Aveirense
verdadeiro ou é cagaréu ou é ceboleiro!
Tais designações
populares são sobejamente conhecidas, ultrapassando a sua fama
largamente as fronteiras concelhias e, não raramente, até as
nacionais, pela mão dos muitos emigrantes que de terras de Aveiro
têm saído, ao longo de várias gerações.
Tentámos saber quando teriam surgido tais
designações, apesar de se adivinhar ser difícil tarefa. Para tal,
procedemos a consultas várias, de que são exemplo algumas das obras
constantes na bibliografia indicada no final do presente trabalho.
Embora não estando, obviamente, esgotada a consulta, percorremos,
também, grande número de volumes e artigos constantes do Arquivo do
Distrito de Aveiro[1],
nunca nos tendo sido dado a observar a ocorrência das procuradas
designações.
João Gonçalves
Gaspar em Aveiro na história utiliza ambas as designações. Nessa
obra, o autor explica que no séc. XV Aveiro contava com cerca de
3000 habitantes “estendendo-se fora das muralhas, formando na margem
norte do canal a chamada Vila Nova”, residência de gentes ligadas ao
mar e à burguesia, com as suas actividades mercantis: os cagaréus.
Diz ainda o mesmo
autor que, no Cimo de Vila, ou seja, “para sul da porta da vila”, se
desenvolvia outro agrupamento habitacional, constituído por pessoas
que se ocupavam da cultura dos quintais e dos campos: os ceboleiros.
Apesar desta
directa referência a ambas as designações, continuamos sem saber
quando elas surgiram, sendo seguro que, por tão antigas, se perderam
na vastidão do tempo.
Se bem que
desconheçamos o quando, o porquê de tais designações já nos é
possível conhecer:
Cagaréus
No já referido
Arquivo do Distrito de Aveiro, encontrámos no artigo intitulado
Loquela dos povos da Beira-ria· a referência ao uso da palavra
Cagarête, como sendo “ o local mais recuado à ré do barco e a seguir
à entremesa.
Ora, sendo, como
já se disse, o bairro da Beira-mar ocupado por gente ligada à ria ou
ao mar, desde marnotos, pescadores ou moliceiros, a sua vida era
passada dentro da bateira, do mercantel, do moliceiro ou de qualquer
outra embarcação. Quando as necessidades fisiológicas “apertavam”,
estes homens solucionam o problema utilizando a ré do barco. Deste
antigo e específico hábito (cagar à ré), surgiu o conhecido termo
regional cagaréu.
O próprio
dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora – edição de 2004 –
dá-nos o seguinte significado:
Cagaréu: s. m.
(regionalismo) designação dada aos pescadores da cidade Portuguesa
de Aveiro, especialmente aos nascidos na freguesia da Vera Cruz (de cagar + éu)
Ceboleiros
Procurámos também
este termo no já referido dicionário, ocorrendo apenas no género
feminino:
Ceboleira: s.f.,
mulher que negoceia em cebolas.
Para melhor compreendermos o porquê desta
designação, torna-se necessário retroceder no tempo, à época em que
a vila de Aveiro se encontrava muralhada. Na sequência de um enorme
incêndio que destruiu o burgo no início do séc. XV[2],
o infante D. Pedro[3]
mandou construir as magníficas muralhas, sabendo-se que em Agosto de
1413 a sua construção estava a processar-se e se prolongou por
dezenas de anos. Compostas por uma estrutura irregular, tinham
quatro postigos, vários torreões e oito portas com a seguinte
designação: da vila (a sul, dando entrada na rua direita), do Sol
(para oriente), do Campo, do Cojo (ou cais), da Ribeira (situada
junto à costeira), do Alboi (mais para sul), de Rabães e de Vagos
(junto ao convento de St. António).[4]
Marques Gomes, nos seus Subsídios para a história de Aveiro, refere
apenas sete portas, não indicando a do Campo. Outros autores indicam
mesmo nove portas.
Estas muralhas
vieram dar à vila robustez, segurança e grandeza, num período
particularmente favorável, sendo visível o seu crescimento em
população e riqueza, tornando-a numa verdadeira vila burguesa.
Face a este desenvolvimento, a vila, composta até
aí por uma única freguesia – a de S. Miguel – passou em 1572 a estar
dividida em quatro: além da de S. Miguel (parte nobre da vila, quase
toda muralhada), foi criada a do Espírito Santo (a sul do canal
central, mas fora das muralhas), a da Vera-Cruz e a de N. Sra. da
Apresentação, ambas na designada Vila Nova, zona de pescadores e
marnotos, já a norte do canal central.[5]
Na antiga freguesia de S. Miguel e junto à igreja
matriz que lhe deu o nome – Igreja de S. Miguel[6]
–, efectuava-se o conhecido Mercado das Cebolas. Por essa razão, os
habitantes e naturais do canal central para sul, zona mais nobre da
vila, por aí residirem os descendentes dos mais antigos povoadores
da urbe, passaram a ser designados de ceboleiros.
Lamentavelmente, em 1835, o governador civil José
Joaquim Lopes de Lima manda demolir o histórico e emblemático templo
de S. Miguel, alegando razões de higiene pública, devido ao mau
estado de conservação do mesmo, além de evocar a necessidade de se
proceder ao embelezamento do local. Por alvará publicado em onze de
Outubro do mesmo ano, o referido governador civil reduz a duas as
quatro freguesias da cidade, passando Aveiro a ter as freguesias da
Vera cruz (para norte do canal) e a de N. Sra. da Glória (para sul
do canal), divisão esta que se mantém até aos nosso dias.[7]
Após a demolição
da igreja matriz de S. Miguel, a feira das cebolas passou a
efectuar-se do outro lado do canal (já em terreno cagaréu), mais
precisamente ao longo da margem esquerda do canal central, quase à
entrada do Rossio, conforme se pode ver na imagem que se segue.
|
|
|
|
Cais dos ceboleiros |
|
|