5.1 – Origem das designações

Aveirense verdadeiro ou é cagaréu ou é ceboleiro!

 

Tais designações populares são sobejamente conhecidas, ultrapassando a sua fama largamente as fronteiras concelhias e, não raramente, até as nacionais, pela mão dos muitos emigrantes que de terras de Aveiro têm saído, ao longo de várias gerações.

 

Tentámos saber quando teriam surgido tais designações, apesar de se adivinhar ser difícil tarefa. Para tal, procedemos a consultas várias, de que são exemplo algumas das obras constantes na bibliografia indicada no final do presente trabalho. Embora não estando, obviamente, esgotada a consulta, percorremos, também, grande número de volumes e artigos constantes do Arquivo do Distrito de Aveiro[1], nunca nos tendo sido dado a observar a ocorrência das procuradas designações.

 

João Gonçalves Gaspar em Aveiro na história utiliza ambas as designações. Nessa obra, o autor explica que no séc. XV Aveiro contava com cerca de 3000 habitantes “estendendo-se fora das muralhas, formando na margem norte do canal a chamada Vila Nova”, residência de gentes ligadas ao mar e à burguesia, com as suas actividades mercantis: os cagaréus.

 

Diz ainda o mesmo autor que, no Cimo de Vila, ou seja, “para sul da porta da vila”, se desenvolvia outro agrupamento habitacional, constituído por pessoas que se ocupavam da cultura dos quintais e dos campos: os ceboleiros.

 

Apesar desta directa referência a ambas as designações, continuamos sem saber quando elas surgiram, sendo seguro que, por tão antigas, se perderam na vastidão do tempo.

 

Se bem que desconheçamos o quando, o porquê de tais designações já nos é possível conhecer: 

 

 

Cagaréus

 

 

No já referido Arquivo do Distrito de Aveiro, encontrámos no artigo intitulado Loquela dos povos da Beira-ria· a referência ao uso da palavra Cagarête, como sendo “ o local mais recuado à ré do barco e a seguir à entremesa.

 

Ora, sendo, como já se disse, o bairro da Beira-mar ocupado por gente ligada à ria ou ao mar, desde marnotos, pescadores ou moliceiros, a sua vida era passada dentro da bateira, do mercantel, do moliceiro ou de qualquer outra embarcação. Quando as necessidades fisiológicas “apertavam”, estes homens solucionam o problema utilizando a ré do barco. Deste antigo e específico hábito (cagar à ré), surgiu o conhecido termo regional cagaréu.

 

O próprio dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora – edição de 2004 – dá-nos o seguinte significado:

 

Cagaréu: s. m. (regionalismo) designação dada aos pescadores da cidade Portuguesa de Aveiro, especialmente aos nascidos na freguesia da Vera Cruz (de cagar + éu)

 


 

Ceboleiros

 

 

Procurámos também este termo no já referido dicionário, ocorrendo apenas no género feminino:

 

Ceboleira: s.f., mulher que negoceia em cebolas.

 

Para melhor compreendermos o porquê desta designação, torna-se necessário retroceder no tempo, à época em que a vila de Aveiro se encontrava muralhada. Na sequência de um enorme incêndio que destruiu o burgo no início do séc. XV[2], o infante D. Pedro[3] mandou construir as magníficas muralhas, sabendo-se que em Agosto de 1413 a sua construção estava a processar-se e se prolongou por dezenas de anos. Compostas por uma estrutura irregular, tinham quatro postigos, vários torreões e oito portas com a seguinte designação: da vila (a sul, dando entrada na rua direita), do Sol (para oriente), do Campo, do Cojo (ou cais), da Ribeira (situada junto à costeira), do Alboi (mais para sul), de Rabães e de Vagos (junto ao convento de St. António).[4] Marques Gomes, nos seus Subsídios para a história de Aveiro, refere apenas sete portas, não indicando a do Campo. Outros autores indicam mesmo nove portas.

 

Estas muralhas vieram dar à vila robustez, segurança e grandeza, num período particularmente favorável, sendo visível o seu crescimento em população e riqueza, tornando-a numa verdadeira vila burguesa.

 

Face a este desenvolvimento, a vila, composta até aí por uma única freguesia – a de S. Miguel – passou em 1572 a estar dividida em quatro: além da de S. Miguel (parte nobre da vila, quase toda muralhada), foi criada a do Espírito Santo (a sul do canal central, mas fora das muralhas), a da Vera-Cruz e a de N. Sra. da Apresentação, ambas na designada Vila Nova, zona de pescadores e marnotos, já a norte do canal central.[5]

 

Na antiga freguesia de S. Miguel e junto à igreja matriz que lhe deu o nome – Igreja de S. Miguel[6] –, efectuava-se o conhecido Mercado das Cebolas. Por essa razão, os habitantes e naturais do canal central para sul, zona mais nobre da vila, por aí residirem os descendentes dos mais antigos povoadores da urbe, passaram a ser designados de ceboleiros.

 

Lamentavelmente, em 1835, o governador civil José Joaquim Lopes de Lima manda demolir o histórico e emblemático templo de S. Miguel, alegando razões de higiene pública, devido ao mau estado de conservação do mesmo, além de evocar a necessidade de se proceder ao embelezamento do local. Por alvará publicado em onze de Outubro do mesmo ano, o referido governador civil reduz a duas as quatro freguesias da cidade, passando Aveiro a ter as freguesias da Vera cruz (para norte do canal) e a de N. Sra. da Glória (para sul do canal), divisão esta que se mantém até aos nosso dias.[7]

 

Após a demolição da igreja matriz de S. Miguel, a feira das cebolas passou a efectuar-se do outro lado do canal (já em terreno cagaréu), mais precisamente ao longo da margem esquerda do canal central, quase à entrada do Rossio, conforme se pode ver na imagem que se segue.

 

   
 

Cais dos ceboleiros

 

 

[1] Revista trimestral fundada em 1935 por António Gomes R. Madahil, Francisco Ferreira Neves e José Pereira Tavares, com a finalidade de publicar documentos e estudos relativos ao distrito.  Esta revista desenvolveu entre os anos de 1935 a 1976 uma actividade deveras notável, recolhendo aspectos históricos, geográficos, literários e outros.  Está organizada em 42 volumes, compostos por 13700 páginas .

[2] Cf. Mª João Violante Silva, Aveiro Medieval, Aveiro, 1991

[3] João Gonçalves Gaspar em Aveiro, notas históricas, Aveiro, 1983, atribui o início da sua edificação a D. João I.

[4] Idem

[5] João Gonçalves Gaspar em Aveiro na história, Aveiro, 1997

[6] Actual praça do Município, no local onde se encontra a estátua de José Estevão.

[7] Cf. José Reinaldo Rangel de Quadros, Aveiro: origens, brasão e antigas freguesias, Aveiro, 1984

 


 

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