António de Pinho, O convento e a vila de Serém, Vol. 1, pp. 199-207.

O CONVENTO E A VILA DE SERÉM

É a povoação de Serém uma pequena aldeia, vila citada em velhos pergaminhos, a cinco quilómetros de Albergaria. Tão próxima está, e com tantos desvelos e carinhos a olhamos, que a consideramos nossa.

A sua parte alta, ao cimo da Gândara, é um amplo mirante aberto sobre o Vale do Vouga, e fronteiro à encosta ridente e florida de Macinhata; a part:e baixa desce até à beira do Vouga, cujas águas a vão beijar docemente pelas inundações de invernos pesados.

Dois factos davam imperecível relevo ao nome desta povoação, e de ambos nos propúnhamos tratar com certo desenvolvimento, para o que começámos por reunir elementos, suficientemente documentados, e de verdade histórica bem averiguada.

Esses dois factos eram: o Missal Pontifício de ESTÊVÃO GONÇALVES NETO, obra notável de iluminura seiscentista, e o convento de Santo António dos Capuchos, com a sua mata ou cerca, ainda hoje visitada por «gentes que de longe vêm». O missal de ESTÊVÃO GONÇALVES, considerado uma jóia de arte de alto valor, tanto por nacionais como por estrangeiros, andava estreitamente ligado a Serém e ao seu convento, porque todos os escritores, com uma estranha unanimidade, afirmavam que ESTÊVÃO GONÇALVES era abade de Serém, ou do seu convento, quando lhe deu princípio, em 1610. Na estampa do frontispício encontra-se o nome de ESTÊVÃO GONÇALVES, com esta designação abbas sereiiensis , nascendo logo daí a certeza de ser abade de Serém, certeza que todos aceitaram sem relutância.

Demonstra-se agora, decorridos três séculos, que ESTÊVÃO GONÇALVES era abade de Sereijo, próximo da cidade de Pinhel, obtendo o canonicato de Viseu em 1622 (tomou posse em 8 de Outubro), e vindo a falecer em 29 de Julho de 1627.

E nem podia ser abade de Serém, que pertencia já então / 200 / à freguesia de Macinhata do Vouga, nem abade do convento, que só começou a construir-se em 1635.(1)

O que nos surpreende é que levasse três séculos a demolir radicalmente a vetusta tradição que tanto nobilitava o convento e a povoação de Serém, e não somos alheios ao pesar de a nossa vizinha se ver despojada da honra, que se acostumara a ouvir chamar sua, em uma posse de três séculos seguidos.

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Resta a Serém o seu mosteiro de Santo António dos Capuchos, província da ordem de S. Francisco.

Vejamos a história da sua fundação.

RESTOS DO ANTIGO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DE SERÉM
Parte nascente da Capela de Santo António de Serém, com porta de

comunicação para o antigo claustro e à direita restos do convento

 

Diogo Soares, do conselho de Filipe IV, e seu secretário de Estado em Madrid, em 15 de Fevereiro de 1634 passou / 201 / procuração a António de Matos da Fonsequa (sic), escrivão da Alfândega de Lisboa, dando-lhe poderes para se obrigar, para com o Provincial e mais padres de Santo António, à fundação de um convento que queria fazer à sua custa na sua vila de Serém, e dele ser padroeiro, assim como queria obrigar-se ao sustento dos religiosos desse mosteiro.

Em 23 de Junho de 1634 se lavrou aquela escritura, em que Diogo Soares se obrigava a construir o convento, de que seria padroeiro, reservando o domínio da igreja e capela-mor para sepultura sua e dos seus, e uma tribuna própria na igreja.

Logo o Provincial e mais religiosos enviaram ao rei a sua petição a impetrar licença, pela forma que segue:

 

«Diz o Provincial e mais Religiosos da ordem de S. Francisco da Provincia de Santo Antonio que elles tem munta necessidade de hum convento entre as cidades do Porto e Coimbra pera nelles se poderem os Religiosos da dita Provincia agazalhar quando por aquellas partes caminhão, por ser o seu ordinario caminho e andarem a pée e ser mais decente agazalharem-se em conventos que em estalagens; e porque o lugar de Serem onde o determinam fazer fica em meyo do caminho e pera huma parte em que ha mosteiro de Religiosos de outra Religiam dista trez legoas, e pera outra cinquo e seis e não ha outro mosteiro algum mais, havendo muntos e bons lugares em que podem fazer munto fruto espiritual acudir ás necessidades das almas e sam Religiosos que guardam e observão estreita pobreza, com que se não pode conciderar prejuizo algum porque não adquirem fazenda nem pessuem bens e tem uma pessoa devota que por sua devoção lhe quer ajudar a fazer o dito convento que ha de ser mui limitado de doze Religiosos sómente: Pedem a Vossa Magestade lhe faça merce pera poderem fazer o dito convento na forma que apontão. E: Receberão mercê.

Miguel Maldonado. André Velho da Fonsequa.»


Por alvará de 16 de Setembro de 1634, o rei concedeu a licença pedida.

Em 21 de Março de 1635, foi lavrada a escritura, pela qual Diogo Soares, pelo seu procurador António de Matos Fonseca, se compromete a dar aos doze religiosos do mosteiro de Serém para a sua sustentação, e para todo o sempre, por semana dois alqueires e meio de trigo e 50 arráteis de carne, ou o valor desta pela quaresma e advento, por ano uma pipa de vinho , e todo o azeite para a lâmpada. Para garantia destas obrigações, oferecia especialmente os rendimentos das suas vilas de Serém e do Préstimo, bem Como todos os seus bens.

Em 18 de Abril de 1635 foi lavrada a escritura da escolha / 202 / do sítio para o mosteiro e cerca. Foi lavrada já em Serém por António Cardoso de Morais, que se designa:


«Tabaliam do publico judicial e notas em a Villa do Vouga e seus termos pello conde de Miranda, senhor della, e em as villas de Serem e Prestimo por EI-Rey Nosso «Senhor».


Deste modo se especifica a área das suas funções, e quem tinha o direito de nomeação nas diversas vilas.

A mencionada escritura, em que aparece o desembargador doutor Estêvão de Fojos como procurador de Diogo Soares, e vários padres de Santo António pela outra parte, fixam-se os terrenos para o mosteiro, dependências e cerca, pela seguinte maneira:

 

 

«O outeiro onde chamam a Lomba do Feal que está assima da fonte, no qual se lanssou a primeira pedra para o edificio da igreja e convento, pera a cerca se virá descendo pelIa dita Lomba abaixo para a parte do norte athé a agoa que vai da dita fonte, e correndo ao longo da dita agoa em direitura ao Rio Vouga que chamam do canadeal, e dahy ao olival direito á Lapa da Pontinha, e passando a dita Lapa se vay ao Rego do Valle das Hortas, e passado o dito valle logo se vai pella lombada assima ao longo dos Sobreiros em que nella estam direitos ao nascimento da agoa que vem pello dito valle, dahi se endereita pella Lomba do Feal abayxo athé o logar em que se hade edificar o dito mosteiro, e todas as terras propriedades ficam dentro desta divizam, e assim a agoa do Valle das Hortas se elegeo para o dito mosteiro e sua cerca, etc.»


Em 30 de Maio de 1635 foi lavrado o auto de posse dos terrenos necessários para o convento e cerca, diligência presidida pelo juiz ordinário e dos órfãos da vila de Serém e seus termos, Sebastião Gonçalves, sendo o auto lavrado pelo tabelião António Cardoso de Morais, e a posse dada a Manuel Ferreira, procurador e síndico dos frades.

Como testemunhas presentes, assinaram Manuel de Almeida Henriques, da Arrancada, do concelho do Vouga, e António de Pino, morador na sua quinta do Couto, concelho do Vouga.

Foram 26 leiras, hortas, vinhas e devesas as que fizeram objecto da posse, todas ali nomeadas com seus enfiteutas. Aqui aquivamos a forma da posse efectiva:


«...as passiey de alto a baixo e metendo-lhe em as mãos terra e ervas e folhas de vinha e ramos de madeira e tudo quanto em eIlas estavam, e de tudo houvemos por
/ 203 / empossado e envestido em a posse dellas ao dito Manuel Ferreira, etc.»


Como consta da escritura de 16 de Abril de 1635, foi nesta nesta colocada a primeira pedra para o edifício do mosteiro; e em 4 de Outubro de 1638, dia de S. Francisco, foi depositado o Santíssimo na igreja e rezada a primeira missa;
em 16 de Maio de 1639 foi fechada a abóbada da capela-mor, e em 30 de Agosto seguinte fechou-se a abóbada do corpo da igreja.

Cruzeiro; parte do antigo Convento de Santo António, da ordem de S. Francisco da Província da Conceição, de Serém, antigo concelho do Vouga, e Capela de Santo António de Serém


Aos religiosos Parecia insuficiente o azeite prometido por Diogo Soares, e daí requereram à Coroa que lhes desse um quarto de azeite por ano, o que foi atendido no ano de 1636 e subsequentes.

Até à revolução de 1 de Dezembro de 1640, correram as coisas com regularidade. Iam tomando incremento as obras a expensas de Diogo Soares, e este ia pagando o trigo, a carne e o vinho para sustentação dos frades, já lá instalados.

Começaram então as vicissitudes para o mosteiro e seus / 204 / habitantes, derivadas do facto de se haverem confiscado todos os bens de Diogo Soares, filipista acirrado, e que se recusou a sair de Madrid.

É assim que já em Agosto de 1641 o provincial da província de Santo António expunha ao rei que, faltando concluir o coro, o claustro, a cerca da clausura e «outras oficinas do mosteiro de Serém, obras orçadas em 950 e tantos mil reis, obras que deveriam fazer-se pelas rendas que Diogo Soares ali tinha, e eram no valor de 670$000 reis anuais, então sequestradas, pediam que as obras se continuassem à custa das mesmas rendas.

O rei, pela sua provisão de 25 de Outubro de 1641, encarregou o Provedor da comarca de Esgueira de arrematar aquelas obras por partes, a começar pela cerca, mas autorizava a que apenas se gastassem 200$000 reis cada ano, levantando-se o sequestro até essa quantia.

As obras prosseguiram à custa dos 200$00 anuais, o que se constatou na provisão régia de 4 de Outubro de 1658, registada em 7 de Outubro do mesmo ano, provisão que reconhecia a necessidade de fazer o claustro, a varanda, e aperfeiçoar a igreja e retábulo, para o que mandava acabar essas obras «athé ficarem na perfeiçam» com os 40$000 reis de renda que estão no Casainho, os nove mil reis que rende o Hospital de Doninhas, ordenando que se nomeasse um tesoureiro «seguro e abonado».

Neste sentido se passou nova provisão em 30 de Janeiro de 1659, ordenando ao provedor da comarca de Esgueira fiscalizasse as obras e nomeasse tesoureiro.

O padroeiro do convento, Diogo Soares, morreu em Madrid no ano de 1649, e logo seu filho mais velho, Miguel Soares de Vasconcelos, demandou a Coroa para que lhe fossem restituídos os bens sequestrados a seu pai, vindo em 1679 a tirar por sentença o senhorio da vila de Serém e seu termo, da do Préstimo, e o padroado do convento.

De posse desses bens, não se dispunha a pagar a ordinária ao convento, motivo por que o síndico dos religiosos de Serém veio requerer ao provedor de Esgueira embargo nas rendas em mão dos rendeiros até que seja paga a ordinária, que é de 76$000 reis, paga aos quartos, e um quarto de vinho, tudo em cada ano.

O provedor Dr. Luís Pereira Gonçalves em 30 de Agosto de 1681 mandou aos juízes do Préstimo e do concelho de Serém que procedessem ao embargo. Este mandado foi presente ao juiz de Serém, Manuel João, em 10 de Setembro, havendo a notar que este magistrado assinou de cruz, por não saber escrever.

No mesmo dia 10 de Setembro o escrivão da Câmara de Serém, Jerónimo Ferreira, foi ao lugar da Póvoa, de Jafafe de / 205 / Baixo, termo de Serém, pôr o embargo aos rendeiros João Afonso, Francisco Domingues e Francisco Fernandes.

Por falecimento daquele Miguel Soares Vasconcelos, senhor de Serém e padroeiro do convento em substituição de seu pai Diogo Soares, a sua viúva, D. Joana Maria Pacheco de Melo, veio a contrair segundas núpcias com Paulo Carneiro, chanceler-mor da Corte, e deixou uma filha de nome D. Isabel Bernarda Soares, que em 1705 estava casada com D. João de Melo Abreu, o qual por sua mulher era comendador de Santa Maria de Freches na ordem de Cristo, senhor das vilas do Préstimo e de Serém, e padroeiro do convento dos Capuchos de Santo António (Corografia do Padre CARVALHO DA COSTA, 2.ª ed., 2.º vol., pág. 96 e 102).

Vista geral, vendo-se o antigo convento, escadaria, e ao fundo o palacete de recente construção da residência da Quinta de Serém, do Sr. Augusto Gomes júnior, actual proprietário da quinta e convento


São exactas estas afirmações do Padre CARVALHO, mas as vilas do Préstimo e de Serém, com as suas rendas, foram tiradas a D. João de Melo Abreu em 1734, como o certificam as cartas por ele escritas em 9 de Novembro de 1735, aos padres Guardião e procurador do convento de Serém, e nas quais respondia às queixas por estes feitas em razão daquele Abreu haver deixado de pagar a ordinária a que se obrigara o fundador para sustentação dos religiosos.

/ 206 / Nessas cartas alega que lhe foram tiradas aquelas vilas vinculadas à obrigação da ordinária, bem como lhe tiraram os bens livres do avô de sua mulher, sendo tudo vendido, restando-lhe os morgados mais antigos e os bens da Coroa roa ou reguengos. (2)

Alegava ainda que, enquanto cobrou as rendas, satisfizera com pontualidade ao convento não tendo agora obrigação, mas oferece pagar metade por querer conservar o padroado do convento.

Os religiosos consultaram advogados, e três dessas consultas temos presentes, todas elas concordes no parecer de que D. João de Melo Abreu era obrigado ao pagamento total, enquanto possuísse quaisquer bens herdados do fundador Diogo Soares.

Colunas e arcos do antigo claustro, aplicados na actual residência do Sr. A. Gomes.

 

Desconhecemos as consultas de D. João de Melo, mas é de crer discordassem, pois se levantou demorada discussão, em que deveriam ter intervindo os tribunais, terminando por D. João  / 207 / de Melo se obrigar em 1745 a pagar a ordinária de 50$00 reis em duas prestações iguais, uma pelo Natal e outra pela Páscoa ou S. João, quantias que haviam de ser entregues pelos seus rendeiros de Albergaria(3) e de Angeja, aos quais dera já tal ordem. Os termos duros desta carta, dirigida ao Padre Guardião em 26 de Janeiro de 1746, denotam em João de Melo um grande aborrecimento.

Afigura-se-nos termos enfeixado o maior número de elementos, e todos os necessários, para fazermos a história completa da fundação do convento de Serém.

Com a abolição das ordens religiosas em 28 de Maio de 1834, foram, o convento e cerca, vendidos ao grande liberal Dr. José Henriques Ferreira, que ali constituiu a sua habitação, e lá faleceu em 2 de Setembro de 1893.

Os herdeiros do Dr. José Henriques venderam essa propriedade ao falecido Augusto Gomes, de Espinho, que nela edificou um magnífico palacete, e muitas obras de embelezamento executou na cerca, construindo lagos, arruando, enriquecendo a mata com muitas e belas árvores ornamentais e de fruto, aformoseando tudo, e introduzindo largamente o aspecto moderno.

É hoje ali proprietário e morador o Sr. Augusto Gomes Júnior.


Albergaria Velha, 1935

ANTÓNIO DE PINHO

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(1) Este assunto vem desenvolvido no opúsculo Uma Jóia de Iluminura Portuguesa J. CARDOSO GONÇALVES, publicado em 1931 pela Empresa Editora Pátria, de Gaia. O mesmo Autor tinha publicado em 1927 um outro trabalho sobre o assunto, e nele forrragiámos vários apontamentos.

(2)  CAMIILO CASTELO BRANCO, na parte da história anexa à Corja, refere que em 1640 subornaram D. Fernando de Cueva para que entregasse ao rei D. João IV a fortaleza de S. Gião, na barra de Lisboa, de que era governador, dando-lhe, entre outras prebendas, uma boa quinta confiscada a Diogo Soares.

(3)  Este D. João de Melo Abreu era donatário de Albergaria.

 

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