É
a povoação de Serém uma pequena aldeia,
− vila citada em velhos pergaminhos, a cinco quilómetros de Albergaria. Tão
próxima está, e com tantos desvelos e carinhos a olhamos, que a
consideramos nossa.
A sua parte alta, ao cimo da Gândara, é um amplo mirante
aberto sobre o Vale do Vouga, e fronteiro à encosta ridente e florida de
Macinhata;
− a part:e baixa desce até à beira do Vouga, cujas águas a vão
beijar docemente pelas inundações de invernos pesados.
Dois factos davam imperecível
relevo ao nome desta povoação, e de ambos nos propúnhamos tratar com certo desenvolvimento,
para o que começámos por reunir elementos,
suficientemente documentados, e de verdade histórica bem averiguada.
Esses dois factos eram:
−
o Missal Pontifício de ESTÊVÃO
GONÇALVES NETO, obra notável de iluminura seiscentista, e o
convento de Santo António dos Capuchos, com a sua mata ou cerca, ainda
hoje visitada por «gentes que de longe vêm».
O missal de ESTÊVÃO GONÇALVES, considerado uma jóia de arte de alto
valor, tanto por nacionais como por estrangeiros, andava estreitamente ligado a Serém e ao seu convento, porque
todos os escritores, com uma estranha unanimidade, afirmavam que ESTÊVÃO
GONÇALVES era abade de Serém, ou do seu convento, quando lhe deu
princípio, em 1610. Na estampa do frontispício encontra-se o nome de
ESTÊVÃO GONÇALVES, com esta designação
−
abbas sereiiensis
−, nascendo logo
daí a certeza de
ser abade de Serém, certeza que todos aceitaram sem relutância.
Demonstra-se
agora, decorridos três séculos, que ESTÊVÃO
GONÇALVES era abade de Sereijo, próximo da cidade de Pinhel,
obtendo o canonicato de Viseu em 1622 (tomou posse em 8 de
Outubro), e vindo a falecer em 29 de Julho de 1627.
E nem podia ser abade de Serém, que pertencia já então
/ 200 /
à freguesia de Macinhata do Vouga, nem abade do
convento, que só começou a construir-se em 1635.(1)
O que nos surpreende é que levasse três séculos a demolir radicalmente a
vetusta tradição que tanto nobilitava o convento e a povoação de Serém,
e não somos alheios ao pesar de a nossa vizinha se ver despojada da
honra, que se acostumara a ouvir chamar sua, em uma posse de três
séculos seguidos.
*
* *
Resta a Serém o seu mosteiro de Santo António dos Capuchos, província da ordem de S. Francisco.
Vejamos a história da sua fundação.
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RESTOS DO ANTIGO CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DE SERÉM
Parte nascente da Capela de Santo António de Serém, com porta de
comunicação para o antigo claustro e à direita restos do convento
|
Diogo Soares, do conselho de Filipe IV, e seu secretário de Estado em
Madrid, em 15 de Fevereiro de 1634 passou
/ 201 / procuração a António de Matos da Fonsequa (sic), escrivão da Alfândega
de
Lisboa, dando-lhe poderes para se obrigar, para com o Provincial e mais
padres de Santo António, à fundação de um convento que queria fazer à
sua custa na sua vila de Serém, e dele ser padroeiro, assim como queria
obrigar-se ao sustento dos religiosos desse mosteiro.
Em 23 de Junho de 1634 se lavrou aquela escritura, em que Diogo Soares
se obrigava a construir o convento, de que seria padroeiro, reservando o
domínio da igreja e capela-mor para sepultura sua e dos seus, e uma
tribuna própria na igreja.
Logo o Provincial e mais religiosos enviaram ao rei a sua petição a
impetrar licença, pela forma que segue:
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«Diz o Provincial e mais Religiosos da ordem de S. Francisco da
Provincia de Santo Antonio que elles tem munta necessidade de hum
convento entre as cidades do Porto e Coimbra pera nelles se poderem
os Religiosos da dita Provincia agazalhar quando por aquellas partes
caminhão, por ser o seu ordinario caminho e andarem a pée e ser mais
decente agazalharem-se em conventos que em estalagens; e porque o
lugar de Serem onde o determinam fazer fica em meyo do caminho e
pera huma parte em que ha mosteiro de Religiosos de outra Religiam
dista trez legoas, e pera outra cinquo e seis e não ha outro
mosteiro algum mais, havendo muntos e bons lugares em que podem
fazer munto fruto espiritual acudir ás necessidades das almas e sam
Religiosos que guardam e observão estreita pobreza, com que se não
pode conciderar prejuizo algum porque não adquirem fazenda nem
pessuem bens e tem uma pessoa devota que por sua devoção lhe quer
ajudar a fazer o dito convento que ha de ser mui limitado de doze
Religiosos sómente: Pedem a Vossa Magestade lhe faça merce pera
poderem fazer o dito convento na forma que apontão. E: Receberão
mercê.
Miguel Maldonado. André Velho da Fonsequa.» |
Por alvará de 16 de Setembro de 1634, o rei concedeu a licença pedida.
Em 21 de Março de 1635, foi lavrada a escritura, pela qual
Diogo Soares, pelo seu procurador António de Matos Fonseca,
se compromete a dar aos doze religiosos do mosteiro de Serém para a sua
sustentação, e para todo o sempre, por semana dois alqueires e meio de
trigo e 50 arráteis de carne, ou o valor
desta pela quaresma e advento,
− por ano uma pipa de
vinho
−,
e todo o azeite para a lâmpada. Para garantia destas obrigações,
oferecia especialmente os rendimentos das suas vilas de Serém e do
Préstimo, bem Como todos os seus bens.
Em 18 de Abril de 1635 foi lavrada a escritura da escolha
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do sítio para o mosteiro e cerca. Foi lavrada já em Serém por António
Cardoso de Morais, que se designa:
«Tabaliam do publico judicial e notas em a Villa do Vouga e seus
termos pello conde de Miranda, senhor della, e em as villas de Serem e
Prestimo por EI-Rey Nosso «Senhor».
Deste modo se especifica a área das suas funções, e quem
tinha o direito de nomeação nas diversas vilas.
A mencionada escritura, em que aparece o desembargador doutor Estêvão de
Fojos como procurador de Diogo Soares, e vários padres de Santo António
pela outra parte, fixam-se os terrenos para o mosteiro, dependências e
cerca, pela seguinte maneira:
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«O outeiro onde chamam
a Lomba do Feal que está assima da fonte, no qual se lanssou a
primeira pedra para o edificio da igreja e convento, pera a cerca se
virá descendo pelIa dita Lomba abaixo para a parte do norte athé a
agoa que vai da dita fonte, e correndo ao longo da dita agoa em
direitura ao Rio Vouga que chamam do canadeal, e dahy ao olival
direito á Lapa da Pontinha, e passando a dita Lapa se vay ao Rego do
Valle das Hortas, e passado o dito valle logo se vai pella lombada
assima ao longo dos Sobreiros em que nella estam direitos ao
nascimento da agoa que vem pello dito valle, dahi se endereita pella
Lomba do Feal abayxo athé o logar em que se hade edificar o dito
mosteiro, e todas as terras propriedades ficam dentro desta divizam,
e assim a agoa do Valle das Hortas se elegeo para o dito mosteiro e
sua cerca, etc.» |
Em 30 de Maio de 1635 foi lavrado o auto de posse dos
terrenos necessários para o convento e cerca, diligência presidida
pelo juiz ordinário e dos órfãos da vila de Serém e seus termos,
Sebastião Gonçalves, sendo o auto lavrado pelo tabelião António Cardoso
de Morais, e a posse dada a Manuel Ferreira, procurador e síndico dos
frades.
Como testemunhas presentes, assinaram Manuel de Almeida Henriques, da
Arrancada, do concelho do Vouga, e António de Pino, morador na sua
quinta do Couto, concelho do Vouga.
Foram 26 leiras, hortas, vinhas e devesas as que fizeram objecto da
posse, todas ali nomeadas com seus enfiteutas. Aqui aquivamos a forma da
posse efectiva:
«...as passiey de alto a baixo e metendo-lhe em as mãos terra e ervas e
folhas de vinha e ramos de madeira e tudo quanto em eIlas estavam, e de
tudo houvemos por
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203 /
empossado e envestido em a posse dellas ao dito Manuel Ferreira, etc.»
Como consta da escritura de 16 de Abril de 1635, foi nesta nesta colocada a primeira pedra para o edifício do mosteiro; e em 4 de
Outubro de 1638, dia de S. Francisco, foi depositado o Santíssimo na
igreja e rezada a primeira missa;
− em 16 de Maio de 1639 foi fechada a
abóbada da capela-mor, e em 30 de Agosto seguinte fechou-se a abóbada do
corpo da igreja.
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Cruzeiro; parte do antigo Convento de Santo António, da ordem de S.
Francisco da Província da Conceição, de Serém, antigo concelho do Vouga,
e Capela de Santo António de Serém |
Aos religiosos Parecia insuficiente o azeite prometido por
Diogo Soares, e daí requereram à Coroa que lhes desse um quarto de
azeite por ano, o que foi atendido no ano de 1636 e subsequentes.
Até à revolução de
1 de Dezembro de 1640, correram as
coisas com regularidade. Iam tomando incremento as obras a expensas de
Diogo Soares, e este ia pagando o trigo, a carne e o vinho para
sustentação dos frades, já lá instalados.
Começaram então as vicissitudes para
o mosteiro e seus
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habitantes, derivadas do facto de se haverem confiscado todos os bens de
Diogo Soares, filipista acirrado, e que se recusou a sair de Madrid.
É assim que já em Agosto de 1641 o provincial da província de Santo António expunha ao rei que, faltando concluir o coro, o
claustro, a cerca da clausura e «outras oficinas do mosteiro de Serém,
obras orçadas em 950 e tantos mil reis, obras que deveriam fazer-se
pelas rendas que Diogo Soares ali tinha, e eram no valor de 670$000 reis
anuais, então sequestradas, pediam que as obras se continuassem à custa
das mesmas
rendas.
O rei, pela sua provisão de 25 de Outubro de 1641, encarregou o Provedor
da comarca de Esgueira de arrematar aquelas obras por partes, a começar
pela cerca, mas autorizava a que apenas se gastassem 200$000 reis cada
ano, levantando-se o sequestro até essa quantia.
As obras prosseguiram à custa dos 200$00 anuais, o que se constatou na
provisão régia de 4 de Outubro de 1658, registada em 7 de Outubro do
mesmo ano, provisão que reconhecia a necessidade de fazer o claustro, a
varanda, e aperfeiçoar a igreja e retábulo, para o que mandava acabar
essas obras «athé ficarem na perfeiçam» com os 40$000 reis de renda
que estão no Casainho, os nove mil reis que rende o Hospital de
Doninhas, ordenando que se nomeasse um tesoureiro «seguro e abonado».
Neste sentido se passou nova provisão em 30 de Janeiro de 1659,
ordenando ao provedor da comarca de Esgueira fiscalizasse as obras e
nomeasse tesoureiro.
O padroeiro do convento, Diogo Soares, morreu em Madrid no ano de 1649,
e logo seu filho mais velho, Miguel Soares de Vasconcelos, demandou a
Coroa para que lhe fossem restituídos os bens sequestrados a seu pai,
vindo em 1679 a tirar por sentença o senhorio da vila de Serém e seu
termo, da do Préstimo, e o padroado do convento.
De posse desses bens, não se dispunha a pagar a ordinária ao convento,
motivo por que o síndico dos religiosos de Serém veio requerer ao
provedor de Esgueira embargo nas rendas em mão dos rendeiros até que
seja paga a ordinária, que é de 76$000 reis, paga aos quartos, e um
quarto de vinho, tudo em cada ano.
O provedor Dr.
Luís Pereira Gonçalves em 30 de Agosto de 1681 mandou aos juízes do Préstimo e do concelho de Serém que procedessem ao embargo.
Este mandado foi presente
ao juiz de Serém, Manuel João, em 10 de Setembro, havendo a notar que
este magistrado assinou de cruz, por não saber escrever.
No mesmo dia 10 de Setembro o escrivão da Câmara de Serém, Jerónimo
Ferreira, foi ao lugar da Póvoa, de Jafafe de
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Baixo, termo de Serém, pôr o embargo aos rendeiros João Afonso,
Francisco Domingues e Francisco Fernandes.
Por falecimento daquele Miguel Soares Vasconcelos, senhor de Serém e
padroeiro do convento em substituição de seu pai Diogo Soares, a sua
viúva, D. Joana Maria Pacheco de Melo, veio a contrair segundas núpcias
com Paulo Carneiro, chanceler-mor da Corte, e deixou uma filha de nome
D. Isabel Bernarda Soares, que em 1705 estava casada com D. João de Melo
Abreu, o qual por sua mulher era comendador de Santa Maria de Freches na
ordem de Cristo, senhor das vilas do Préstimo
e de Serém, e padroeiro do convento dos Capuchos de Santo António (Corografia
do Padre CARVALHO DA COSTA, 2.ª ed., 2.º vol., pág. 96 e 102).
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Vista geral,
vendo-se o antigo convento, escadaria, e ao fundo o
palacete de recente construção da residência da Quinta de Serém, do Sr.
Augusto Gomes júnior, actual proprietário da quinta e convento |
São exactas estas afirmações do Padre CARVALHO, mas as vilas do Préstimo
e de Serém, com as suas rendas, foram tiradas a D. João de Melo Abreu em
1734, como o certificam as cartas por ele escritas em 9 de Novembro de
1735, aos padres Guardião e procurador do convento de Serém, e nas quais
respondia às queixas por estes feitas em razão daquele Abreu haver deixado
de pagar a ordinária a que se obrigara o fundador para sustentação dos
religiosos.
|
/
206 /
Nessas cartas alega que lhe foram tiradas aquelas vilas
vinculadas à obrigação da ordinária, bem como lhe tiraram os bens
livres do avô de sua mulher, sendo tudo vendido, restando-lhe os morgados mais antigos e os bens da Coroa roa ou reguengos.
(2)
Alegava ainda que, enquanto cobrou as rendas, satisfizera com
pontualidade ao convento não tendo agora obrigação, mas oferece pagar
metade por querer
conservar o padroado do convento.
Os religiosos consultaram advogados, e três dessas consultas temos
presentes, todas elas concordes no parecer de que D. João de Melo
Abreu era obrigado ao pagamento total, enquanto possuísse quaisquer
bens herdados do fundador Diogo Soares. |
Colunas e arcos do antigo claustro, aplicados na
actual residência do Sr. A. Gomes. |
Desconhecemos as consultas de D. João de Melo, mas é de crer
discordassem, pois se levantou demorada discussão, em que deveriam ter
intervindo os tribunais, terminando por D. João
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de Melo se obrigar em 1745 a pagar a ordinária de 50$00 reis em duas
prestações iguais, uma pelo Natal e outra pela Páscoa ou S. João,
quantias que haviam de ser entregues pelos seus rendeiros de Albergaria(3)
e de Angeja, aos quais dera já tal ordem. Os termos duros desta carta,
dirigida ao Padre Guardião em 26 de Janeiro de 1746, denotam em João de
Melo um
grande aborrecimento.
Afigura-se-nos termos enfeixado o maior número de elementos, e todos os
necessários, para fazermos a história completa da fundação do convento
de Serém.
Com a abolição das ordens religiosas em 28 de Maio de 1834, foram, o
convento e cerca, vendidos ao grande liberal Dr. José Henriques
Ferreira, que ali constituiu a sua habitação, e lá faleceu em 2 de
Setembro de 1893.
Os herdeiros do Dr. José Henriques venderam essa propriedade ao
falecido Augusto Gomes, de Espinho, que nela edificou um magnífico
palacete, e muitas obras de embelezamento executou na cerca,
construindo lagos, arruando, enriquecendo a mata com muitas e belas
árvores ornamentais e de fruto, aformoseando tudo, e introduzindo
largamente o aspecto moderno.
É hoje ali proprietário e morador o
Sr. Augusto Gomes
Júnior.
Albergaria Velha, 1935
ANTÓNIO DE PINHO
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