Marques Gomes, Aveiro na obra e relações de Camilo, Vol. 1, pp. 209-218.

AVEIRO NA OBRA E RELAÇÕES DE CAMILO

«O OLHO DE VIDRO»

Publicamos, a seguir, o inédito, incompleto, de JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES, intitulado − Aveiro na obra e relações de Camilo −, único que apareceu no espólio do falecido e considerado antiquário aveirense e que obsequiosamente nos foi cedido por seu filho, sr. Tenente Fernão Marques Gomes. Nele afirma o autor que CAMILO, ao escrever o seu conhecido romance de O olho de vidro, cuja acção se passa, em parte, nesta cidade, se afastou, por vezes, da verdade histórica. Dado o escrúpulo que o famoso romancista punha na parte estrutural dos seus romances históricos, cremos que ele não teve ensejo de conhecer os documentos a que MARQUES GOMES se refere no seu estudo. CAMILO não era homem que desprezasse documentos autênticos. Se errava, fazia-o escudado na documentação que se lhe deparava ou nas informações que tinha por seguras. No capítulo − Alguns romances históricos de Camilo e respectivos processos inquisitoriais −, do voI. II dos Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa (1924), aponta o sr. dr. ANTÓNIO BAlÃO vários erros em que incorreu CAMILO no romance − O Judeu −, mas não deixa de o desculpar, escrevendo: − «Compreende-se bem que Camilo claudicasse neste ponto, pois só depois da publicação dos nossos trabalhos sobre a Inquisição portuguesa a organização do Santo Ofício tem ficado suficientemente esclarecida» (pág. 210). E o mesmo autor, na Homenagem a Camilo no seu centenário (1925), ao referir-se a outro trabalho do romancista, escreveu: − «Camilo para o seu romance intitulado As virtudes antigas, ou A freira que fazia chagas serviu-se duma cópia da sentença [da freira], tão espalhada em miscelâneas seiscentistas, e dum resumo do processo... Daí o ficar incompleta a sua narração.» (pág. 195).

O inédito, cujo fragmento conhecido segue, era por MARQUES GOMES dedicado ao sr. doutor Egas Moniz.

J. T.

  [Vol. I - N.º 3 - 1935] 

CAMILO CASTELO BRANCO abre o seu livro O olho de vidro, cuja acção se passa, em grande parte, em Aveiro, com este prólogo:

«O eminente bibliógrafo e meu prezado amigo Inocêncio Francisco da Silva, historiando em breves linhas a vida quase obscura de Braz Luís de Abreu, conclui com estas palavras:

Se algum dos nossos romancistas actuais se resolvesse a tratar / 210 / o assunto, afigura-se-me que a vida deste nosso médico com os curiosíssimos incidentes que ficam apontados, lhe dariam sobeja matéria para a fábrica de uma composição, onde mediante a lição dos escritos que nos restam de Braz Luís, poderiam fundir-se habilmente espécies mui interessantes para daí resultar obra de cunho verdadeiramente nacional.

Os termos em que o convite é feito animam e ao mesmo tempo assustam. Comecei temerariamente a composição deste romance; mau foi principiá-lo, que eu sou tão pouco cioso de aprimorar escritos desta ordem, que não me forro ao perigo de concluí-los e imprimi-los, ainda quando me desagradam.

Não direi o que pensei deste: assevero, porém, que não está de certo realizada a esperança do meu amigo Inocêncio Francisco da Silva. Se a biografia do autor do Portugal-Médico é mina para locupletar romancistas, vão lá todos, que eu não toquei nos veios mais ricos. Porto, 3 de Março de 1866. Camilo Castelo Branco.»

As breves linhas sobre a vida de Braz Luís de Abreu, de INOCÊNCIO FRANCISCO DA SILVA, a que se refere CAMILO e em que baseou o entrecho do seu romance foram estas:

«Braz Luiz de Abreu. Para rectificar e adicionar o pouco que BARBOSA nos deixou acerca deste escritor, registarei aqui o resultado obtido das investigações, obsequiosamente empreendidas ainda há poucos meses, por alguns cavalheiros da cidade de Aveiro e suas vizinhanças, mediante os rogos de um meu respeitável amigo, com o fim de apurar o possível, quanto à pessoa e feitos daquele distinto médico português. Resultado, cuja maior parte se prende em documentos que ainda existem, sendo o resto havido em tradições nos próprios lugares; e parece portanto dever merecer toda a confiança.
Destas tradições consta que Braz Luiz de Abreu fora exposto em Coimbra e não nascido em Ourém, como diz BARBOSA no seu tomo I, assinando-lhe por pais Francisco Luís de Abreu e Francisca Rodrigues de Oliveira, e dizendo mais que ele nascera a 3 de Fevereiro de 1692. Alguém lhe forneceu os meios para cursar em idade própria o curso de medicina da Universidade, no qual chegou a formar-se, e não há dúvida em que exercera depois a clínica na cidade do Porto, pois que ele mesmo se intitula médico portuense no frontispício do seu Portugal Médico de que logo falaremos.

Diz-se que na primeira idade, em um brinco de rapazes, perdera um olho, o qual substituiu depois por outro de vidro feito com muita arte, provindo-lhe daí a alcunha de olho de vidro, por que era conhecido em vida, e que ainda se conservou muitos anos depois da sua morte. Casou pelos de 1718 com D. Josefa Maria de Sá, natural de Viseu e filha do Doutor António de Sá Mourão e dela houve cinco filhas e três filhos. Aquelas / 211 / chamaram-se Ana Maria, Maria da Natividade, Teresa de Jesus, Antónia Maria e Sebastiana Inácia. Dos filhos não resta memória dos nomes que tiveram.

Passados catorze anos, depois que viviam juntos, o marido e a mulher, por motivos que totalmente se ignoram, convieram em separar-se. Ela entrou no dia 25 de Março de 1732 no
antigo conservatório de S. Bernardino da cidade de A veiro, espécie de recolhimento de mulheres, cuja fundação datava de 2 de Abril de 1680, segundo os documentos que ainda existem, posto que modernamente alguém se persuadisse de que o fundador fôra o próprio Braz Luís de Abreu, o qual na época de que vamos tratando se achava já estabelecido em Aveiro, exercendo a sua profissão, desde alguns anos, e fôra nomeado familiar do Santo Ofício, como eram por aqueles tempos a maior parte dos médicos em Portugal.

D. Josefa, que tinha então 37 anos, levou consigo para o claustro as suas cinco filhas, das quais a mais velha contava 15 anos não completos. O marido ficou com os filhos, de cujo destino apenas consta que um morrera ainda moço, outro tomara depois o hábito de S. Domingos e o terceiro fôra jesuíta.

Braz Luiz, ao separar-se de sua mulher e filhas, vestira-se com o hábito da ordem terceira de S. Francisco, em que era professo, e deixando-as no noviciado partiu para Lisboa, com o
propósito de ordenar-se clérigo, e de promover, como fez, a fundação de um convento, para substituir o pequeno recolhimento, para cujo auxílio conseguiu de el-rei a concessão do real de água. Obtidas em menos de seis meses as ordens clericais e um breve que lhe facultava a continuação do exercício da arte de curar, voltou para Aveiro, e começou a tratar das obras do novo convento, do qual foi nomeado síndico e médico efectivo. Nota-se porém que em todo o tempo que se seguiu à separação conjugal, nunca mais tornou a ver o rosto de sua mulher posto que com ela falasse quase diariamente, porque D. Josefa (como dizem as memórias) tomava sempre a precaução de cobri-lo com um véu.

Chegara, enfim, o dia 24 de Dezembro de 1734 determinado para a profissão solene da mulher e das filhas de Braz Luiz: cantou este nesse mesmo dia missa nova, e serviu de orador, pregando com grande aplauso e louvor do povo de Aveiro o sermão, próprio da festividade.

Mais vinte e dois anos viveu ainda, tratando da administração do convento e da cura dos seus doentes; até que, em 10 de Agosto de 1756, quando estava nos seus sessenta e cinco anos (se é certa a data do nascimento referida por BARBOSA) uma apoplexia fulminante o assaltou, a tempo que estava sentado sobre uma cadeira: e sem haver lugar para receber os sacramentos ou fazer qualquer outra disposição, partiu deste mundo, / 212 / sendo o seu cadáver sepultado no dia seguinte, no próprio convento de S. Bernardino».(1)

Pude saber que o amigo do autor do Dicionário bibliográfico que lhe obteve os dados que publica sobre o protagonista do romance de CAMILO, Braz Luiz de Abreu, o olho de vidro, foi o distinto médico e académico Tomaz de Carvalho, velho amigo de José Estêvão, em casa de quem, em Aveiro, estivera alguns dias no Outono de 1852, e que por essa ocasião se relacionara com o Dr. Bento José Rodrigues de Magalhães, também velho amigo do grande tribuno, e dado a investigações e estudos históricos, que foi quem mais tarde lhe forneceu os aludidos apontamentos. Estes foram decerto colhidos na tradição e muito principalmente em dois manuscritos existentes ao tempo no arquivo da Câmara eclesiástica do bispado de Aveiro. Deviam ser esses documentos o Livro dos autos das entradas e profissões de todas as irmãs desde o princípio deste Conservatório de S. Bernardino etc., e a Lembrança das mortes e virtudes das Primeiras Fundadoras (Conservatório de S. Bernardino) e outras mais irmãs.

Tive ocasião, há anos, de examinar o primeiro destes manuscritos, e tenho presente o segundo, que um feliz acaso me trouxe às mãos. Do exame deste, resultam divergências importantes quanto à narrativa exarada no Dicionário Bibliográfico inteiramente adaptada por CAMILO na confecção do seu romance.

A passagem de BARBOSA MACHADO) que INOCÊNCIO diz rectificar e adicionar é esta: «Braz Luiz de Abreu, filho de Francisco Luiz de Abreu e Francisca Rodrigues de Oliveira, nasceu na Vila de Ourém, em a província da Extremadura, do Bispado de Leiria, a três de Fevereiro de 1692.
Aplicou-se à faculdade de medicina em a Universidade de Coimbra onde, depois de receber o grau de bacharel, a exercitou com fortuna e ciência. Com beneplácito de sua mulher, que retirou com suas filhas ao Recolhimento de S. Bernardino de Terceiras de S. Francisco, situado na vila de Aveiro, passou ao Estado Eclesiástico, em que se conserva com louvável procedimento. Além de ser douto na sua Faculdade é versado em todo o género de erudição, como também da Poesia vulgar.»(2)

As rectificações, que INOCÊNCIO procura fazer a BARBOSA MACHADO e que CAMILO aceitou como boas, caem perante documentos coevos que este decerto viu, quando, em 1862 ou 1863, veio a Aveiro colher informações para a confecção do seu Olho de Vidro e no que foi auxiliado pelo Doutor Agostinho Fernandes / 213 / Milício, Francisco Rezende Júnior e Agostinho D. Pinheiro e Silva. Por eles verifica-se que Braz Luiz de Abreu não fôra exposto em Coimbra, mas que nascera em Ourém e tivera por pais Francisco Luiz de Abreu e Francisca Rodrigues e que sua esposa era filha do doutor António de Sá Mourão e de sua mulher Mariana da Costa. Um destes documentos é este assento que se encontra a folha 22 da Lembrança manuscrita a que já me referi: «A Irmã Maria Teresa da Conceição foi filha de Francisco Luiz de Abreu e de sua mãe Francisca Rodrigues, pessoas de muito louváveis costumes, moradores na vila de Ourém de onde esta sua filha nasceu e com ela as boas inclinações para todas as virtudes.

Ficou órfã de pai e mãe e seu irmão doutor Braz Luiz de Abreu a meteu neste Conservatório, já de crescida idade, o que ela tinha pedido com muita perseverança, muitos anos antes ao Menino Jesus cuja imagem estava na Igreja velha e ela tinha tomado por Esposo e prometido voto de castidade......

Chegou enfim o termo da sua vida e tendo recebido os Santos Sacramentos e estando toda a Comunidade e dois Padres que eram o Padre Confessor e seu irmão dela o Doutor Braz Luiz de Abreu ajudando-a a bem morrer passou em paz desta vida à eterna aos quatro de Março de 1739 tendo de idade 68».

Na página seguinte da mesma Lembrança encontra-se este outro assento:

«A Irmã Josefa do SS.º Sacramento foi filha do Doutor António de Sá Mourão e de sua mãe Mariana da Costa moradores na cidade de Coimbra donde esta sua filha foi natural, ainda que se criou em a cidade de Viseu; em a tenra idade de seis anos a tomou debaixo da sua direcção um Padre douto e de muita virtude e a foi criando no exercício de todas as virtudes para as quais lhe tinha Deus dado natural inclinação; seus pais a criavam para Religiosa e ela só para esse estado tinha todos os seus intentos. Foi Deus servido levar-lhe seu Pai para si e ficou sua Mãe viúva com ela e outra irmã, e como tinham bastantes bens de fortuna ou por que Deus assim o determinava foi muito pretendida para o estado de matrimónio e sua Mãi por não ficar só metendo as filhas no Convento, determinou a casar esta que era a mais velha, tendo dezanove anos de idade com o Doutor Braz Luiz de Abreu, vivendo no estado de matrimónio dezanove anos, de cujo matrimónio teve oito filhos; sendo cinco filhas e três filhos. Eram muito amantes os dois consortes, sem que entre eles houvesse nunca nem a mais mínima razão de discórdia o que Deus assim permitia para que no sacrifício do seu apartamento tivessem mais que oferecer a Deus. Por ocasião da vinda de uns Missionários do Varatojo se ajustaram entre si de se dedicarem a Deus com todas as pessoasque lhe tocavam e assim o executaram, entrando ela neste / 214 / Conservatório com as cinco filhas, tendo a mais nova quatro anos e a mais velha catorze para quinze; entrou também sua irmã dela e também a irmã dele, dito Braz Luiz, ficando ele com três meninos, ficando o mais novo de dez meses nos braços da ama e foi Religioso e outro que ficou de dois anos morreu de bexigas, e o outro que ficou de onze anos também foi Religioso; e o dito Doutor Braz Luiz se ordenou de clérigo e cantou missa nova em o dia que ela professou e pregou na sua profissão um sermão tal que fazendo enternecer e chorar a todos só a professa esteve como uma coluna imóvel com tal fortaleza que causava admiração; e com a mesma fortaleza venceu todas as batalhas do inferno e do mundo, e este lha deu grande extranhando-lhe muito deixar um filho nos braços da ama e levantou muitos testemunhos falsos, muito graves; tudo desprezava com ânimo invencível. A mesma batalha sofre o seu consorte ainda com ânimo menos forte do que ela, mas enfim ajudou-o Deus a alcançar vitória, pois desprezou o mundo perseverantemente, até à morte, cuidando em todo o tempo que viveu em o aumento do Conservatório que em o tempo em que, Deus o chamou com tão forte auxílio estava em grande desamparo e Deus lhe deu a este seu servo, infundindo-lhe amor de Pai muito amante para toda a Comunidade, cuidando com desvelo incansável em procurar meios para fazer-se igreja nova e mais oficinas e ajudou-o Deus tanto que nada pretendeu para bem da Casa que não visse efectuado; todas as petições que representou a El-Rei todas lhas despachou e dele conseguiu esmolas muito quantiosas para as novas obras; atalhou a sua morte a conclusão e perfeição de todas, e não foi Deus servido dilatar-lhe mais a vida alguns anos que certamente ficaria o convento acabado na sua última perfeição.

Entrou esta serva de Deus neste Conservatório de idade de trinta e um anos onde continuou e se foi sempre aperfeiçoando nos exercícios de Piedade e Religião que já no século exercitava.

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Depois que esta serva de Deus professou nunca mais falou a seu irmão que assim chamava a seu marido, e sendo ele médico da Comunidade e ela Prelada nunca o acompanhou nem falou, e quando ela estava enferma, a curava por informação de um cirurgião que lhe assistia; e sendo estes dois consortes tão amantes e vivendo em Deus tão unidos suportavam pelo amor de Deus esta grande mortificação e para prova de amor com que se amavam no mesmo instante em que ele expirou se veio despedir dela dando-lhe um apertado abraço que ela sentiu e ainda que nada viu, conheceu que ele tinha expirado e saindo pela cela fora − morreu meu irmão, e assim tinha sido porque no mesmo ánimo tinha expirado e ela só quatro meses sobreviveu:

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Faleceu a uma quinta-feira das duas para as três horas da / 215 / madrugada aos 16 de Dezembro de 1756 tendo de idade 61».

Num outro manuscrito de igual procedência e que, sem dúvida, foi também examinado na mesma ocasião por Camilo, encontra-se este outro que é a confirmação do que deixo transcrito: «Aos vinte e cinco de Março de mil setecentos e trinta e dois tomou o hábito neste Conservatório de S. Bernardino a irmã Josefa Maria do Santíssimo Sacramento, natural da cidade de Viseu filha legítima do Doutor Antonio de Sá Mourão e de sua mulher Mariana da Costa, e sendo casada com o Doutor Braz Luiz de Abreu e vivendo santamente no estado de matrimónio, por particular devoção divina e consentimento mútuo entre ambos e antes de se separarem, publicamente fizeram voto de castidade e para mais perfeitamente viverem, se recolheu a este Conservatório com cinco filhas e uma irmã que tinha em sua companhia e ele dito Doutor Braz Luiz de Abreu, seu marido, se vestiu no mesmo dia de hábito de terceiro com o qual perseverou até se ordenar de clérigo, ficando com três filhos de tenra idade, tendo ele quarenta e três anos de idade e ela, a dita sua mulher, trinta e sete, justificando primeiro a limpeza do sangue não obstante ser o dito Doutor Braz Luiz de Abreu familiar do Santo Ofício» Livro dos autos das entradas e profissões de todas as irmãs desde o princípio deste Conservatório de S. Bernardino Etc. FoI. 16.

A limpeza de sangue a que se refere este auto está comprovada pelo respectivo processo existente no Arquivo da Torre do Tombo − 1723 maço 3 (Braz) diligência n.º 45, como o tornou, há pouco, público o Sr. JOÃO COSTA no seu livro Castilho e Camilo, demonstrando que, se CAMILO tivesse «folheado os depoimentos das testemunhas e o tratado das certidões de baptismo e casamento de Braz Luiz, mulher, pais, sogros e avós dos dois, certamente certificar-se-ia logo que o entrecho escolhido para o romance partia de uma base falsa.»

Pela notícia respeitante à esposa de Braz Luiz de Abreu que transcrevi, fica-se conhecendo que falecera em dezasseis de Agosto de mil setecentos e cinquenta e seis, sobrevindo assim ao marido, que faleceu a dez de Agosto desse ano, como se vê do assento de óbito que segue:

«Em os dez dias do mês de Agosto de mil setecentos e cinquenta e seis anos, faleceu de repente sentado em uma cadeira sem dar lugar a administração de nenhum sacramento, o Reverendo Doutor Braz Luiz de Abreu, Síndico do Recolhimento de S. Bernardino, da Rua Nova, desta freguesia (S. Miguel): foi sepultado na igreja do mesmo Recolhimento. E para constar fiz este assento que assinei. Dia, mês era ut supra. O coadjutor, Frei Manuel dos Santos Pereira.»

Pelo que deixo documentado, vê-se que, até com a morte / 216 /  da protagonista do seu Olho de vidro, CAMILO fez romance. Mas há mais: as filhas de D. Josefa Maria de Sá e de Braz Luiz de Abreu não professaram no mesmo dia em que sua mãe professou e seu pai disse missa nova.

Ana Maria professou em quinze de Agosto de mil setecentos e trinta e um; Maria da Natividade em quatro de Outubro de mil setecentos e trinta e seis; Sebastiana Inácia em vinte e quatro de Maio de mil setecentos e quarenta e quatro.

Tereza de Jesus não chegou a professar. De Antónia Maria não há assento no livro respectivo, mas na Lembrança das mortes e virtudes etc. lê-se a folhas vinte e oito «A irmã Antónia Maria de S. Bernardino, foi filha quarta do Doutor Braz Luiz de Abreu e de sua mãe Josefa Maria do Sacramento, entrou neste Conservatório da idade de seis para sete anos até cujo tempo desde a idade de três anos se tinha criado em um convento, por cujo motivo mostrou repugnância ao entrar para dentro, ó Mãe ó minha Mãe, vocemecê sabe ser aqui freira; e acomodaram-na como criança, mas depois de ela ver a mãe, tia e irmãs vestidas no hábito lhe deu Deus a vocação como se ela já tivesse adiantado uso de razão, porque começou a exclamar dizendo, nunca na minha vida tive dia tão triste nem tão alegre, triste porque entrei, mas agora muito alegre por cá estar, mudança que se conheceu ser de Deus pois não tinha mediado tempo em que as carícias a pudessem mover, continuou-se a alegria de se ver neste Recolhimento até o fim da vida, que ainda que foi breve nos anos, foi cheia e muito dilatada pelas muitas virtudes que exercitou ..............................................

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faleceu aos dezanove de Maio de mil setecentos e cinquenta tendo de idade vinte e oito anos.»

INOCÊNCIO FRANCISCO DA SILVA, biografando Braz Luiz de Abreu, diz que este, depois que sua mulher entrou para S. Bernardino, promovera a fundação de um convento para substituir o pequeno Recolhimento. Fora a Lisboa e conseguira do rei a concessão do real de água, e, o seu regresso, começara as obras do novo convento do qual foi nomeado síndico e médico efectivo.

CAMILO quis completar a informação de INOCÊNCIO quanto à obra do convento e para isso escreve: «A edificação do convento fez-se num ano. Sobravam os recursos, além do subsídio real. Os cavalheiros da terra concorriam com grandiosos donativos, e muitas esmolas de procedência desconhecida iam dar às mãos do síndico.»

Nem INOCÊNCIO nem CAMILO acertaram quanto à qualidade do subsídio real, e a duração da obra e auxílios para ela.

Tudo isto esclarece suficientemente o próprio BRAZ LUIZ DE ABREU, escrevendo no seu livro O Céu aberto no templo ou o templo aberto no céu. Para teatro espiritual e devoto de umas / 216 / reais, divinas felicíssimas sortes, nas quais não haverá nem preço nem lucro, bilhete sem fortuna, nem sorte nem prémio: .......................................................................

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Por tenção de todas as Devotas e Bemfeitoras do saráfico Conservatório das Capuchinas, ou Terceiras Descalças de Jesus Maria de S. Bernardino da muito nobre e notável Vila de Aveiro publicadas e dadas à luz pelo padre Luiz Borba e Sudré, síndico do mesmo Conservatório. Coimbra: Imprensa de António Simões Ferreira, impressor da Universidade. Ano 1746.

Origem. «Havia muitos anos que esta Comunidade necessitava muito da fábrica material de um novo edifício, especialmente da Igreja, Coro, e mais oficinas a ela pertencentes; porque a sua fundação primitiva era (ainda que devota) tão pequenina, estreita e acanhada, que não dava lugar a que se exercitassem no Coro os Ofícios Divinos com perfeição; nem que o povo as gozasse com decência. Não tinham estas servas de Deus meio algum, com que pudessem intentar uma obra, que precisamente pedia grossos dispêndios; porque a pobreza da Casa fazia esta empresa muito desigual às suas forças, e à da terra (ainda que populosa e fértil de caridade, e de devoção) não poderia suprir com as suas esmolas aos excessivos gastos de uma fundação moderna.

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No ano de mil setecentos e trinta e cinco ao vinte e dois de Setembro, dia do Apóstolo e Evangelista S. Mateus, se lançou a primeira pedra .............................................................

Ouviu Deus N. S. as humildes súplicas e prosperou evidentemente os piedosos das suas servas; pois principiando há dez anos a esta parte o dispêndio das obras com o exercício das partes, assim como nessas se não esfriou a devoção, assim àquelas não faltou o subsídio; porque nestes dez anos se fabricou a Igreja, o Coro alto e baixo, casa das Sacristias, dos Confessionários, da Roda e etc. .......................................................

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chegaram as esmolas a produzir mais de dezassete mil cruzados, não excedendo de vinte e cinco toda a obra feita até ao fim do ano de mil setecentos e quarenta e três, em que se trasladou o Santíssimo Sacramento para a Igreja nova a sete de Dezembro com uma soleníssima procissão por toda a Vila ..............................................................................

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EI-Rei Nosso Senhor foi o primeiro piíssimo Benfeitor, que concorreu para esta obra; seguindo-se os Ilustríssimos e Excelentíssimos Senhores Duques de Aveiro e de Lafões. A nobreza e Povo da Vila se distinguiu com muita especialidade, em ajudar e promover o seu adiantamento, que com verdade se pode afirmar que dela saiu a maior porção para a fábrica deste novo edifício» ........................................................................................................

Não deram as rendas do real de água, que D, João V / 218 / outorgou, para a construção do convento, como querem INOCÊNCIO e CAMILO. Qual foi esse auxílio, di-lo por esta forma o próprio beneficiado, BRAZ LUIZ DE ABREU, no seu Céu aberto no templo ou o templo aberto no céu: «O Senhor Rei D. Pedro II lhe aplicou de ordinária perpétua vinte mil reis em cada um ano, impostos nos direitos de extracção do sal desta Vila (Aveiro), e EI-Rei Nosso Senhor D. João V, que Deus guarde, lhe determinou mais quarenta mil reis, também de ordinária perpétua impostos nos acréscimos das cisas da mesma Vila.»

MARQUES GOMES
Da Academia das Ciências de Lisboa e da Real
Academia de la Historia de Madrid
 

(1) − Dicionário Bibliográfico português) tomo I, pág. 395-396.

(2) − Biblioteca Lusitana − 1741-1759 − vol. I, página 547.