A igreja
matriz de Ílhavo, sem grande antiguidade na construção
− 1785 − não possui, por isso mesmo, lavores nem detalhes aprimorados de arquitectura, que mereçam referências
elogiosas em excesso.
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Aspecto lateral da igreja matriz de Ílhavo; vista tomada do Jardim
Público |
No entanto, destaca-se, ainda assim, pela elegância da sua
principal fachada, de duas altaneiras e bem lançadas torres sineiras;
pela leveza e gracilidade das arcarias que a dividem em
três soberbas naves; e, sobretudo, pelas suas grandes proporções, pois é, incontestavelmente, um dos maiores templos do
país. As suas amplas paredes, bem limpas e caiadinhas de
branco, não se guarnecem de azulejos de raro colorido, nem
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como tantas outras igrejas, e até capelas, de terras de menos
importância e menor nomeada do que a nossa, que por aí encontramos a cada passo, e nem mesmo os seus tectos, em voltas
perfeitas, enquadram geométricos apainelados de madeira ou pedra.
Tudo, nela, é simples e modesto, mas harmonioso e atraente, tendo lá
dentro, bem em abundância, a claridade radiosa do sol criador, que a ilumina e
espiritualiza numa aleluia gloriosa de luz forte, entrando, a jorros,
pelos seus amplos janelões,
onde não reverbera a íris dum só vitral artístico.
Terra de labor intenso, sem
um passado de grandezas nem
pergaminhos nobilitantes, onde a nobreza não fez pousada nem as ordens
religiosas construíram conventos, os nossos modestos avós apenas puderam construir aquela fábrica, aproveitando os sobejos do trabalho rude
e atribulado, agarrados ao cano pesado dos remos das suas embarcações, vencendo mares traiçoeiros, ou empunhando a
tosca rabiça do primitivo arado, rasgando a terra fecunda dessas
agras verdejantes que nos cercam. E não foi pouco o que fizeram e nos legaram, diga-se.
Fintou-se, para isso, o povo, na carne e no vinho que consumiam, e foram buscar ao imposto do cabeção das sizas o que
lhes faltava para edificarem a igreja, que todos pediam e tão
precisa era, pois o povo, devoto a mais não ser, tinha, o mais
dele, que ouvir a missa domingueira formando longa cauda pelo
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adro fora, não vendo, assim, o senhor prior no altar mor, benzendo-se e batendo no peito à
Elevação, quando lá de dentro
vinha o sinal, e o velho sacristão solenemente tangia com força
a gárrula campainha das Almas.
E assim foi que, ao cabo de arrastados anos, e por entre lamentáveis
incidentes de que reza a história local, o templo surgiu acabado e
pronto para o
serviço da paróquia.
O facto deve, por certo, ter sido assinalado por ruidosas festas; delas,
porém, não tenho qualquer notícia a que me reporte.
Ora, pelo que venho expondo, o turista curioso que apareça por aqui,
fica desde já prevenido e ciente de que, na igreja de Ílhavo, nada,
ou pouco mais, encontrará que o faça admirar. Na terra, e cá fora,
talvez; quando mais não seja, esse bando
alado de lindas mulheres que povoam as nossas ruas.
Mas, o visitante não perde o seu tempo se entrar na igreja.
É que lá
dentro há qualquer coisa, sobremodo interessante, que o há-de prender e
talvez comover um pouco, creio bem.
Pois se assim tem sucedido a tantos!...
Quero referir-me aos curiosos painéis ou retábulos murais,
ingénuos exemplares de pintura popular, que guarnecem as paredes da
nossa igreja, afirmando, duma maneira inegável e enternecedora, a forte
e arraigada crença dos mareantes de Ílhavo no poder miraculoso do seu
patrono querido
− o Senhor Jesus dos Navegantes.
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Essa fé inabalável, que os encoraja para o trabalho, vem de
longa data, porque de todos os tempos são as patéticas tragédias marítimas, onde sucumbem a cada passo aqueles que arriscam a vida sobre as revoltas e traiçoeiras águas do mar salgado.
E hoje, ainda, como ontem e como sempre, por lá se labuta
afanosamente, através de inúmeros perigos ganhando o pão
nosso de cada dia, na luta constante com os elementos em fúria.
Por aqui, bom Deus, curtem-se, em rosário, as costumadas dores
e aflições; vive-se quase sempre na mesma ansiedade opressora,
chorando lágrimas magoadas e rezando orações fervorosas, que
os naufrágios nunca têm fim, e as viúvas e os órfãos são cada vez mais.
Que de gritos lancinantes e comovedores eu tenho ouvido
tantas vezes por essas ruas, onde predomina a cor negra dos trajes
femininos, a cor
do luto mofino, quando uma má
nova chega dando conta de mais uma tragédia onde alguns ílhavos perderam a vida!...
São momentos de cruciante sofrimento,
esses, de viva e
profunda angústia, que vêm pôr toda a vila em sobressalto.
Felizmente que, nem sempre, assim sucede. Vezes há, em
que a Providência poupa os desgraçados mareantes, parecendo
escutar, por entre o fragor da procela, os seus rogos, quando,
de joelhos sobre o convés do navio que os vagalhões dominam,
fazem a sua promessa ou voto.
Para a cumprirem, era costume, noutros tempos, a tripulação percorrer as ruas da vila, de pés nus e cabeças descobertas,
envergando as pesadas roupas oleadas de trabalho, colhendo a esmola que
todos davam, lançando-a, com um padre-nosso, sobre
o pano sujo duma vela da embarcação em perigo, rescendendo
a alcatrão.
Moviam-se, arrastadamente, como espectros, de olhos no
chão, pedindo e cantando, numa toada comovente, o Bendito, esse hino amoroso e lindo que haviam aprendido em crianças,
quando, de pezinhos descalços e remendadas roupinhas, acompanhavam, pelo braço das mães, o
Viático, levado em procissão
até junto do catre dalgum enfermo na agonia.
Ai, como era lindo e impressionante
esse espectáculo, dum
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[Vol. III - N.º 10 - 1937]
tão característico sabor regional, quase só da nossa terra, quadro
flagrante de enternecedora piedade e renúncia, que tantas lágrimas fazia
borbulhar nos olhos mortificados e lânguidos das mulheres de
ÍIhavo!...
Recolhidas as esmolas, a promessa cumpria-se religiosamente, e junto do
altar do Cristo era colocado o painel, em que
se procurava reproduzir com a fidelidade possível a cena mais
patética do acidente, acompanhado da indispensável legenda:
− «Milagre que fez o Sinhor Jesus. Premeterão ao Sinhor Jesus Si os tirace desta
afronta que mandaváo dizer uma Missa
cantada e Sermão.»
Vinte e duas legendas igualmente evocativas nos conservam, nas pinturas
populares da igreja de Ílhavo, lembrança viva das horas de incalculável
amargura e da fé inabalável dos nossos marinheiros; merece a pena
arquivarem-se:
O CAPITÃO MENDES OFFERECE AO SENHOR JESUS
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Barca America
− Offerecido ao
† Senhor Jesus pelo Capitão
José Ançã e seus tripulantes no dia 8-10-1903
(João Cazaux
− Ilhavo
10/1/1904)
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CHALUPA PATRIOTA
− Oflréçe este Cuadro ao S.re
Jesus João Simões Chuva i
seu Cunhado Julio Antonio da Silva. i a Mais tripulação.
(H. B. Praça)
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O Lugre Aliança
− Offerece ao
† Senhor Jesus o Capitão
Antonio Nunes
(J. Cazaux 6-4-1902)
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Lugre GAYA da cidade do Porto
− Ao Senhor Jesus dos
Navegantes d'esta vila d'Ilhavo offerece com todo o respeito e com a
maior devoção o capitão da marinha mercante desta 'vila de Ílhavo
− Julio Francisco Magano
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Milagre que fes Snr.or Jesus ao capitão Jerónimo das Neves
i Contra mestre Joze Gonçalves Chocha i a seus companharos. No dia 25
d'Outubro d'1868 Premeterão ao Snror Jesus Si os livraçe
d'esta a fronta que mandavão dizer uma Missa Cantada e Sermão
/ 122 / E logo que chigassem a terra. Comprirão a promessa a Jmagem
do Sn. Jesus Hiate Bragamça
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Millagre que fes a imagem do Snr.e Jesus ao Joze Simões
Chuva Ferreiro e aos seus companheiros. Andando sobre as aguas
do mar para ir ao porto do seu destino, de repente no alto mar,
bem hum furacão de bento que dorou umas poucas d'horas. E não
tendo espranças de salvamento prometeu Com grande ancia, que
os salvasse d'este prigo; premetendo Missa Cantada e Sermão.
Forão salvos e comprirão a promessa no dia 21 de Setembro. Este Sufrimento do furacão ao brigue Rio Vouga foi no dia 21 de
Abril de 1877.
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Offerecido ao Snror Jesus, Por, Jese Carlos Fernandes
Parraxo
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José da Costa Carolla Offerece ao Senhor Jesus a Barca
«Glama» em promessa.
( Mathias)
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Offerece ao Senhor Jesus em promessa o Capitão deste Navio Francisco Fernandes Batata e Tripulação do Mesmo
− Ilhavo 23/2/97
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«Lugre Gafanhoto»
− Ao Senhor Jesus dos Navegantes
oferecem: o capitão Amandio Matias Lau e tripulação.
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Offerece a tripulação da Glama.
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O CAPiTÃO MENDES E A TRIPULAÇÃO AO SENHOR JESUS
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Milagre que fes a Imagem do Senre Jesus no dia 20,
Março de 1877, ao Mestre João Pereira Ramalheira Junior, i a
seus companheiros. Andando sobre as aguas do Mar, e aquase
sem espranças de vida. Premeterão a esta Milagrosa Imagem Si
os livrasse daquela afronta, d'lhe mandar deser deser Miça, e
Sermão. E como forão salvos comprirão com d'ita promessa no
dia 22 d'Abril do dicto ano.
− − − Hiate
− Barbosa
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Offerece Joaquim de Oliveira da Velha em milagre que
fes
o S.enr Jesus, a este suplicante, e seus companheiros, que vendo-se
cansados no estenso e ezulado ossiano Pediram ao S.enr Jesus que
/ 123 / os levassem a terra de providencia. Que logo foram secorridos com a Ilha
Margarida. Sendo estes os tripulantes do Lugre Castor.
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Millagre que fez o Senhor Jezus á tripulação do Hiate Grande Batista no dia 20 de Dezembro de 1869. Estando
no mar de baixo uma
grande tempestade na Latit. 41-40 N. e Long. de 9-53, pediram ao Senhor
Jesus que os livrasse da morte e os levasse a porto de salvamento, e
logo d'ahi a pouco virou o vento, o foram caminho de Lisboa aonde
entraram no dia 22 do mesmo mez, a salvam.to
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O Capitão Rocha e sua tripulação offerecem ao Snr. Jesus
BARCA ORIENTE
− (Pinto)
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Offerecido ao «Senhor
† Jesus dos Navegantes» Pelos tripulantes da «Barca Violeta»
− 23-9-1900
(j. Cazaux)
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Offerecido ao Senhor Jesus em promessa a Barca Victorioza por Lourenço
Mário e José dos Santos Marnoto e João José Lopes
− Ílhavo 28/12/96
(Mathias)
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Offerecido ao Senhor Jesus em promessa, por Joaquim Gonçalves Guerra, e
por Manoel Guerra o Hiate Julia 3.º
− llhavo 23/10/97.
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Hiathe Conceição d'Aveiro
− Offerecido por José Marques
ao Snr. Jesus
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Hiate Rezulvido
− Milagre que fes a imagem do Snr. Jesus ao Capitão
Manuel Simões Vagos e á sua tripulação no dia 3 quando cahio o
contramestre ao mar ás 11 horas da manhã. E no dia 4 é que dezalboramos
ás 11 horas da noite e no dia 5 é quando nos apareceu ás 8 horas da
manhã o vapor Ville Terragona frances, procurando todos os meio para nos
Salvar e ás 11 horas da manhã é que fomos salvos em Janeiro de 1888.
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À devoção marítima pelo Sr. Jesus dos Navegantes deve aliar-se a
consagrada, desde remotos tempos, a Nossa Senhora do Pranto; dos seus
ex-votos de marinheiros conserva-se, porém, apenas um, com a legenda
seguinte:
BARCA CORINA
Oferece Manuel da Rocha À S. de Pranto
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São esses curiosos retábulos,
quase todos de caprichosos
desenhos e pinturas, adoráveis ex-votos, que afirmam e vincam
à fé ardente dos nossos homens do mar, e dão ao recatado interior da
igreja de Ílhavo um halo de mística ternura e encanto,
que nos cativa com doçura o olhar, e sensibiliza espiritualmente
o coração.
12-5-937
Fotos de Paulo Namorado
DENIZ GOMES
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