Padre Miguel A. de Oliveira, Nossa Senhora de Entráguas, Vol. II, pp. 261-264.

NOSSA SENHORA DE ENTRÁGUAS

[Vol. II - N.º 8 - 1936]
A ermida de Nossa Senhora de Entráguas, na freguesia de Válega, é uma das mais famosas da nossa beira-mar. Erguia-se outrora em meio de vasto areal, invadido pelas águas no inverno. Perde-se hoje no verde-escuro dos pinheirais onde vão morrer alguns braços da Ria de Aveiro. Mas os povos ribeirinhos não lhe desaprenderam o caminho. Lá vão todos os anos, na festa de 2 de Fevereiro, vadeando regatos e afrontando as chuvas, porque quem lhes rega os campos e os protege nos perigos do mar ou do rio é a Senhora, de-entre-águas chamada.

Têm sua lenda e sua história quer a imagem quer a ermida; mas, como é vulgar em casos tais, na lenda nem todos concertam e a história poucos a sabem. Hesitam os mais verídicos narradores da primeira sobre se foi a Virgem ou a sua imagem que apareceu e se foi no local da ermida ou no sítio do Portinho onde se ergue o Cruzeiro da Virgem.

 Fr. AGOSTINHO DE SANTA MARIA que, em princípios do século XVIII, publicou os 10 tomos do Santuário Mariano, recolheu uma das versões:

«Dizem que apareceu dentro duma barca formada de pedra, da qual ainda hoje se conservam vestígios, e por esta causa os romeiros que vão buscar a esta milagrosa Senhora tiram pós da mesma pedra que bebem em suas enfermidades, em que experimentam as maravilhas daquela poderosa Senhora. Foi achada junto a uma fonte, aonde ainda hoje por memória se conserva uma Cruz de pedra... Não dão aqueles moradores notícia do tempo em que esta Santa Imagem ali apareceu, mas obra muitas maravilhas e milagres...»

O Cruzeiro da Virgem, junto ao regato do Portinho, ao norte de Entráguas.

A lenda da aparição tem o seu símbolo material numa pedra branca de calcário que se guarda na ermida. Na base do Cruzeiro da Virgem, distante mais dum quilómetro, lê-se, porém, / 262 / a data de 1678 e uma inscrição que parece referi-lo a outro facto: «N. Snr.ª de Entre Ágoas aqui deu falIa a hua moça».

Se não nos importa o desfiar das tradições, oferece a capela da Virgem de Entráguas algo de histórico que interessa divulgar. De 1624 a 1627, foi abade de Válega D. Diogo Lobo, nascido em Lisboa mas desde muito novo residente em Aveiro, neto dos primeiros barões de Alvito, dos quais procedem várias famílias nobres de Portugal. Exerceu D. Diogo Lobo, entre outros cargos, o de lnquisidor-mor em Évora e foi apresentado Bispo da Guarda por D. João IV, não chegando a ser confirmado por estarem interrompidas as relações com a Cúria Romana. Diz-se que, ao tempo da sua paroquialidade em Válega, empreendera uma viagem por mar a Lisboa, na qual se vira em sério risco, fazendo então à Virgem de Entráguas o voto de lhe erigir nova ermída.

Uma inscrição que nesta se conserva, infelizmente muito mutilada e quase ilegível, parece aludir à fundação da anterior no ano de 1535.

D. Diogo Lobo faleceu em Coimbra, no ano de 1654, talvez sem ver concluída esta obra, pois na fachada do templo existe o seu brasão com a data de 1657. Foi depositado no Colégio das Ordens Militares e dali trasladado para Entráguas, onde jaz, aos pés da Virgem. A pedra tumular ostenta o brasão de suas armas: Em campo de prata, cinco lobos de preto em aspa, armados de vermelho e cercados duma bordadura azul, com seis aspas de ouro, tendo por timbre um chapéu episcopal.

O epitáfio diz: / 263 /

AQVI ' IAS  ' DOM '
DIOGO ' LOBO '
PRIOR MOR ' QVE '
FOI ' DA ORDEM '
DE SAM ' TIAGO '
DO CONSELHO '
DE SVA ' MAGESTA=
DE ' E BISPO ' ELEI=
TO ' DA GOARDA '
E FVNDADOR '

E PADROEIRO '
DESTA ' IGREIlA '
DE NOSSA ' SNRÃ '
DENTRE ' AGOAS '
FALLECEO '
AOS VINTE ' E SE=
TE ' DE OVTVBRO '
DE 16S4
PELLA ' SVA '
ALMA PADRE ' NOSSO

A imagem da Padroeira que preside em nicho, no altar-mor, é de pedra e parece conservar ainda a pintura primitiva.

Ermida de Nossa Senhora de Entráguas.

Corre entre ó povo que a Senhora de Entráguas tem sete irmãs  de certo sete imagens saídas da mesma oficina. Uma destas, já a consegui identificar: é a Senhora da Lumieira, na freguesia de Loureiro, venerada em capela que interiormente é cópia quase completa da de Entráguas. As esculturas são da mesma pedra e da mesma altura. Deixo aos entendidos marcar-lhes a data (século XV?) e aos curiosos recolher o resto da irmandade.

Querendo o fundador garantir perpetuamente a sustentação da capela de Entráguas, constituiu-lhe património na Quinta da Boa-Vista, de Santiago de Beduído, que deixou a  sua irmã D. Joana Coutinho. Conservou-se viva; na família de D. Diogo Lobo, a devoção à Virgem de Entráguas. O seu segundo sobrinho, José de Sá Pereira Coutinho, senhor da Quinta do vínculo, / 264 / após a morte de sua mulher D. Mariana de Sousa, em 23 de Outubro de 1731, recolheu-se como ermitão a esta capela. Este episódio inspirou a Eugénio de Castro o seguinte soneto:
 
 

Esse Joseph de Sá, meu quinto avô,
Fidalgo altivo e caçador de fama,
Cumprindo o que jurara à sua Dama,
Fez-se humilde ermitão quando enviuvou.


Na ermida, entre águas, relembrava só
A que dormia em funerária cama;
Na memória, porém, inquieta e em chama,
O rosto dela aos poucos se apagou...


Mas a Virgem, sorrindo com deleite
Ao que tão bem, tão plácido, a servia,
Às tardes, quando o ermitão cansado


O lampadário ia prover de azeite,
Co'as feições da defunta lhe apar'cia,
Como ela as tinha ao tempo do noivado...

Reza a tradição que muitas outras pessoas nobres ali se recolheram em penitência, entre as quais uma dama do paço que usava dos apelidos de Ponces de Leão de Vasconcelos e houve uma filha de el-rei D. João VI.

Foi outrora a capela de Entráguas centro de grandes romagens. O visitador de 1746 diz que a ela acorria muita gente, mesmo do Bispado de Coimbra. Nos anos de estiagem, é ainda muito visitada pelo povo da beira-mar que lá vai implorar água para os seus campos.

Da devoção que lhe consagram pescadores e homens do mar, falam os barquinhos votivos que na ermida se conservam.

O malogrado literato Licínio Fausto Cardoso de Carvalho, de Ovar, inspirou-se nesta ermida para o seu primoroso drama marítimo Os Hallas, ainda inédito, hoje em poder do sr. Tenente-Coronel Adriano Mendes Strecht de Vasconcelos, residente no Porto. A acção do terceiro acto decorre precisamente nas casas do Bispo Lobo, junto à capela de Entráguas. Tencionava ainda esse escritor publicar um romance intitulado O Cruzeiro da Virgem, composição que a morte lhe não deixou realizar.

O que à ermida de Entráguas possa ainda faltar de renome literário, sobra-lhe em devoção popular e lendas velhinhas. Pode ser que, algum dia, os artistas sigam os passos desse grande poeta anónimo que é o povo.

P.e MIGUEL A. DE OLIVEIRA

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