Dinis Gomes, Costumes e gente de Ílhavo. Os ex-votos da sua igreja, Vol. III, pp. 117-124.

COSTUMES E GENTE DE ÍLHAVO

OS «EX-VOTOS» DA SUA IGREJA

Para o Doutor José Elias Gonçalves

A igreja matriz de Ílhavo, sem grande antiguidade na construção − 1785 − não possui, por isso mesmo, lavores nem detalhes aprimorados de arquitectura, que mereçam referências elogiosas em excesso.

Aspecto lateral da igreja matriz de Ílhavo; vista tomada do Jardim Público

No entanto, destaca-se, ainda assim, pela elegância da sua principal fachada, de duas altaneiras e bem lançadas torres sineiras; pela leveza e gracilidade das arcarias que a dividem em três soberbas naves; e, sobretudo, pelas suas grandes proporções, pois é, incontestavelmente, um dos maiores templos do país. As suas amplas paredes, bem limpas e caiadinhas de branco, não se guarnecem de azulejos de raro colorido, nem / 118 / enfeitam com doirada e caprichosa talha, de laborioso recorte, como tantas outras igrejas, e até capelas, de terras de menos importância e menor nomeada do que a nossa, que por aí encontramos a cada passo, e nem mesmo os seus tectos, em voltas perfeitas, enquadram geométricos apainelados de madeira ou pedra.

Tudo, nela, é simples e modesto, mas harmonioso e atraente, tendo lá dentro, bem em abundância, a claridade radiosa do sol criador, que a ilumina e espiritualiza numa aleluia gloriosa de luz forte, entrando, a jorros, pelos seus amplos janelões, onde não reverbera a íris dum só vitral artístico.

Terra de labor intenso, sem um passado de grandezas nem pergaminhos nobilitantes, onde a nobreza não fez pousada nem as ordens religiosas construíram conventos, os nossos modestos avós apenas puderam construir aquela fábrica, aproveitando os sobejos do trabalho rude e atribulado, agarrados ao cano pesado dos remos das suas embarcações, vencendo mares traiçoeiros, ou empunhando a tosca rabiça do primitivo arado, rasgando a terra fecunda dessas agras verdejantes que nos cercam. E não foi pouco o que fizeram e nos legaram, diga-se.

Fintou-se, para isso, o povo, na carne e no vinho que consumiam, e foram buscar ao imposto do cabeção das sizas o que lhes faltava para edificarem a igreja, que todos pediam e tão precisa era, pois o povo, devoto a mais não ser, tinha, o mais dele, que ouvir a missa domingueira formando longa cauda pelo / 119 / adro fora, não vendo, assim, o senhor prior no altar mor, benzendo-se e batendo no peito à Elevação, quando lá de dentro vinha o sinal, e o velho sacristão solenemente tangia com força a gárrula campainha das Almas.

E assim foi que, ao cabo de arrastados anos, e por entre lamentáveis incidentes de que reza a história local, o templo surgiu acabado e pronto para o serviço da paróquia.

O facto deve, por certo, ter sido assinalado por ruidosas festas; delas, porém, não tenho qualquer notícia a que me reporte.

Ora, pelo que venho expondo, o turista curioso que apareça por aqui, fica desde já prevenido e ciente de que, na igreja de Ílhavo, nada, ou pouco mais, encontrará que o faça admirar. Na terra, e cá fora, talvez; quando mais não seja, esse bando alado de lindas mulheres que povoam as nossas ruas.

Mas, o visitante não perde o seu tempo se entrar na igreja. É que lá dentro há qualquer coisa, sobremodo interessante, que o há-de prender e talvez comover um pouco, creio bem.

Pois se assim tem sucedido a tantos!...

Quero referir-me aos curiosos painéis ou retábulos murais, ingénuos exemplares de pintura popular, que guarnecem as paredes da nossa igreja, afirmando, duma maneira inegável e enternecedora, a forte e arraigada crença dos mareantes de Ílhavo no poder miraculoso do seu patrono querido o Senhor Jesus dos Navegantes. / 120 /

Essa fé inabalável, que os encoraja para o trabalho, vem de longa data, porque de todos os tempos são as patéticas tragédias marítimas, onde sucumbem a cada passo aqueles que arriscam a vida sobre as revoltas e traiçoeiras águas do mar salgado.

E hoje, ainda, como ontem e como sempre, por lá se labuta afanosamente, através de inúmeros perigos ganhando o pão nosso de cada dia, na luta constante com os elementos em fúria.

Por aqui, bom Deus, curtem-se, em rosário, as costumadas dores e aflições; vive-se quase sempre na mesma ansiedade opressora, chorando lágrimas magoadas e rezando orações fervorosas, que os naufrágios nunca têm fim, e as viúvas e os órfãos são cada vez mais.

Que de gritos lancinantes e comovedores eu tenho ouvido tantas vezes por essas ruas, onde predomina a cor negra dos trajes femininos, a cor do luto mofino, quando uma má nova chega dando conta de mais uma tragédia onde alguns ílhavos perderam a vida!...

São momentos de cruciante sofrimento, esses, de viva e profunda angústia, que vêm pôr toda a vila em sobressalto.

Felizmente que, nem sempre, assim sucede. Vezes há, em que a Providência poupa os desgraçados mareantes, parecendo escutar, por entre o fragor da procela, os seus rogos, quando, de joelhos sobre o convés do navio que os vagalhões dominam, fazem a sua promessa ou voto.

Para a cumprirem, era costume, noutros tempos, a tripulação percorrer as ruas da vila, de pés nus e cabeças descobertas, envergando as pesadas roupas oleadas de trabalho, colhendo a esmola que todos davam, lançando-a, com um padre-nosso, sobre o pano sujo duma vela da embarcação em perigo, rescendendo a alcatrão.

Moviam-se, arrastadamente, como espectros, de olhos no chão, pedindo e cantando, numa toada comovente, o Bendito, esse hino amoroso e lindo que haviam aprendido em crianças, quando, de pezinhos descalços e remendadas roupinhas, acompanhavam, pelo braço das mães, o Viático, levado em procissão até junto do catre dalgum enfermo na agonia.

Ai, como era lindo e impressionante esse espectáculo, dum / 121 / [Vol. III - N.º 10 - 1937] tão característico sabor regional, quase só da nossa terra, quadro flagrante de enternecedora piedade e renúncia, que tantas lágrimas fazia borbulhar nos olhos mortificados e lânguidos das mulheres de ÍIhavo!...

Recolhidas as esmolas, a promessa cumpria-se religiosamente, e junto do altar do Cristo era colocado o painel, em que se procurava reproduzir com a fidelidade possível a cena mais patética do acidente, acompanhado da indispensável legenda:

«Milagre que fez o Sinhor Jesus. Premeterão ao Sinhor Jesus Si os tirace desta afronta que mandaváo dizer uma Missa cantada e Sermão.»


Vinte e duas legendas igualmente evocativas nos conservam, nas pinturas populares da igreja de Ílhavo, lembrança viva das horas de incalculável amargura e da fé inabalável dos nossos marinheiros; merece a pena arquivarem-se:


O CAPITÃO MENDES OFFERECE AO SENHOR JESUS

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Barca America Offerecido ao Senhor Jesus pelo Capitão José Ançã e seus tripulantes no dia 8-10-1903

(João Cazaux Ilhavo 10/1/1904)

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CHALUPA PATRIOTA Oflréçe este Cuadro ao S.re Jesus João Simões Chuva i seu Cunhado Julio Antonio da Silva. i a Mais tripulação.

(H. B. Praça)

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O Lugre Aliança Offerece ao Senhor Jesus o Capitão Antonio Nunes
                                                      (J. Cazaux 6-4-1902)

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Lugre GAYA da cidade do Porto Ao Senhor Jesus dos Navegantes d'esta vila d'Ilhavo offerece com todo o respeito e com a maior devoção o capitão da marinha mercante desta 'vila de Ílhavo Julio Francisco Magano

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Milagre que fes Snr.or  Jesus ao capitão Jerónimo das Neves i Contra mestre Joze Gonçalves Chocha i a seus companharos. No dia 25 d'Outubro d'1868 Premeterão ao Snr
or Jesus Si os livraçe d'esta a fronta que mandavão dizer uma Missa Cantada e Sermão / 122 / E logo que chigassem a terra. Comprirão a promessa a Jmagem do Sn. Jesus Hiate Bragamça

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Millagre que fes a imagem do Snr.e Jesus ao Joze Simões Chuva Ferreiro e aos seus companheiros. Andando sobre as aguas do mar para ir ao porto do seu destino, de repente no alto mar, bem hum furacão de bento que dorou umas poucas d'horas. E não tendo espranças de salvamento prometeu Com grande ancia, que os salvasse d'este prigo; premetendo Missa Cantada e Sermão. Forão salvos e comprirão a promessa no dia 21 de Setembro. Este Sufrimento do furacão ao brigue Rio Vouga foi no dia 21 de Abril de 1877.

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Offerecido ao Snror Jesus, Por, Jese Carlos Fernandes Parraxo

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José da Costa Carolla Offerece ao Senhor Jesus a Barca «Glama» em promessa.
( Mathias)

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Offerece ao Senhor Jesus em promessa o Capitão deste Navio Francisco Fernandes Batata e Tripulação do Mesmo Ilhavo 23/2/97

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«Lugre Gafanhoto» Ao Senhor Jesus dos Navegantes oferecem: o capitão Amandio Matias Lau e tripulação.

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Offerece a tripulação da Glama.

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O CAPiTÃO MENDES E A TRIPULAÇÃO AO SENHOR JESUS

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Milagre que fes a Imagem do Senre Jesus no dia 20, Março de 1877, ao Mestre João Pereira Ramalheira Junior, i a seus companheiros. Andando sobre as aguas do Mar, e aquase sem espranças de vida. Premeterão a esta Milagrosa Imagem Si os livrasse daquela afronta, d'lhe mandar deser deser Miça, e Sermão. E como forão salvos comprirão com d'ita promessa no dia 22 d'Abril do dicto ano. − − − Hiate Barbosa

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Offerece Joaquim de Oliveira da Velha em milagre que fes o S.enr Jesus, a este suplicante, e seus companheiros, que vendo-se cansados no estenso e ezulado ossiano Pediram ao S.enr Jesus que / 123 / os levassem a terra de providencia. Que logo foram secorridos com a Ilha Margarida. Sendo estes os tripulantes do Lugre Castor.

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Millagre que fez o Senhor Jezus á tripulação do Hiate Grande Batista no dia 20 de Dezembro de 1869. Estando no mar de baixo uma grande tempestade na Latit. 41-40 N. e Long. de 9-53, pediram ao Senhor Jesus que os livrasse da morte e os levasse a porto de salvamento, e logo d'ahi a pouco virou o vento, o foram caminho de Lisboa aonde entraram no dia 22 do mesmo mez, a salvam.to

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O Capitão Rocha e sua tripulação offerecem ao Snr. Jesus
BARCA ORIENTE
(Pinto)

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Offerecido ao «Senhor Jesus dos Navegantes» Pelos tripulantes da «Barca Violeta» 23-9-1900
                                                      (j. Cazaux)

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Offerecido ao Senhor Jesus em promessa a Barca Victorioza por Lourenço Mário e José dos Santos Marnoto e João José Lopes Ílhavo 28/12/96
                                                               (Mathias)

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Offerecido ao Senhor Jesus em promessa, por Joaquim Gonçalves Guerra, e por Manoel Guerra o Hiate Julia 3.º llhavo 23/10/97.

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Hiathe Conceição d'Aveiro Offerecido por José Marques ao Snr. Jesus

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Hiate Rezulvido Milagre que fes a imagem do Snr. Jesus ao Capitão Manuel Simões Vagos e á sua tripulação no dia 3 quando cahio o contramestre ao mar ás 11 horas da manhã. E no dia 4 é que dezalboramos ás 11 horas da noite e no dia 5 é quando nos apareceu ás 8 horas da manhã o vapor Ville Terragona frances, procurando todos os meio para nos Salvar e ás 11 horas da manhã é que fomos salvos em Janeiro de 1888.

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À devoção marítima pelo Sr. Jesus dos Navegantes deve aliar-se a consagrada, desde remotos tempos, a Nossa Senhora do Pranto; dos seus ex-votos de marinheiros conserva-se, porém, apenas um, com a legenda seguinte:

BARCA CORINA
Oferece Manuel da Rocha À S. de Pranto

/ 124 /

São esses curiosos retábulos, quase todos de caprichosos desenhos e pinturas, adoráveis ex-votos, que afirmam e vincam à fé ardente dos nossos homens do mar, e dão ao recatado interior da igreja de Ílhavo um halo de mística ternura e encanto, que nos cativa com doçura o olhar, e sensibiliza espiritualmente o coração.

12-5-937

Fotos de Paulo Namorado

DENIZ GOMES

 

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