V – Rivalidades antigas entre cagaréus, ceboleiros... e outras gentes vizinhas.

 

Perdem-se no tempo as rivalidades entre cagaréus e ceboleiros. Os primeiros, gente da Beira-mar, ligada profissionalmente à faina piscatória e afins, e os segundos, de origem mais fidalga, residentes na antiga parte muralhada da cidade.

 

Conhecem-se, por exemplo, conflitos que remontam pelo menos ao início do séc. XV, entre as gentes do concelho (da vila muralhada) e os de Vila Nova[1] (maioritariamente pescadores, residentes fora das muralhas), por querelas relacionadas sobretudo com a comercialização do pescado.

 

Na altura, a vila funcionava como se de duas vilas distintas se tratasse, levando os pescadores uma vida praticamente isolada, relacionando-se com o centro da urbe apenas por questões comerciais, sendo estas, talvez por isso mesmo, frequentemente hostis. O próprio rei era por vezes instigado a resolver alguns litígios existentes entre os pescadores e o concelho.

 

Não havia uma identificação entre “os de cá” e “os de lá” das muralhas, o que se via, inclusive, na separação dos seus hábitos, chegando a ter hospitais[2] distintos e frequentando mesmo igrejas diferentes. Era, assim, comum ver-se os residentes do concelho assistirem à missa na igreja paroquial de S. Miguel, enquanto que os de Vila Nova preferiam fazê-lo na igreja de Stª. Maria de Sá,[3] objecto de grande orgulho, pois até tinha órgão.

 

Esta conflituosidade não se apresentava entre os próprios pescadores, já que bem cedo se organizaram em confraria, tendo sido fundada a Confraria de N. Sra. de Sá por volta do ano de 1200. 13[4]

 

O Bairro do Alboi, apesar de se situar em espaço pertencente à freguesia da Glória, esteve sempre fora da considerada zona nobre da vila, ou seja, fora das muralhas. Era conhecido como importante local de trocas comerciais, aí se estabelecendo não só portugueses, mas também estrangeiros, tudo gente ligada à ria e ao mar. Bairro povoado por mercadores, mercantes, pescadores e marnotos[5], não são conhecidas rivalidades com os bairros vizinhos.

 

Amaro Neves[6] afirma que com as grandes transformações urbanas ocorridas após a 1ª República (Hospital, Estação, mercado, quartel, etc.), as antigas rivalidades bairristas locais entre ceboleiros (paróquia da Glória), cagaréus (paróquia da Sra. da Apresentação – Vera Cruz) e os bicudos[7] (da antiga vila de Esgueira), esbateram-se.

 

Partilhamos desta opinião, acrescentando que esse esbater de rivalidades será ainda anterior, mais precisamente após a demolição final das antigas muralhas, que ocorreu em 1808[8], passando a cidade a estar mais aberta e naturalmente mais unificada, vindo progressiva mas firmemente a desenvolver-se como um todo.

 

   
 

Painel de azulejos, sendo uma reprodução de gravura do século XVIII. Nela se destaca a alta torre da igreja de S. Miguel, demolida em 1835.

 

 


 


[1] Antigas freguesias da Vera Cruz (ou de N. Sra. da Apresentação) e de S. Gonçalo.

[2]  Os pescadores tinham o seu hospital de Vila Nova.

[3]  Cf. Mª João Violante B. M. Silva, Aveiro Medieval, Aveiro, 1991, p.147.

[4]  Cf. Francisco Ferreira Neves, A Confraria dos pescadores e mareantes de Aveiro (1200-1855), A. D. A., vol. 39, 156 (1973), pp. 242-243.

[5] Cf. Marques Gomes, Memórias de Aveiro, Aveiro, 1875, p. 10.

[6] Cf. Amaro Neves, Aveiro: história e arte, Aveiro, 1984.

[7] Designação popular atribuída a algum excesso de vaidade dos habitantes/ naturais de Esgueira, por esta ter sido cabeça de comarca por vontade de D. João III (1533).

[8] A 08-04-1802, o príncipe regente D. João manda demolir as muralhas, para utilização dessas pedras na obras da Barra, que levam seis anos a concluir. (anexo 6) Trata-se de um importante trabalho de desobstrução das areias aí depositadas desde, pelo menos, 1685, pondo-se em prática os projectos de dois engenheiros: Reinaldo Oudinot e Luís Gomes de Carvalho.


 

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