S. JOÃO DA MADEIRA
tornou-se notável na segunda metade do século XIX, pelo carácter
industrioso dos seus filhos. Ao entrar o século XX deu tal salto que,
logo ao dobrar o segundo quartel, se sentiu com forças para assumir responsabilidades municipais. E não com tímidos tenteios.
O concelho de S. João da Madeira consta apenas da sua sede. Mas é
incontestavelmente a vila mais industrial do distrito de Aveiro.
Não admira que a par do seu desenvolvimento económico despontem
preocupações de cultura; e naturalmente os espíritos curiosos buscam
saber a origem donde procede a terra que lhes foi berço.
Tivemos já ocasião de observar, a propósito do brasão de S. João da
Madeira, que, sendo ela povoação antiga, contudo não possuía história; e
que, em definitiva, para a geração actual era mais glorioso conquistar
pergaminhos do que herdá-los. Isto, que dissemos um dia, sustentamo-lo hoje. Não obsta, porém, esta posição de coerência a que se investigue a demonstração daquela antiguidade até agora restringida a meia dúzia de referências dispersas, anteriores ao século XVII, recolhidas por PINHO LEAL, FORTUNATO DE ALMEIDA,
Annaes do Municipio de Oliveira de Azemeis e num ou noutro documento avulso, como o padrão que concedeu à vizinha vila de Cucujães o privilégio de couto.
Temos presente uma série de documentos
quase todos inéditos, que tratam
de S. João da Madeira: vamos iniciar o seu estudo e publicação. Mas
antes, seja-nos lícito agradecer a MIGUEL DE OLIVEIRA, ilustre
sacerdote, brilhante jornalista e investigador de merecimento, o auxílio
que nos prestou. Porque, achando-se ele a preparar a monografia
histórica do concelho
/ 66 / de Ovar e conversando
sobre os respectivos trabalhos, comunicou-nos que
na Torre do Tombo se lhe deparavam, de vez em quando, notícias das terras vizinhas. Diante do nosso natural interesse,
levou a sua gentileza a dar-nos a cota dos documentos referentes a S.
João da Madeira.
Abrindo um parêntesis, aliás agradável, ao nosso trabalho
sobre o
Brasil, estudamo-los um a um. E oferecemos aqui o seu sentido geral.
Todos estes documentos são de natureza económico-rural ou eclesiástica,
valiosos pelas indicações pessoais ou denominações de terras, que nos
conservam.
A referência geográfica fundamental, que permite classificá-los, é
esta: a propriedade de que se trata (venda, compra, doação) fica na vila
de S. João da Madeira, em baixo do monte Parada Ioaz, onde passa o Rio
UI (in uilla Sancti Iohanis de Madeira, prope civitas Sanctae Mariae
subtus mons Parada Ioaz, discurrente rivulo UI).
Todos sabem o que significa
cividade, diferente de cidade, e como
nada tem que ver o antiquado termo de vila com o conceito moderno deste
mesmo vocábulo.
loaz, com que se designa aquele monte e parada, surge-nos em diversos
documentos com estas leituras ou interpretações: Loaz, Louaz, Ihoahaz,
Iaz, Iuaz, Ioaaçe. Só num documento de 1187, infelizmente incompleto,
roído pelos ratos, lê-se: in uilla Sancti Johanis de Madeira, Territorio
Sanctae Mariae sub... mº... Codal, discurrente rivulo UI
(1). Codal, como expressão geográfica
moderna, é uma freguesia do concelho de Cambra.
O maior número de pergaminhos pertence ao ano de 1122. Em todos se nos
deparam aquelas primeiras referências topográficas, menos no de 3 de
Setembro, em que a propriedade, que compram Gundiçalvo Menendes e
Gontina Gutierres, em S. João da Madeira, está situada de Ur in astar
prope eivitas Sanctae Mariae, subtus mons parada Ioaz, discurrente
rivulo Antoã, Territorio Portugalensis
(2).
Temos portanto, nesta pequenina bacia hidrográfica
sanjoanense, os
rios Antuã e Ul. Não pretendemos resolver o problema que daqui se possa
originar, quanto ao curso e denominação actual destes rios. Notemo-lo
simplesmente, e digamos, a título de glossa, que além dos acidentes de terreno e das correntes fluviais,
se usava também, como ponto preferido de referência, o sítio da igreja;
e é óbvio que tendo um proprietário junto dela alguma herdade
relacionasse com esse núcleo outras mais distantes, que viriam com o
andar dos tempos a ficar fora do seu termo. No entanto, aquele facto
confirma, o que se não pode
/ 67 / negar, que S. João da Madeira, topograficamente, é centro de uma região
mais vasta que a do seu actual município.
A igreja de S. João da Madeira deve ser anterior ao ano mil e já
existia com certeza em 1088. A 23 de Março deste ano vende Pelagio Godinho a Truillo na vila de S. João da Madeira parte
de uma herdade que se estendia «até Vila Plana (Vila-Chã), onde corre o
Rio Ul, em baixo do Monte Parada Louaz, perto da cividade de Santa
Maria»
(3). No mesmo dia vende Eilo Godines a Donadeo Alvares e seu
marido Truilo o casal, que foi de Godino Vimaraz, sito na vila de S. João, que dizem de Mateira, a minha parte
que aí tenho no mesmo casal,
como se limita pela estrada que vai desde a igreja de S. João, da parte
do Ur
(4).
Para fixar a cronologia, recordemos que a fundação de Portugal costuma
datar-se da batalha de S. Mamede, ganha por D. Afonso Henriques (1128),
proclamado rei pouco depois. São, por conseguinte, notícias anteriores à
fundação da nacionalidade portuguesa.
Averbemos, rapidamente, outros pontos interessantes. No dia 28 de
Junho de 1122 Sandino Rodrigues e seus irmãos e irmãs vendem
a Gundiçalvo Menendes e Gontina Gutierres «hereditate nostra propria que
habemos in uilla Sancti Joahanis de Madeira de astar
ata illo ueneiro prope civitas Sanctae Mariae subtus mons Parada loaz, discurrente rivulo Ur»
(5). A 28 de Junho de
1142 referência semelhante: Pedro Sandamires e seus irmãos e irmãs
vendem aos mesmos a sua herdade em S. João da Madeira desde
illa strada
mourisca ata illo ueneiro(6).
Ueneiro? Ao sul de S. João existe hoje o lugar do Urreiro. Será isso?
Será um veio de água? A maior cópia de informações topográficas acha-se num pergaminho de 1225, por desgraça muito deteriorado com a
noz de galha que lhe deitaram antigamente para o ler. É um contrato de
permuta de terrenos (chartula kambiationis et transmutationis), onde
aparecem os protagonistas de sempre, Gonçalo Mendes e sua mulher. Os nomes que ainda pudemos decifrar são
quase todos, actualmente, outros tantos lugares de S. João
ou de Cucujães: Marmula (Mamoa), Astar (estrada?)
Vale, Faria,
Fundones (Fundões), Mourisca, Casal de Ero (Casaldelo),
Casal de Escarigo
(7).
Dá-nos um documento de 16 de Novembro de
1119 esta informação, em que
surge o nome de Ovar a denominar as Terras de Santa Maria: Pedro Pelais
e lelvira vendem, ainda
/ 68 / aos mesmos, a propriedade que ganharam com as suas «ganantias et
incomunaduras in territorio que vocitant Sancta Maria de Ouar ex illo
parte Durio uillas nominatas Sancto Ioane que dicent de Maderia et in
alia uilla Saulamir»
(8). Sámil é um lugar limítrofe de S. João da Madeira na vizinha freguesia de S.
Roque.
Nas Inquirições
de D. Dinis (1288) alude-se a uma quintaam de Estevam Soares e outra de Pero Veegas(9). Duma delas proviria o
nome de Quintã, o mais dilatado bairro de S. João da Madeira.
O pagamento daquelas compras fazia-se geralmente em moios de pão;
algumas vezes em morabitinos e também noutros objectos. Na compra de 16
de Novembro de 1119 o pagamento foi «uma azemula cum sua albarda et cum
suo exendere apreciada em CCos modios et alias cum in
auro et in panos
et uno manto gatuno apreciado em Lª bragales
(10); e na de 3 de Setembro de
1122, além de certa quantidade de moios de pão deu-se também em paga
«uno mauro»
(11).
Gonçalo Mendes e Gontina Gutierres, reunindo todas estas propriedades à roda da igreja de S. João, constituíram-se de facto senhores da terra e com direito à apresentação do pároco. Muitos anos depois, Gontina Gutierres, já de idade avançada, e certamente viúva, pois não se fala do marido, determinou
doar a igreja de S. João ao Mosteiro de religiosas agostinhas de S.
Cristóvão do Rio Tinto. A escritura de doação, feita por ela e seus filhos e netos, tem a data de Fevereiro de
1179
(12).
Com esta aquisição ficou investido o Mosteiro de apresentar
in solidum
o abade de S. João da Madeira. Tal situação jurídica achamo-la depois modificada, fazendo-se a nomeação alternadamente pela Mitra do Porto e pelo Mosteiro. A
este facto de ser o Mosteiro o apresentante do abade, considerando o proverbial cuidado que tinham na conservação de documentos, se deve o possuirmos hoje a relação de várias nomeações, com os nomes, cerimónias, concorrentes, testemunhas, etc., que intervinham para a sua legalidade.
O mosteiro apresentava o
/ 69 / pároco. Ao Prelado competia confirmá-lo. Os autos destas confirmações realizavam-se umas vezes
na Cúria Episcopal do Porto, outras em S. João da Madeira. Este último caso deu-se na
confirmação do Abade Lourenço Anes, em 15 de Fevereiro de 1329. A cerimónia foi «no adro da igreja de S. João da Madeira, da Terra de Santa Maria». Representava o Bispo, o Vigário Geral João Palmeiro; pelo mosteiro de Rio Tinto assistia a
própria abadessa, D. Leonor Gomes. O auto foi «feito ante a porta da
dita Igreja, estando a dita abbadeça dentro na dita Igreja».
Testemunhas: Rodrigo Anes, chantre do Porto; Afonso Esteves, clérigo; Mateus Afonso; João Geraldes, abade de Pindelo; Martim Peres, clérigo, e outros. O tabelião era «Afonso Martins,
publico tabelião de El-rei na Feira, Terra de Santa Maria»
(13).
O rei de Portugal em 1329 era D. Afonso IV, o Bravo.
Toda aquela comitiva e aparato indica movimento e importância.
*
* *
Estes documentos, menos um ou dois, tiveram a mesma origem: o cartório «do Real Mosteiro de São Bento da Ave-Maria», do Porto, de
beneditinas, a que foi anexado o de Rio Tinto, primitivo possuidor
dos títulos, em 1535
(14).
Os documentos podem-se dividir em quatro séries:
PRIMEIRA SÉRIE (1088-1109)
−
Contratos de compra e venda, entre
particulares. São três documentos (Colecção especial, 2.ª Parte, caixa 52,
maços 1 e 2, publicados já em Diplomata e Chartae, voI. I, fasc. III, págs. 421-422; e maço 7,
n.º 70).
SEGUNDA SÉRIE (1119-1143)
−
Os esposos Gundiçalvo Menendes e Gontina Gutierres, aumentam e arredondam, por várias transacções, as suas propriedades de S. João da Madeira e seu termo. São 15 documentos (Ib., maço
3, n.os 10, 11, 12, 13, (há dois com este número: um pertence a
Paiva), 14, 18, 21, 22, 172, 240; maço 3, n.os 10, 16; maço 5, n.os 73, 79; maço 6, n.º 4).
TERCEIRA SÉRIE (1179-1256)
− Gontina Gutierres e seus filhos e netos
fazem doação da igreja de S. João da Madeira ao mosteiro de Rio Tinto. Outras doações ou compras feitas pelo mesmo mosteiro em S. João da Madeira: 5 documentos (lb., maço 5,
n.º 9 cf. Convento da Ave-Maria, liv. 16, fls. 365-367); Tombo de
S. Simão da Junqueira, liv. 2, fls. 53-54; Col. Esp., maço 10, n.os
27E, 45.
QUARTA SÉRIE (1329-1598)
−
Apresentação de abades de S. João da Madeira, feitas pelo mosteiro do Rio Tinto; confirmações do
Bispo do Porto. Não é lista seguida. Registam-se doze nomes
/ 70 / (Convento da Ave-Maria, livro 16, fls. 17-24 v.; 368-379
v. Este volume foi organizado no século XVIII; e diz a fl. 24 v. que se passou o último título de colação ao P. Caetano José Leite Pereira, em 6 de Dezembro de 1737.
*
* *
Iremos publicando no todo ou em parte estes
documentos, fonte preciosa
para a melhor notícia dessa importante região do Distrito de A veiro,
num período, como se vê, bem antigo e largo
(15).
SERAFIM LEITE |
(1)
−
Torre do Tombo, Colecção Especial, caixa 52, maço
10, n.º 27E.
(2)
−
lb., maço 3, n.º 11.
(3)
−
Port. Mon. Hist., Diplomata et Chartae, voI. I, fasc.
III, n.º DCCIII, pág. 421.
(4)
−
lb., n.º DCCIV, pág.
421-422.
(5)
−
Torre do Tombo, Col. Especial, caixa 52, maço
3, n.º 172.
(6)
−
lb., maço 5, n.º 79.
(7)
−
lb., maço 5, n.º 10.
(8)
−
Ib., maço 4, n.º 10.
(9)
−
Inquirições de D. Dinis, publicadas por JOSÉ DA CUNHA SARAIVA, no
Arquivo Histórico de Portugal, voI. lI, fasc. 4.º, pág. 118. Lisboa,
1935.
(10)
−
Torre do Tombo, Col. Esp., Caixa 52, maço 4,
n.º 10. Exendere é a cria da azêmula.
(11)
−
lb., maço 3, n.º 22. VITERBO supõe que
mauro, visto por ele
noutros documentos no plural, seja a abreviatura de mrs, morabitinos ou
maravedis, desenvolvida erradamente para mauros. (Elucidário, v.
mauro). O presente documento, que é original, tem escrito «uno mauro»
com todas as letras. Aliás naquele tempo, como nota o mesmo Viterbo,
vigorava em Portugal a escravatura de mouros, provenientes das guerras
entre sarracenos e cristãos.
(12)
−
Torre do Tombo, Convento da
Avé-Maria, liv. 16, fls. 365-367; Col. Esp. caixa 52, maço 5, n.º 9.
(13)
−
Torre do Tombo, Convento da Ave-Maria, livro 16,
fls. 368-470.
(14)
−
PINHO LEAL, Portugal Antigo e Moderno, VIII, 212. Segundo
PINHO LEAL, as religiosas de Rio Tinto mudaram então de regra.
(15)
−
Sob o titulo de O Passado de S. João da Madeira (1088-1598), vão-se já publicando alguns
em "O Regional", quinzenário da mesma vila. |