Para os adeptos da interpretação dada pelo sr. Dr. José Saraiva aos
painéis do Museu das Janelas Verdes, não deve haver relutância em
admitir a autenticidade do retrato de Aveiro, pois que se o menino que
se vê no painel do Infante fosse D. Afonso V e não o Príncipe-Perfeito
em criança, nada importaria, pois a verdade é que frequentemente os filhos reproduzem
os traços fisionómicos dos pais na meninice, e a semelhança da jovem de
18 anos da tábua de Aveiro com o menino do painel do Infante é
incontestável.
Cheguei já a admitir a hipótese de estar retratada no mesmo painel do
Infante, não a mãe de D. Joana, mas a própria Infanta.
Em Janeiro de 1927 escrevia eu ao secretário da Associação dos
Arqueólogos de Lisboa, Sr. FRAZÃO DE VASCONCELOS, director da revista
Brasões e Genealogias, como se vê da separata do n.º 2 desse arquivo:
«O vestuário é o mesmo, até, da figura real que no painel do Infante
ajoelha no primeiro plano à esquerda, em frente de D. Afonso V, ou do
pseudo D. Afonso V, e que o sr. dr. José de Figueiredo julga ser a
Rainha D. Isabel, do que não discorda inteiramente o sr. dr. José
Saraiva. Difere a touca: no retrato do Museu de Aveiro, cingindo os
cabelos, contornando a cabeça elegante, cobrindo a testa, quase só o
diadema de pedrarias...
A semelhança do retrato do painel do Infante, com o retrato
de St.ª Joana, é flagrante. Será a mãe de St.ª Joana ou será a própria
filha de D. Afonso V?».
O sr. ARMANDO LASSANCY (pseudónimo), num estudo publicado nesse mesmo
número de Brasões e Genealogias, adoptou abertamente a ideia de ser a
Princesa D. Joana a figura feminina ajoelhada no painel do Infante:
«...quem com atenção olhar para os dois retratos não poderá
deixar de concordar que são ambos da mesma pessoa. No Museu de Aveiro apresenta-se
a Infanta de mais idade, já com anel de prometida. Claro que os rostos
das pessoas modificam-se com a
idade. Uma rapariga aos doze ou treze anos não tem a mesma
cara que aos dezasseis ou dezassete, depois de já ser mulher. Mas
repare-se no nariz, na boca, nas sobrancelhas e não poderemos deixar de
concordar que é a mesma pessoa que em ambos foi retratada. Passe-se
depois a examinar o colo e o fato. Lá vemos, nos dois, uns fios e umas
rendas semelhantes. No dos painéis, está ricamente vestida, tendo na
cabeça um chapéu ornado de lírios azuis, de alto significado
nobiliárquico.»
Depois de observar directamente os painéis no Museu das Janelas Verdes,
fiquei com maiores dúvidas. São certas as afinidades: mãos, corpete,
rendas, colo, pescoço, olhar e sobrancelhas, ombros descaídos, expressão fisionómica; mas os lábios
e o nariz parecem-me diferir tanto que me retraí muito na defesa da
hipótese da identidade dos dois retratos. Mas, como em
/ 168 /
1927,convictamente afirmo hoje:
−
«o que se não pode negar é a
identidade de traços fisionómicos, o ar de família, a semelhança
que existe entre o retrato de Santa Joana do Museu de Aveiro e as
figuras reais do políptico das Janelas Verdes!».
Poderia sofrer reparo o facto de se afirmar a semelhança
fisionómica da Infanta com a mãe, na hipótese de JOSÉ SARAIVA,
isto é, considerando-se ser o menino o pai de St.ª Joana e não
seu irmão, o príncipe D. João, mais tarde D. João II, pois se
assegurou que havia parentesco fisionómico do retrato de Aveiro
com o retrato do menino que viria a ser o pai da Infanta.
Nem mesmo nesta hipótese resulta absurda a duplicidade
de semelhança com o pai e a mãe simultaneamente, sendo os
futuros pai e mãe tão jovens, e antes da concepção, desde que
nos recordemos de que a mãe da Infanta era prima direita do
pai, pois que, como se sabe, a rainha D. Isabel era filha do
mártir de Alfarrobeira, tio paterno de D. Afonso V.
De resto, há famílias em que o ar de parentesco, o traço
comum fisionómico, são muito mais acentuados em todos os
membros do grupo, do que noutras famílias não menos puras
de sangue e honestas de costumes, em que esse nexo fisionómico se não manifesta ou se dilui rapidamente.
Podemos admitir que na ínclita geração de Avis o ar de família fosse muito acentuado, imprimindo carácter a toda a
parentela, porque não só os painéis de S. Vicente o demonstram,
mas ainda o retrato de Carlos, o Temerário, neto de D. João I
por sua mãe D. Isabel, casada com Felipe o Bom, duque de
Borgonha, é de manifesta parecença com o do duro e tenaz
infante D. Henrique, e a cor loira dos cabelos da Princesa
D. Joana parece resultar da hereditariedade, do elemento genético
descendente de Lencastre, vindo de D. Filipa, sua bisavó, mulher do fundador da dinastia, através de seu avô o rei D. Duarte
e de seu pai e sua mãe, ambos netos da Inglesa, tão digna esposa do rei de Boa-Memória.
*
* *
D. MARGARIDA PINHEIRO descreve assim o vulto da Senhora Infanta:
«Era no rostro e corpo muy aposta: a fronte muito graciosa. os olhos
verdes muito fremosos. ho naryz meão e de boa feyçam.
a boca grossa e revolta. Rosto redondo. ho caram alvo cõ alguma,
quantaquer, côr bem posta. muito fremosa gargãta e mãos mais
do que se podesse achar e ver a nenhuma outra mulher. alta e
grãnde de Corpo dereyto. muy aposto e ayroso. a vista e Representação de grãde Senhora e estado.»
Ora o retrato de Aveiro é perfeitamente concordante e
harmónico com esta descrição do Códice n.º 872. A boca
/ 169 /
[Vol. III - N.º 10 - 1937]
curta, mas grossa e revolta como a do príncipe que ajoelha no
painel do Infante. O nariz não é aquilino como o da figura feminina ajoelhada no mesmo painel, é meão. A cara, apesar de
retocada em tempos longínquos, é branca com alguma cor bem
distribuída, sem afoguear ou avermelhar demasiado as maçãs
do rosto, e o pescoço e as mãos são, em verdade, de uma nobreza excepcional, próprios de distinta estirpe e alta linhagem.
A cor dos olhos não se constata em uma observação ligeira,
mas, bem vistas as pupilas e examinadas com uma lupa, lá está
o verde, um verde discreto, que é raro, e parece ser apanágio de almas
profundas e belezas peregrinas.
E para que nenhuma dúvida nos restasse, a âmbula de
prata do relicário da Infanta-Santa, do tesouro do Museu, mostra-nos um anel de cabelo loiro, cor que apesar das alterações
sofridas, persiste, de uma maneira geral, nas madeixas que
caem pelos ombros estreitos da figura real do retrato de Aveiro.
E essa cor loira, dos cabelos da Princesa, foi objecto de
uma tradição iconográfica, baseada certamente numa tradição
oral e nos retratos autênticos, tradição seguida por todos os
pintores que procuraram representar a filha de D. Afonso V no
século seguinte ao da sua beatificação. O loiro dos cabelos aparece efectivamente nos painéis, datados, da
capela-mor da Igreja
de Jesus, nos painéis da cela em que morreu a Infanta, nos
pseudos-retratos do século XVIII de Aveiro e Coimbra, a que
me referi acima, e ainda nos outros quadros setecentistas de
não menos anacrónica indumentária que se encontram no Museu desta
cidade.
*
* *
Como elementos de identificação, estes bastam e nenhuma
objecção séria e consciente, afinal, até hoje se formulou.
A cor primitiva exacta dos cabelos do retrato é que constitui um problema.
O anel do cabelo do relicário é, como disse, loiro, de um
loiro transparente, quase estriga de linho. E possível que 426
anos lhe tenham roubado cor; é bem possível, sim, que esses quase quatro
séculos e meio tenham desmaiado os preciosos
cabelos ali guardados, e é positivo que os cabelos do retrato
sofreram alterações que lhes devem ter mudado, dentro da cor
loira que subsiste, o tom primitivo hoje difícil de determinar.
Mas o fundo de oiro tradicional desses cabelos mantém-se,
e comprova-se facilmente no retrato, sobretudo quando sobre ele incide uma luz intensa e não espelhante. O sr.
Dr. José de
Figueiredo que, como vimos, reconhece no quadro de Aveiro
todos os caracteres duma pintura do fim do século XV e que
não admite a possibilidade de se tratar doutra personagem
/ 170 /
que não seja a irmã de D. João II, pergunta se o tom exacto dos cabelos
da princesa, tais como os pintou o autor do retrato, seria o castanho
dourado, ligeiramente cor de cinza ou se o castanho dourado, fortemente
ruivo. É que, em seu douto entender, a camada superior da pintura
desapareceu e a causa desse desaparecimento foi não resistirem as cores
de terra de sena de pouco corpo, que serviram para pintar os cabelos,
ao ingrediente de base alcalina com que se tentou lavar a pintura, enquanto
as outras cores nada sofreram com este acto bárbaro, graças à sua
grande solidez.
Isto não impede que se reconheça valor a esse elemento de identificação
nem obsta a que, por força dele mesmo, se dê como segura a autenticidade
deste retrato que as freiras de Jesus conservaram no seu coro, em lugar
de honra, como conservaram no altar-mor da igreja o outro que o bispo D.
João de Melo transferiu para Coimbra e que, provavelmente, mandou para
Roma com o processo de beatificação.
*
* *
A tábua do Museu de Aveiro era quase desconhecida até 1895. MARQUES
GOMES não falou nela nas Memórias de Aveiro, de 1875, nem se lhe
referiu a propósito da exposição de 1889.
Apesar de tudo quanto é moda agora dizer-se, o extraordinário século
XIX produziu em Portugal, depois da pacificação das nossas lutas
políticas, um interessante élan cultural dimanado do movimento de
renovação que as ideias liberais trouxeram
ao país.
Aveiro foi uma das cidades do acanhado meio português em que mais se
sentiu o reflexo do espírito novo do século, que produziu aqui, simultaneamente, um grande civismo, uma obra de investigação histórica e
valorização artística, um anseio de melhoramentos de ordem material e um
carácter popular bondoso e tolerante que fez da curiosa cidadezinha da Beira-mar
uma das nossas terras mais pacíficas e de menor criminalidade, sem
deixar de ser ciosa das suas tradições e regalias.
Pena foi que a decadência geral do baixo constitucionalismo tivesse
deixado atrasar toda a nação do ritmo civilizatório em que caminhava o
mundo!...
Ora no último quartel do século passado, Aveiro, que sob o impulso
vigoroso de José Estêvão salvara a sua riqueza aquícola e toda a sua
vida económica com as formidáveis obras da barra, que vira passar aqui o
caminho de ferro, estenderem-se os fios do telégrafo, iniciar-se e
desenvolver-se a viação ordinária, erguer-se o Liceu, abrir-se o asilo e
congregar-se à sua volta um distrito belo e activo, realizou duas
exposições de arte que marcaram na campanha de recuperação e disciplinamento
/ 171 /
artísticos do país, que infelizmente foi prejudicada pela rapina
duns, pela ignorância doutros e pela diminuta mentalidade dos
governantes.
Lisboa fizera a exposição de arte ornamental de 1882, reunindo riquezas
de toda a província, e o nosso distrito teve a honrosa representação.
Quando se encerrava a exposição de Lisboa, abria Aveiro uma exposição
distrital promovida pelo Grémio Moderno, que teve lugar na escola
primária de Vera-Cruz, exposição essa de iniciativa de MARQUES GOMES e
em comemoração do centenário do Marquês de Pombal. Foi notabilíssima!
No seio da comissão organizadora viam-se os nomes de Mendes Leite, do
par do reino Casimiro Barreto Ferraz Sachetti,
do visconde de Azinheira, de Sebastião de Carvalho e Lima
(pai de Sebastião e Jaime de Magalhães Lima), do presidente da
Associação Comercial, Agostinho Pinheiro, do engenheiro Silvério Pereira
da Silva, de Manuel Firmino, Gustavo Pinto Basto e Francisco Regala; de
António Ferraz Sachetti, do Vigário Geral, padre José Cândido Gomes de
Oliveira Vidal, do Dr. César de
Sá, do médico Artur Ravara, de Carlos Faria, João Romão,
Jaime Lima, Melo Freitas, Barbosa de Magalhães, Aníbal Fernandes Tomaz,
etc!
Em 1895 repetiu-se o empreendimento, desta vez restrito a arte sacra,
tendo lugar no Convento de Jesus e fazendo parte da Comissão, entre
outros, o visconde de Alenquer, Aníbal Fernandes Tomaz, os drs. Manuel
Joaquim Massa e Melo Freitas, Luís da Silva Melo Guimarães, o engenheiro Melo de Matos,
Marques Gomes e Silva Rocha, único sobrevivente.
Foi então que o falecido mestre Dr. JOAQUIM DE VASCONCELOS, o
inolvidável nome ligado a essa grande figura de mulher de letras que se
chamou CAROLINA MICHAELIS, escreveu os célebres
artigos do Comércio do Porto que tantos ensinamentos nos legaram
e que, com a obra de MARQUES GOMES, tanto contribuíram
para se dar à sociedade aveirense a consciência dos valores artísticos
que nesta cidade se encontravam.
JOAQUIM DE VASCONCELOS colaborara já com MARQUES GOMES no soberbo
catálogo da Exposição de 1882, cujos exemplares começam a ser raros, e
que saiu ilustrado com magníficas fototipias de Emílio Biel.
Foi a exposição de arte religiosa do Convento de Jesus de 1895 que lhe forneceu o ensejo de tornar conhecido e devidamente
apreciado o retrato de St.ª Joana a que me estou referindo, e cujo recente restauro satisfaz tanto a minha devoção
artística como me satisfaria ver concluídas as grandes obras do edifício
do Museu, obras que constituem hoje a minha maior aspiração de aveirense
e de director desse estabelecimento.
/ 172 /
*
* *
No primeiro dos seus artigos, disse JOAQUiM DE VASCONCELOS:
«A fundação do real Convento de Jesus em 1462 e a sua
crónica, sobretudo desde a entrada em 1472 da princesa D. Joana,
filha de D. Afonso V, resumem uma boa parte da história da cidade até à
extinção das Ordens religiosas. Como em Arouca, Lorvão e Santa Clara de
Coimbra (fundações e jazigos de outras princesas ilustres) formou-se
dentro da clausura no correr dos séculos um precioso museu de arte e uma
escola de lavores de todo o género, que conservam ainda hoje uma feição
local, com atractivos e até encantos capazes de subjugar o espírito mais
rebelde.
Sobre o claustro cingido de formosas capelas, onde os mais deliciosos
azulejos luzem discretamente numa fresca e perfumada penumbra, paira
ainda o espírito gentil que dentro daqueles muros se enterrou
voluntariamente, renunciando aos esplendores do trono, num século em
que a mão de uma infanta portuguesa pesava a valer na balança do
equilíbrio europeu.
Olha o visitante para o seu formoso rosto melancólico
−
numa
preciosa pintura coeva, suspensa no coro alto
−
e por detrás surge a
tragédia de Setúbal, e o cadafalso de Évora, um próximo parente
apunhalado pelo irmão (D. João II), e outro parente, o duque de
Bragança, cuja cabeça viu talvez em sonhos, rolando no pó do Alentejo,
com uma penada do mesmo irmão.
Como viveu até 1490, viu tudo isso e o mais que encheu o reino de
pavor e de admiração no curto mas glorioso e fecundo reinado do Príncipe Perfeito (14 anos).
Essa única obra, o retrato da princesa, vestida com todo o esplendor da
corte, mas triunfante. sobretudo pela sua ideal beleza, vale uma viagem
a Aveiro. É um encanto! Foi gravada no princípio do século XVIl, em Flandres,
por Boutats, habilmente
mas com pouca fidelidade, e parece não ter sido reconhecida até hoje na
sua importância capital como Pintura coeva, intacta, facto que terá de
ser comprovado com razões intrínsecas e técnicas. Deixamos essa
tarefa para outro lugar pondo aqui em evidência somente a figura
histórica que criou o singular e raro museu donde saiu o melhor quinhão
para a exposição de arte religiosa de Aveiro.»
A promessa do ilustre crítico e investigador cumpriu-se mais tarde.
Na Arte Religiosa em Portugal, JOAQUIM DE VASCONCELOS versou com maior
largueza o assunto, certamente depois de fazer novo exame e estudo do
painel que lhe mostraram ser a
tábua de 0,60 m de altura por 0,40 de largura, com 7 milímetros
/ 173 / de espessura e estar já «bastante carcomida nas extremidades,
apresentando numerosos furos das larvas dos vermes».
Nessa publicação escreveu então o seguinte:
«Além da preciosa touca há a notar, como enfeite, o anel de
ouro com um grande carbúnculo, uma espécie de pulseira formada por um
laço de galão de ouro talvez com significação simbólica que nos
escapa. Um grosso cordão de ouro, torcido em quatro
voltas, acompanha o recorte da camisa, mas não tem jóia pendente,
nem sequer a Pérola tradicional».
«Para adorno de uma princesa e de uma noiva
− todo o aspecto da figura largamente decotada, o movimento da mão posta
sobre o coração, indicam que se trata, com efeito, de uma
noiva
−
parece-nos modesto o atavio se não fora a preciosa touca.»
E descrevendo a touca diz que ela é formada por grossos
cordões de fio de ouro torcido nos quais o joalheiro enclausurou
uma abundância de pedraria rara: rubis, safiras e pérolas. A
touca compõe-se de duas tiras largas que descem sobre o diadema da frente e se prendem a dois cantos menores que a
fecham dos lados.
JOAQUIM DE VASCONCELOS verificou já, nesse tempo, a alteração da pintura primitiva dos cabelos, que só poderia constituir
novidade em 1936 para quem nunca tivesse visto o painel. Atribuir o desgaste e retoque dos cabelos do quadro ao restaurador
de 1935, seria, além de imperdoável injustiça, um erro grave devido ao desconhecimento da tão conhecida bibliografia do retrato
da Infanta.
Tendo-se presente o que acima escrevi, veja-se agora o que
JOAQUIM DE VASCONCELOS disse sobre o problema dos cabelos da
Princesa e do retrato, problema tratado em 1935 pelo sr. Dr.
JOSÉ DE FIGUEIREDO na citada lntroduction au Récueil de Documents Publiés par
l'Académie Nationale des Beaux-Arts e por
mim no Povo de Aveiro:
«O maior ornamento e o mais encantador, não seria a touca
cintilante; deveriam sê-lo os maravilhosos cabelos louros que descem em abundantes ondas
sobre o busto.»
«Infelizmente o retocador destruiu esse encanto!»
Sobre os olhos, para provar que eles, no retrato, são verdes,
como os descreveu D. MARGARIDA PINHEIRO no Códice n.º 872, JOAQUIM DE
VASCONCELOS disse, a meu ver com inteira exactidão:
«Não tocou (o retocador) por fortuna, nos olhos garços que na estampa parecem muito escuros; o cronista afirma que eram verdes».
/ 174 /
E continuando, o erudito publicista escreve assim:
«Como geralmente acontece com as belezas loiras, a tez rosada
do rosto, a alvura acetinada do pescoço e do colo andam associadas; a
suavidade da epiderme, a elegância intencional da mão aristocrática, o
pescoço alto, os ombros descaídos denunciam a raça. Acresce a expressão
reservada: o segredo dos lábios firmemente cerrados, onde se desenha
já nos cantos um vinco amargo.»
Atente agora o leitor no período seguinte que tem a maior importância
perante as críticas ao restauro recente:
«O nariz um tanto longo, mas muito delgado e mais ainda a pequena boca,
contrastam com as faces muito cheias: eu diria
inchadas se um exame cuidadoso da pintura não me indicasse que
houve indiscretos retoques na carnação...»
Isto, como se vê, foi escrito por JOAQUIM DE VASCONCELOS na Arte Religiosa em Portugal, cujo fascículo 8.º foi publicado no Porto,
pela casa Biel, em 1914, isto é, há 23 anos, sendo o estudo do autor de
alguns anos antes, pelo menos do tempo da organização e abertura do
Museu Regional, a que fez repetidas visitas.
*
* *
Não passarei adiante sem invocar ainda HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA,
entre os numerosos escritores que se têm referido ao
retrato de St.ª Joana, não para discutir com ele o problema das causas
do recolhimento da Infanta ao Convento de Jesus, pois tratei esse
problema no Povo de Aveiro em 1928, mas apenas para transcrever
este
interessante trecho do brilhante académico, que se lê na separata do
Boletim da Segunda Classe da Academia de Ciências de Lisboa, Vol. XII; Coill1bra,
1919:
«A beleza da Infanta é atestada pelo retrato hoje existente no Museu
Regional de Aveiro. Seus cabelos louros descem sobre o busto virginal,
destituído de mulíebres turgências. A cabeça oval, entoucada de fios de
ouro em que encastram pedrarias e Pérolas,
pousa sobre o colo que prolonga o decote aberto na camisa de cambraia,
bordada a seda preta.
O corpete de brocado de ouro, com bordado semelhante, acusa
o descaimento dos ombros franzinos.
Da manga golpeada do vestido emerge a mão direita, fina e
alva, em cujo índice rutila um carbúnculo.
/ 175 /
E se nos lábios grossos se vislumbra profanidade de anelos, essa vaga
expressão é temperada
−
ou quiçá acentuada, pelo vinco amargo que lhes
alonga a comissura.
Pois não se estão vendo encantos capazes de abrasar uma alma juvenil e
apaixonada?»
E já agora, não esqueceremos D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, que na
História Genealógica da Casa Real, assim descreve a Princesa: «era alta
do corpo, rosto redondo, olhos verdes, nariz proporcionado, boca
grossa, a cor mui alva e rosada, aspecto majestoso, muito ar e graça em
toda a disposição do corpo», o que, como é fácil de inferir, demonstra a
influência da narrativa de D. MARGARIDA PINHEIRO e perfeitamente se ajusta ao que anteriormente disse sobre o vulto da Infanta e veracidade geral do seu
retrato.
*
* *
Vejamos agora o problema da técnica da pintura e autoria
do quadro de Aveiro.
JOAQUlM DE VASCONCELOS constatou que «a técnica esfumada
não é do efeito primitivo: basta comparar a cor da epiderme do rosto com
a do peito e das mãos; ali suja, aqui clara,» e acrescenta: «temos
ouvido citar o nome de Nuno Gonçalves como autor; basta considerar uma
condição no processo de pintar, para rejeitarmos tal nome. Esta
Pintura, assim como outra que examinamos, estão executadas sobre intonaco, isto é,
a tábua está
preparada com uma camada de gesso, sobre a qual o artista assentou as
cores, as quais não têm velaturas; a tinta é delgada, com pouca
transparência.»
A minha impressão é, também, de que o retrato do Museu de Aveiro não foi
executado pelo mestre dos Painéis do Museu da Janelas Verdes. Porém,
sobre o assunto e para finalizar, noticiarei a opinião do sr. Dr. JOSÉ
DE FIGUEIREDO que, estudando minuciosamente o quadro em Lisboa, trouxe
novos e importantes argumentos ao debate, contrários à atribuição da
autoria da execução do retrato ao pintor Nuno Gonçalves.
Da autoria da execução, acentuo, pois o ilustre Director do Museu
Nacional de Arte Antiga reconhece que esta pintura do Museu de Aveiro
acusa o espírito de Nuno Gonçalves, isto é, do autor dos painéis de S.
Vicente.
«Quem executou este retrato? Por enquanto não é possível
dizê-lo», escreve o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO.
Documentação a seu respeito não foi ainda descoberta, e se por acaso se
descobrisse um dia o documento da encomenda do original de que provém
esta pintura, poderia dar-se um caso
/ 176 /
de confusão, pois o ilustre presidente da Academia Nacional das
Belas Artes considera o painel de Aveiro uma cópia de original
que desconhecemos.
«É indiscutível que este quadro não pode ser, em nenhuma
hipótese, obra de Nuno Gonçalves, que nem sequer é português, e
que não foi executado do natural», diz o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO.
Porquê?
«De facto, se a sua técnica, em que predominam os glacis sobre uma espessa base de cola e de gesso, nada tem de comum com a
técnica do nosso grande pintor do século XV e se o seu
esmalte nitidamente vitroso, se acha tão afastado da matéria que
constitui a epiderme da obra deste artista e da dos outros pintores
portugueses da época, a falta de modelado da máscara do personagem mostra que nos encontramos diante do trabalho dum
copista; tanto mais que o poder pictural do artista, autor do quadro, se afirma com a maior segurança na tradução do vestuário
assim como em outros detalhes, para a realização dos quais pôde
certamente ter modelos diante dos olhos.»
JOAQUIM DE VASCONCELOS supôs que a madeira do suporte
da pintura fosse carvalho. O sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO verificou que é
nogueira, e a propósito argumenta:
«A madeira sobre que este retrato foi Pintado combate igualmente, até
certo ponto, a atribuição que dele se tem feito a Nuno
Gonçalves ou a um outro artista português da mesma época. Eu
não a encontrei
−
trata-se de nogueira
−
até hoje, senão em dois
painéis; e ambos muito tardios, da nossa escola, isto é, da segunda
metade do século XVI. As outras pinturas portuguesas dos séculos XV e XVI que conheço,
cujo número atinge algumas centenas,
são todas executadas sobre carvalho ou castanheiro.
O facto do emprego desta última madeira, é quase sempre
uma prova certa de que as pinturas provêm da escola chamada de Viseu, ou
pelo menos da Beira; onde o castanheiro abunda.»
E o ilustre investigador declara de todo o ponto possível
que o retrato de Aveiro seja obra de um dos pintores estrangeiros que,
para tal fim, vieram então a Portugal.
Diz o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO:
«Se às características do quadro, já mencionadas, acrescentarmos
o tom verde-azeitona do fundo, frequente nas obras dos Pintores
da Renascença da Alemanha do Sul, talvez que nos não enganássemos
atribuindo o quadro a um artista desta região. O
espírito de Nuno Gonçalves que esta Pintura do Museu de Aveiro acusa, encontrar-se-ia assim explicado pelo facto de ela ter sido executada
segundo um outro quadro do nosso grande mestre. E
aproximando este retrato da obra do Pintor de D. Afonso V, é
intencionalmente que falamos do espírito que a caracteriza.
/ 177 /
Em um artista que possua as faculdades excepcionais de qué dispunha Nuno
Gonçalves, o que há de menos imitável na sua obra é precisamente tudo o
que ele contém puramente e restritivamente objectivo».
Apesar desta afirmação, o sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO, declara não
menosprezar a subjectividade que anima a obra de Nuno Gonçalves e que
lhe dá a sua força essencial, subjectividade que não prejudica nada o
seu poder objectivo, como é próprio da grande capacidade dos artistas da
sua alta categoria.
«E esta proveniência artística do retrato da Princesa Santa
Joana,
continua o eminente director do Museu Nacional de Arte Antiga, teria
lógica e não seria mesmo um caso isolado entre nós. Conhecemos, como
filiação análoga e muito aproximada deste, sob o ponto de vista da época,
fora de Portugal, outros retratos de personagens lusitanas.
«Um deles é o da imperatriz da Alemanha, Dona Leonor, filha do nosso rei
D. Duarte e mãe do imperador Maximiliano, avô de Carlos V. Se nos
lembrarmos de que Maximiliano foi, segundo a tradição, antes de desposar
Maria de Borgonha, um dos pretendentes à mão da filha de D. Afonso V,
este facto, a ser exacto,
poderia explicar a origem do retrato do Museu de Aveiro.
«Neste caso, conclui o mesmo escritor, a cópia teria sido feita
na Alemanha pelo original português que daqui teria sido enviado a
pedido do imperador Frederico IlI.»
*
* *
A solução dada ao problema pelo sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO,
é, como se vê, diversa da que até aqui tinha sido apresentada.
O retrato de St.ª Joana do Museu de Aveiro seria a cópia tirada por um
pintor alemão e na Alemanha, de um retrato original ido de Portugal e
aqui pintado por Nuno Gonçalves.
A hipótese é admissível porque os argumentos do sr. Dr.
JOSÉ DE FIGUEIREDO são, em verdade, impressionantes.
Mas, sem entrar na crítica da abalizada opinião do ilustre académico,
não quero deixar de fazer um reparo que corresponde a uma dúvida do meu
espírito: como se justificaria a vinda do retrato da Alemanha para
Portugal quando o lógico seria a sua remessa de Portugal para o
estrangeiro?
A descoberta de documentos nos arquivos e do retrato levado de
Aveiro para Coimbra pelo bispo D, João de Melo, poderiam fornecer-nos
elementos preciosos para uma resolução positiva deste problema de arte.
Finalizando: parece-me não estar encerrado o debate sobre a origem e
autoria do retrato que nem mesmo perante a hipótese
/ 178 / do sr. Dr. JOSÉ DE FIGUEIREDO deixou de ter altíssimo valor
histórico e excepcional merecimento artístico.
O que considero bem morta é qualquer dúvida sobre o
escrúpulo do restaurador de 1935 que, como ficou demonstrado,
deixou perfeitamente intacta a figura que encontrou da poética,
excelsa e santa filha de D. Afonso V, apesar do meu e seu
desejo de se reintegrar o retrato, expurgando-o dos retoques
que em remota época sofreu.
Creio, porém, que o critério oficialmente adoptado é digno
de acatamento, pois assim, chamada a atenção da alta crítica
para o quadro, pelas referências feitas na introdução ao Corpus
da Academia Nacional de Belas-Artes, referências que tiveram
uma publicidade internacional, mais proficuamente poderá um
dia proceder-se ao trabalho definitivo da sua completa reintegração.
ALBERTO SOUTO
Director do Museu de Aveiro
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