SE devemos dar crédito à
deficiente informação que nos chega sobre a administração pública do
nosso país, nos primórdios da sua independência, até ao reinado de D.
Dinis, fins do século XIII, época em que pode considerar-se
definitivamente traçada a fronteira terrestre, toda a exuberância da
força lusitana se consumiu na actividade febril da reconquista, até
empurrar o muçulmano para lá do Guadiana, ou na tarefa dura de refrear a
audaciosa soberba castelhana, constante e perigosa ameaça para a nossa
autonomia, laboriosamente amealhada. Só fugidiamente, de modo
secundário, recaíram as atenções dos governantes sobre a complexidade
dos problemas de organização interna, esboçados em rudimentares tentames
de povoação e intercorrentes arremetidas contra os propósitos de
absorção por parte do clero e da nobreza.
A partir do começo do
século XIV, porém, iniciou-se uma fase viva de arrumação interna, de
construção orgânica, olhando-se atentamente a economia, a cultura do
espírito e a defesa nacional, como o atestam as medidas de fomento e
protecção ao comércio e à agricultura (pinhal de Leiria, lei das
sesmarias, bolsas), o desenvolvimento da instrução (oficialização da
língua portuguesa, criação dos Estudos Gerais), a organização da
marinha, etc.
E com tanto afinco se
conduziu a resolução de tão graves problemas
−
só por si bastantes para
fazerem vergar o arcaboiço forte de qualquer nação fundamente arreigada
− que Portugal, no termo de pouco mais de dois séculos de existência, dá
a impressão de haver esgotado os números mais salientes de um grandioso
programa de realizações, e de ter de procurar na vastidão do mar uma
aplicação condigna do seu excedente de energia e da sua ingénita impetuosidade, abraçando com fervor o ingente
plano dos descobrimentos, eterna glória e primacial esteio da nossa independência.
Por virtude de razões
ligadas à necessidade de as camada
/
200 / populares se subtraírem à opressão dos poderosos, ligadas à progressiva libertação das classes servas, e ainda ao próprio interesse
político dos reis, as instituições municipais bem cedo tiveram notável
incremento} constituindo-se numerosas povoações em concelhos,
ordinariamente por uma carta de foral, e outras vezes mesmo sem ela.
Há quem afirme que desde D. Afonso
lII (meado do século XlII) quase.
constantemente se achou dividido o país em seis correições, com o seu
corregedor, delegado do rei, com funções a um tempo administrativas,
judiciais e militares, tendo o número de correições baixado de uma
unidade, após as cortes de Coimbra de 1385. Mas não falta também quem
assevere, baseando-se num codicilo do testamento do rei D. Dinis, que a
esse tempo a única divisão em vigor era o concelho.
Certo é, todavia, que no século XIV já se comprova a divisão do país em
seis correições, mais tarde, como se disse, em cinco, número este que
parece ter-se mantido até ao primeiro quartel ao século XVI, até à
reforma manuelina dos forais, já que a essa divisão obedeceu também a
distribuição por cinco livros dos forais novos reformados, sendo essas
correições as de Entre Douro e Minho
− Traz-os-Montes
−Beira
−
Estremadura entre Mondego e Tejo pela beira-mar
−
e entre Tejo e Guadiana,
compreendendo o Algarve.
Havendo a esperar da designação da comarca da
Estremadura entre Mondego
e Tejo pela beira mar que nela se não compreendessem quaisquer
territórios a norte do Mondego, tal não sucedia, como se conclui
da
leitura da relação dos besteiros do conto
(1), do segundo quartel do
século XV, em que vêm incluídas na comarca da Estremadura, entre outras
terras, Aveiro, Buarcos, Cantanhede, Águeda, Avelãs de Caminho e
Arrifana.
Mas no reinado de D. João III a divisão territorial foi profundamente
remodelada com a criação de novas com arcas ou correições, que ao todo subiram a 25 ou 26, e entre as quais se
encontram a de Coimbra, criada em 12 de Março de 1533 e a de
Esgueira, em 20 de Dezembro do mesmo ano.
Suscita naturalmente reparos que para cabeça da nova comarca se não
tivesse escolhido Aveiro, terra já a esse tempo muito mais importante
que Esgueira, ambas vilas antigas, de uma antiguidade já então envolta
em bruma de lenda, e de posse dos seus forais novos(2), e Aveiro, sede
de um antigo almoxarifado, e com assento em cortes.
Mas a explicação foi há muito fornecida na
Corographia Portugueza do PADRE CARVALHO DA COSTA, à mistura com algumas
/ 201 / inexactidões(3). Nada contudo que iguale o que se contém nestas poucas
linhas:
|
«É tão antiga a comarca de Esgueira, que já existia no tempo de D.
Diniz; mas Aveiro também era comarca posto que da correição de
Esgueira. Foi no meado do século XV que o Infante D. Pedro reuniu as
duas comarcas, ficando contudo sendo Esgueira a sede da correição(4)». |
Como nos pleitos judiciais, também aqui se poderia contestar por
negação, visto tornar-se desnecessário demolir expressamente cada uma destas afirmações, que indirectamente ficam respondidas na correnteza destas ligeiras considerações, pois que nem a correição de Esgueira é do tempo de D. Dinis, nem Aveiro era comarca, nem o Infante D. Pedro reuniu coisa alguma.
Permitem todavia avaliar como são precárias as fontes gerais de informação, ainda as geralmente consagradas, e quantas correcções terão de sofrer quando se faça
a publicação de todos os documentos interessando à história geral e à
história local.
Estes mesmos erros foram mais tarde perpetrados no dicionário
Portugal, de ESTEVES PEREIRA e GUILHERME RODRIGUES, como o terão sido por quantos autores se dispensam de investigar por
conta própria e se contentam com o que se lhes depara em letra de
imprensa. Que ainda aqui o maior erro não é o dos factos históricos inteiramente deturpados; mas o da confusão de comarcas e correições, termos ao tempo sinónimos, e com que os referidos escritores jogaram, num absoluto desconhecimento do seu significado.
Nem MARQUES GOMES, compleição forte de trabalhador, ardente namorado das rutilantes belezas
da sua terra, pôde eximir-se à repetição de erros que
vinham de longe
(5).
Aveiro, retomando o perdido fio, era cabeça do
ducado de Aveiro, cujo titular desfrutava consideráveis privilégios, não sendo de uso escolher para sede de correição senão vilas de jurisdição real, já que nas outras nem entrada tinham os corregedores.
Ainda que a próxima vila de Esgueira fosse do Mosteiro de Lorvão,
este só tinha a juridisção cível e não a criminal. Dessa circunstância derivou o lançar-se mão de Esgueira para nela instalar o que de facto nunca foi senão correição ou comarca de Aveiro.
/
202 /
Como comarca de Aveiro aparece ela designada em DUARTE NUNES DE LEÃO,
que escreveu em 1599, e em FR. NICOLAU DE OLIVEIRA.
Certo é, todavia, que a sua designação oficial era a de
Comarca ou correição de Esgueira, e nela funcionavam os serviços da correição e da provedoria, posto
que o provedor da comarca fosse de certa altura por diante autorizado a
residir em Aveiro. Mas o provedor exercia funções quase exclusivamente
administrativas e não judiciais, entrava mesmo nas vilas dos donatários
da coroa a ocupar-se dos hospitais, capelas, albergarias, gafarias, dos
bens dos órfãos, e do mais que se compreendia nos seus regimentos.
Criada a comarca de Esgueira, desde logo
ficou constituída por 31 vilas,
10 concelhos e um couto. As vilas eram as de: Aveiro, Aradas, Lanhosa,
Pinheiro, Angeja, Costa, Vagos, Frossos, Segadães, Ermida, Trofa, Vila
Doce da Ribeira, Recardães, Paus, Vouga, Antuã, Guieira, Brunhido,
Oliveira do Bairro, Sangalhos, Esgueira, Serém, Sam Lourenço do Bairro,
Avelãs de Caminho, Bemposta, Pereira de Gestão, Vilarinho do Bairro,
Avelãs de Cima, Ovar, Terra da Feira; e os conceIhos eram os de: Sequins, Ferreiros do Conde, Casal de
Álvaro, Castanheira da Beira, Soutelo, Sever, Fermedo, Gafanhão,
Cambra, Estevém; e o couto da Barca da Guarda.
Mas anos depois aparece confundida com a correição de Coimbra.
A princípio, talvez de forma encoberta, para evitar descontentamentos e
reclamações, ter-se-ia recorrido ao expediente de confiar a um só
corregedor a gerência das duas comarcas, criando a ilusão de que
continuava existindo a comarca de Esgueira quando fora já incorporada na
de Coimbra.
Dessa ilusão dão justa medida os documentos inéditos que
agora se publicam
(6).
O rei concedera por alvará de 27 de Julho de 1618 a
imposição sobre as
carnes e os vinhos que se vendessem na comarca de Coimbra, ou seja um imposto especialmente consagrado às obras da ponte,
cais do no e calçadas de Coimbra.
Os regedores da cidade do Mondego, onde a antiga área da comarca de Esgueira se considerava adicionada à de Coimbra,
estranharam que Esgueira e outras terras se recusassem a pagar a
imposição e disso se queixaram ao rei, que lhes deu razão, obrigando por sua provisão de 10 de Outubro de 1619 todos os recalcitrantes a pagar.
A Câmara de Esgueira opôs ainda embargos à provisão, mas com absoluto
insucesso. Os de Coimbra alegavam que, há muitos anos já, as duas
comarcas se encontravam fundidas em uma só, funcionando com o mesmo
pessoal; e os de Esgueira, /
203 / baldeando opostas razões,
sustentavam o contrário, ainda que o corregedor das duas comarcas fosse o mesmo, já que
este tinha obrigação
de fazer seis meses de assistência num lado e seis meses noutro. E tanto assim era, que Esgueira continuava a ser sede de uma provedoria, como se comarca fosse; e o pessoal de Esgueira
e o de Coimbra, eram pagos respectivamente pelos almoxarifados de Aveiro e Coimbra, como se de comarcas distintas
se tratasse.
Acrescentaram ainda que se não recusariam a pagar em qualquer
finta de carácter geral; mas não desta forma, considerando-os de uma comarca a que não pertenciam e privando-os para mais da regalia da sua comarca, que continuavam considerando distinta da de Coimbra. Nem faltou a argúcia sofística de que em matéria penal se não admitia a interpretação extensiva, como se um caso de organização judicial pudesse caber no âmbito do
direito penal.
Mas, tanto o rei como a Casa da Suplicação se abstiveram prudentemente de tocar no ponto nodal da questão, como seria o
julgamento da subsistência ou extinção da comarca de Esgueira. Limitaram-se, como quem se agasta com demasias de justiça, a
fazê-la pagar, e nada esclareceram, usando de uma secura fustigante, de
molde a secar entusiasmos.
Mas, se a imposição abrangia as transacções realizadas na comarca de Coimbra, e se condenava Esgueira a pagar, a claro ficava que a sua
incorporação na comarca de Coimbra era desde então uma desagradável certeza, atingindo-a menos em frivolidades de exterior, do que no seu prestígio e nos seus vitais interesses.
Mas, ou porque a supressão fora injusta ou porque com o andar do tempo
se reconhecesse a sua necessidade, a escura nuvem de melancolia
dissipou-se, e aí a vemos ressuscitada mais tarde, florejando graças, a figurar novamente como comarca independente nos documentos e nas corografias do princípio do século XVIII, sendo uma das nove comarcas que formaram a província da Beira, em nova divisão do país, juntamente com as de
Coimbra, Montemor-o-Velho, Feira, Viseu, Lamego, Pinhel, Guarda e Castelo Branco.
E por esta reorganização ficou a comarca de Esgueira composta: pelas vilas de Aveiro, de Aguieira, Anadia, Angeja, Assequins, Avelãs de Caminho, Avelãs de Cima, Bemposta, Brunhido, Eixo, Estarreja, Ferreiros,
Ílhavo, S. Lourenço do Bairro, Óis da Ribeira, Oliveira do Bairro, Paus, Préstimo, Recardães,
Sangalhos, Segadães, Serém, Soza, Trofa, Vilarinho do Bairro, Vagos, Vouga; pelo concelho de Fermedo; e pelo concelho
de Esteves.
Mas o acontecimento histórico que foi o atentado de 1758, levando o duque de Aveiro ao cadafalso, elevou Aveiro a cidade e deslocou também a hegemonia administrativa e judicial da vila /
204 / de Esgueira para a cidade de Aveiro que,
incorporada nos bens da coroa, passou, de então até hoje, a sede de comarca.
Coimbra, Maio de 1936
J. PINTO LOUREIRO
Os documentos
referentes à vila de Esgueira vão reproduzidos em formato PDF.
REGISTRO
REFERENTE À VILA DE ESGUEIRA [PDF 720 KB] |